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quarta-feira, 4 de março de 2009

A "Minha" África...


Não, nunca fui a África. Ou antes, de África conheço o mesmo que conhecia D. João I, a cidade de Ceuta, que só é África na localização geográfica.
África esteve no meu horizonte por duas ocasiões na minha vida:
Uma, durante a adolescência e a juventude, com a possibilidade, sempre presente, de ser mobilizado para a guerra colonial, tendo o 25 de Abril chegado no limite, pois completei os 18 anos, 2 meses e 15 dias antes do 25 de Abril;
Outra, quando, nos finais da década de 70, me inscrevi como cooperante para a Guiné-Bissau, tendo a viagem sido adiada em definitivo, poucas horas antes da partida, por causa de um conflito diplomático, mal esclarecido, entre o governo português e o guineense.
Duas partidas falhadas, provavelmente decisivas para a minha vida.
A África tem sido um continente sacrificado ao longo da História.
Os recentes e trágicos acontecimentos na Guiné-Bissau trouxeram-me à memória um livro, lido há uns anos, ÉBANO, do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski, falecido o ano passado.
Tendo acompanhado a realidade africana durante cerca de três décadas, exactamente aquelas que assistiram à descolonização e à formação das primeiras nações africanas, Kapuscinski conseguiu captar o espírito africano e as raízes do drama, num continente onde a vida humana tem muito pouco valor.
As moscas que invadem tudo, o calor sufocante, os odores nauseabundos de algumas cidades, o total desordenamento da vida social e económica que muito devem agradar aos neo-liberais, a corrupção e a violência dos poderosos, o saque permanente das suas riquezas, as intermináveis guerras civis, tudo isto atravessa a obra, escrita com a dinâmica e o colorido de um grande romance, infelizmente bem real.
Mas também o colorido dos mercados, a ingenuidade genuína dos seus habitantes, o mistério da sua cultura e a imensidão da sua paisagem.
O drama africano começou no século XV, com o início dos descobrimentos, situação que se agravou nos séculos seguintes com o desenvolvimento de um novo tipo de escravatura, que implicava guerras constantes para capturar cada vez mais escravos.
As guerras tribais africanas, que até então não passavam de meras escaramuças ou guerras rituais, tornaram-se cada vez mais violentas e uma questão de sobrevivência. Os Europeus forneciam armamento às populações africanas em troca de escravos, e a posse das armas tornou-se essencial para resistir à escravização.
O fornecimento de álcool pelos ocidentais, em grande escala, às populações africanas, ajudava a manter os conflitos, necessários para o clima de guerra permanente que alimentava o mercado esclavagista.
O Ocidente nunca se preocupou em olhar o continente africano com olhos de ver, percorrendo “apenas a superfície sem penetrar mais fundo”.
Para o jornalista polaco, o “drama de algumas culturas – entre as quais a europeia – foi devido ao facto de, no passado, os seus primeiros contactos com outras culturas terem sido estabelecidas por pessoas da mais estranha espécie – mercenários, aventureiros, criminosos, traficantes de escravos, etc. Havia também outros, mas em menos número – missionários honestos, viajantes e exploradores entusiasmados. Porém o tom, o clima, era ditado por esta internacional de salteadores. É óbvio que eles não perdiam tempo a pensar em conhecer outras culturas, em encontrar um língua comum, em respeitar as pessoas. (…) O seu único interesse era pilhar, saquear e matar” (p. 359).
Neste círculo vicioso destruíram-se civilizações milenares, desequilibrou-se demograficamente todo um continente e destruíram-se estruturas económicas e sociais.
Quando a escravatura foi extinta, de forma significativa apenas no século XIX, seguiu-se a partilha do continente pelas potências europeias na famigerada Conferência de Berlim de Novembro de 1884 a Fevereiro de 1885.
O Continente Africano foi dividido a régua e esquadro em colónias com fronteiras totalmente artificiais, ora separando povos inteiros, ora misturados populações com culturas muito diferentes.
Refere Kapuscinski que, nos “tempos anteriores ao colonialismo, havia em África mais de dez mil pequenos Estados, reinos, associações étnicas, federações. No seu livro The African Experience (…) Ronald Oliver chama a atenção para um paradoxo muito vulgar: consagrou-se a teoria de que os colonialistas europeus são os causadores da divisão africana.”Uma divisão?”, pergunta Oliver surpreendido. “Foi uma união criada à força, imposta a ferro e fogo! De dez mil passou-se para cinquenta” (p.361).
Iniciou-se então o saque final desse continente de todas as suas riquezas, impondo-lhe um sistema económico, cultural e político totalmente antagónico com a sua cultura e a sua história.
Mas o drama desse continente não terminou quando, nas décadas de 50 e 60 do século passado, se deu início aos movimentos de independência.
Os novos Estados Africanos foram construídos com bases em tais fronteiras antagónicas, numa economia e numa ideologia importada da Europa e, com algumas honrosas excepções, dirigidas por líderes corruptos, que usavam a violência para se manterem no poder, desrespeitando os mais elementares direitos humanos das populações que governavam.
A guerra fria alimentava essa gente, com cada um dos lados do conflito a exibir os seus ditadores de estimação, fornecendo-lhes armamento em troca de vantagens estratégica ou económica. Era o neo-colonialismo em toda a sua força.
Com o fim da guerra fria, a situação não melhorou, as velhas guerras ideológicas transformaram-se em guerras tribais ou de bandos de malfeitores, com massacres de milhões de pessoas, como aconteceu na região dos grandes Lagos.
Um documentário, recentemente exibido na televisão, mostra com as coisas funcionam actualmente.
A um aeroporto da região dos Grandes Lagos, no Uganda, onde se aterra com apoio de um telemóvel, quando este funciona, pejado de destroços de aviões aí acidentados, chega um avião russo que vai descarregar ajuda alimentar da ONU, transportando igualmente armamento para os grupos responsáveis pelos milhares refugiados da região que esperam por aquela ajuda.
Na volta, o mesmo avião transporta para a Europa a valiosa perca do Nilo, peixe muito apreciado, mas cuja criação descontrolada dizimou outras espécies daquela região, arruinando as pequenas comunidades de pescadores locais, que engrossam os milhares de refugiados ou os bandos de salteadores locais.
Os restos da perca, que não são enviados para os consumidores ricos do norte, são transportados em camionetas, percorrendo um caminho em mau estado, durante horas, debaixo de um Sol abrasador, até uma imensa lixeira, com um chão coberto de larvas, onde centenas de africanos recolhem as partes do peixe “aproveitáveis”, para fornecer os vendedores ambulantes da cidades próximas, que fritam esses restos para alimentar os seus habitantes.
Mesmo assim, pode haver esperança para um continente que não deixa indiferente ninguém que o visita, ou que deu à luz o mais humano e grandiosos de todos os políticos dos últimos 50 anos, Nelson Mandela.
Berço da humanidade, esta deve a África um sinal de esperança…

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