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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Saída "Limpa"


Em vésperas de eleições europeias, e prevendo-se um resultado fortemente penalizador par os partidos que dominam uma “União Europeia” responsável por estes últimos anos de política anti-social e que desrespeita os direitos dos seus cidadãos, nada melhor do que tentar branquear todas as malfeitorias dos últimos anos.

O nome de “saída Limpa” ´é de facto um bom título publicitário e propagandístico para o branqueamento dessas políticas e para disfarçar a incompetência das instituições europeia responsáveis pelos erros da troika .

Parafraseando um liliputiano político local, líder parlamentar de um dos previsíveis partidos derrotados nessas eleições, é caso para dizer que "a vida das cidadãos  europeus não está melhor mas o a Europa da alta finança e dos especuladores está muito melhor".

Mas vamos a factos sobre os custos da tal “saída limpa”:

Em Portugal a taxa de desemprego em 2009 era de 9,5%. Actualmente ultrapassa os 16%. Se observarmos esses valores de forma sectorial, o desemprego jovem e o desemprego de longa duração, esse números mais que duplicaram. Além disso, aqueles números só não são piores por obra de muita engenharia estatística e pelo aumento da emigração de muitos portugueses em idade activa;

A dívida Pública, no início da intervenção da Troika, rondava os 80%.Actualmente está próxima do 130%;

O PIB per capita rondava os 70% da média Europeia no principio deste século. Hoje estamos mais longe, afastámo-nos mais  5% da média europeia.

Os níveis de emigração aproximam-se dos registados nos anos 60, com custos graves a nível de perda de mão-de-obra qualificada e jovem.

Se juntarmos a tudo isto a redução de salários e pensões, o brutal aumento de impostos, o aumento da precaridade no emprego e do número de assalariados a receber salários de miséria e todos os dramas sociais que têm vindo a crescer, estamos falados sobre o que se entende por “saída limpa”.



O objectivo eleitoral da maioria de nos vender a “saída limpa” vai sair caro aos portugueses, que vão estar sujeitos a trabalhar nas próximas décadas para pagar os erros do programa de ajustamento que nos foi imposto pela troika e executados por um governo subserviente e servil.


terça-feira, 29 de abril de 2014

Os PIIGS e as Pérolas do Porcos da Troika (sem ofensa para os porcos, que até são animais inteligentes...)


Sindicatos dizem que recuo do Governo sobre indemnizações por despedimento ilegal era "inevitável" - PÚBLICO (clicar para ler notícia)

As longo destes últimos anos temos sido surpreendidos pelas pérolas porcas dos senhores da Troika sobre os PIIGS (a designação com que essa gente classifica em pensamento e actos os países do “sul” da Europa : Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e “Spain”) .

Entre muitas outras, aquela de que os salários são altos, trabalha-se pouco, vivemos acima das nossas possibilidades…

Na realidade, tudo não passa de um conjunto de mentiras , várias vezes repetidas, tornando-se assim “verdades”  convenientes, para poderem impor o seu programa de “reajustamento”, ou seja, de roubo generalizado aos trabalhadores, pensionistas e contribuintes para pagarem os desvarios do mundo financeiro e a possibilidade dos burocratas das instituições Europeias e das instituições financeiras internacionais continuarem, esses sim, a viver acima das suas possibilidades.

Para tal contam com uma poderosa máquina de propaganda, como a maior parte dos jornais e jornalistas de economia, políticos do arco do poder, comentadores de serviço, instalados de armas e bagagens na maior parte da imprensa de referência, em especial nos órgãos de comunicação massificados, como o são a maior parte das televisões.

É assim que essa gente tem o desplante de continuar a defender cortes salariais e nas pensões, as quais, na maior parte do “PIIGS” , estão muito abaixo da média europeia, nomeadamente  se comparados com os países que controlam as decisões da Troika.

É ainda com o mesmo desplante que consideram prematuro que em Portugal se aumente o valor do salário mínimo nacional, com um valor que nos envergonha a todos e abaixo do rendimento necessário para se fugir à pobreza.

Mas a pérola principal da grande porca em que se transformou a Troika é a de procurar convencer os nossos políticos, com ajuda dos seus aliados da propaganda jornalística, em alterar as leis do trabalho, retirando o pouco que resta de alguma dignidade na actividade profissional. 

Como se tem visto, as más leis que existem, mas que são pérolas comparadas com a porcaria que essa gente defende, não impedem o grande aumento do desemprego, a precaridade profissional, a fuga de jovens qualificados para o estrangeiro  ou o aumento descontrolado do horário de trabalho, regressando-se, em muitos casos, a realidades do século XIX e o que essa gente defende é ainda pior do que isto.

Como suprema porcaria emanada de tão porcas cabecinhas troikistas estava esta idéia inclassificável de reduzir as indemnizações a quem fosse despedido de forma ilegal.

Para mim o que me surpreende não é que este governo, pela primeira vez, tenha resolvido bater o pé a essa porca gente (ou não tivéssemos eleições à porta!!!).

O que me surpreende é que da cabeça de técnicos ditos “responsáveis”, bem vestidos e bem pagos, pudesse germinar uma tal idéia, bem reveladora da falta de ética e de escrúpulos dessa gente.

Não é, contudo, de admirar que uma tal pérola surja em tais cabeças. É que estamos a falar da cabeças criminosas….sim, criminosas!…basta ler o relatório saído do Parlamento Europeu para se perceber que a troika funciona ilegalmente, à margem dos tratados europeus, sem qualquer controle democrático, sem respeitarem a lei e a Constituição dos países intervencionados, como se tem visto pela forma como eles próprios tratam o Tribunal Constitucional. Ora, quem funciona ilegalmente, é criminoso, não encontro outra palavra...

Mas os técnicos da troika não funcionam totalmente em autogestão, são os mandantes de políticas decididas nas costas dos portugueses, por gente com rosto e que devia ter os conhecimentos mínimos sobre a realidade social, económica e legal do país de onde são originários, como é o caso de um Durão Barroso, líder da Comissão Europeia, de um Victor Constâncio, vice-presidente do BCE, ou de um Victor Gaspar, alto funcionário do FMI, cargo a que ascendeu depois de ter feito o trabalhinho da troika em Portugal.

Por isso, este recuo do governo em relação a uma das mais estapafúrdias ideias dessa troika, não é inocente, é mero fogo-de-artifício pré-eleitoral, nem pode fazer esquecer outras porcas ideias ilegais emanadas dessa troika, e muito menos quem está a dar cobertura a essa gente, nomeadamente os três portugueses referidos acima e que, um dia, se houver justiça, terão de responder pelos crimes e pelos roubos que fizeram aos cidadãos dos seu país.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Ontem em Peniche: uma placa a recordar a libertação do último Preso Politico em Portugal, há 40 anos

(foto das Edições Parsifal - página do facebook)

Peniche - Um dia de emoções

(Foto das edições Parsifal)
No dia em que se comemorava o 40º aniversário da libertação dos presos políticos de Peniche, e 40 anos depois de eu próprio ter estado na madrugada desse dia às portas daquele forte, foi um grande momento que ontem partilhei, no lançamento do livro "No Limite da Dor – a tortura nas prisões da PIDE", da autoria de Ana Aranha e Carlos Ademar, editado pelas Edições Parsifal.

Triplamente emocionantes.

Em primeiro lugar o reencontro com uma grande amiga, antiga aluna e grande jornalista, a Ana Aranha, que já não via há mais de vinte anos.

Depois um grande livro, que é também um documento contra o esquecimento, contra o esquecimento de um período que muitos pretendem branquear e contra o esquecimento de um grande e emotivo programa de rádio.

Ainda um grande livro porque é um livro com gente dentro, o que começa a rarear.

Em terceiro lugar o prazer de conhecer em “carne e osso” gente de quem sempre ouvimos falar e que deram a sua vida pela liberdade  para que hoje possamos viver em democracia.

Obrigado Ana Aranha por este momento que nos proporcionaste.

(Podem aceder à audição de todas as edições do programa O Limite da Dor clicando AQUI)

Fotografia da sessão de ontem, dia 26 de Abril, no Forte de Peniche (tal como a fotografia de cima)
Ana Aranha em "acção"

...O Último acto da Censura:


Homenagem a Vasco Graça Moura:

 soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"


Morreu Vasco Graça Moura, um intelectual renascentista no século XXI - PÚBLICO

...e uma canção de Mísia com um poema de Graça Moura:

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Recordar o 25 de Abril, nas imagens de Ezequiel Santos - Fotos da libertação dos presos políticos de Peniche (madrugada de 27 de Abril)

É hoje inaugurada, nos Paços do Concelho de Torres Vedras, uma exposição fotográfica de Ezequiel Santos, que acompanhou os principais acontecimentos políticos locais do pós 25 de Abril.

Aqui reproduzimos parte da sua reportagem fotográfica realizada durante a libertação dos presos políticos da cadeia de Peniche, na madrugada do dia 27 de Abril de 1974:





quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Que Falta do 25 de Abril


Quarenta anos volvidos sobre o 25 de Abril é tempo de fazer balanços.

Já AQUI e AQUI  contámos as nossas memórias pessoais, e já abordámos esse acontecimento, do ponto de vista da História local  AQUI.

Neste texto não vamos ter a preocupação do rigor factual, procuramos antes reflectir sobre aquilo que para nós significa essa data e o que dela ainda permanece.

Se existe consenso generalizado sobre o 25 de Abril é o de que esse dia foi o dia do início da Liberdade que conduziu à construção da Democracia, o tal “dia inicial inteiro e limpo” de Sophia de Mello Breyner .

A partir daí começaram a separar-se as àguas, pois o conceito de Liberdade e Democracia variava muito conforme as ideologias, a cultura e a experiência de cada um.

Para mim a liberdade só existe se, como canta Sérgio Godinho, houver “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”  para todos, partindo de uma base mínima de condições de igualdade e dignidade.

Aliás, esses mesmos direitos estão consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento fundamental para discutir os conceitos de Liberdade e Democracia.

Mas também não podemos esquecer que as próprias revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX consignavam, em paralelo com a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade.

A liberdade de falar  é a base, mas não é o limite nem o fim.

Também temos de ter presente aquela velha máxima segundo a qual a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros.

Hoje muita gente considera que a Liberdade está em risco. Parece-me uma preocupação legítima, face à forma como procuram impor aos portugueses, como inevitável, um caminho único de crescente empobrecimento, ou como a comunicação social é hoje controlada pelo poder financeiro.

A liberdade de imprensa é a base da liberdade de opinião nas sociedades modernas, mas hoje, quando só se consegue chegar  e informar o público em geral através de meios de comunicação social que exigem gigantescos meios financeiros para subsistirem, meios esses que só são possíveis com o aval do poder financeiro e de grandes empresas, essa liberdade parece correr graves riscos.

É essa situação gravosa que está na base da construção do actual pensamento único neo-liberal que procura condicionar qualquer alternativa às actuais opções económico-socias que estão a conduzir ao alargamento das desigualdades, à perda de direitos sociais, ao empobrecimento generalizado, que se anuncia como programa de décadas e gerações.

Hoje, quem quiser  fazer ouvir a sua opinião, com alguma influência, ou afina pelo diapasão que domina essa ideologia e a comunicação social assim controlada pelo poder financeiro, ou não consegue chegar a quase ninguém , por muita razão que tenha.

Nesse aspecto, e apesar da censura do Estado Novo, antes do 25 de Abril, embora com grandes riscos financeiros e pessoais, era possível lançar um órgão de comunicação social independente, como aconteceu com jornais como o “República”, o “Diário de Lisboa” , “A Capital”, a “Vida Mundial” ou o ”Expresso”.

Hoje não existe um órgão de comunicação social, com influência, que possa destoar totalmente da ideologia neoliberal que nos estão a impor, porque não obteria meios financeiros para sobreviver.

Claro que há liberdade de falar e escrever, mas a maior parte da comunicação social, cada vez menos jornalística e mais opinativa, enche as suas páginas ou os seus écrans com ideólogos dessa ideologia, mesmo com pequenas nuances de pensamento para dar uns ares de “pluralismo” (aquilo que eu já chamei de "Pluralismo do pensamento único"), ou convidando alguém que pensa de forma diferente, mas que está sempre em minoria e fica sujeito ao massacre ideológico dessa maioria de comentadores.

A Liberdade formal não está em risco, mas a liberdade de se desenvolver um pensamento desalinhado, inovador e criativo, com consequência na opinião pública, esse, de facto, está em perigo.

E, com o risco que corre a verdadeira liberdade, é a própria Democracia que corre riscos.

Claro que, também neste caso, a Democracia formal parece segura.

Mas também aqui existem divergências sobre o sentido da Democracia.

Se se entender a democracia como o mero acto de despejar o voto numa urna, então podemos dizer que a Democracia está consolidada.

Claro que a existência de Partidos e de Eleições livres é a base sem a qual não existe Democracia.

Mas esta não acaba aqui, nem termina com a divulgação dos resultados eleitorais.

Aliás, vendo a coisa por esse prisma, Yanukovich na Ucrânia, Putin na Rússia,  Maduro na Venezuela ou Órban na Hungria são verdadeiros democratas, para citar apenas os casos mais emblemáticos.

Pelo contrário, não deixa de ser paradoxal que uma União Europeia, que nasceu da democracia dos seus povos, tenha um presidente, uma Comissão Europeia e um Banco Central Europeu ocupados por gente que nunca foi eleita para esses cargos pelo povo europeu, mas que são aqueles que de facto decidem sobre a vida das pessoas, e que a sua única instituição eleita, o Parlamento Europeu, não passe de um “verbo de encher”, sem grandes poderes, que , por exemplo, elaborou recentemente um relatório onde denuncia as ilegalidade das troikas ou do governo Húngaro sem que daí resulte qualquer consequência para os criminosos.

Mas mesmo que se chegasse ao consenso segundo o qual a democracia acaba no dia a seguir às eleições, nunca se podia admitir que um governo eleito desrespeitasse as promessas e o programa político com que foi eleito, com a desculpa que não conhecia o estado do país quando toma posse do governo.

Para além de mentiroso, um governo que ignora o estado do país devia ser demitido no dia seguinte por se deslegitimar, pois, não só o compromisso eleitoral é para ser levado a sério, como não se pode admitir que, quem se apresenta para governar um país possa revelar tanta ignorância sobre o mesmo.

Por outro lado, os próprios partidos políticos, que estão na base da democracia, funcionam quase todos internamente de forma pouco democrática. Quase não existe debate interno, todos recorrem a purgas constantes dos indesejáveis e os seus dirigentes são escolhidos nos bastidores da intriga política antes de serem sufragados em congressos previamente preparados para a propaganda.

Se o 25 de Abril se fez para restituir a Liberdade e construir a Democracia, então é caso para dizer que ainda há muito 25 de Abril por construir.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dos Três FFF’s do “Fascismo” (“Fado”, “Fátima” e “Futebol”) aos Três FFF’s da Democracia (Futebol, Futebol e … Futebol!)…


Durante os tempos do Estado Novo, nas acções de “contra-propaganda” a que a oposição anti-fascista recorria para denunciar o regime, uma das frases mais repetidas para encontrar justificação para a mansidão resignada de um povo, era denunciar o recurso , por parte do regime, a três pilares de alienação: Fado, Fátima e Futebol.

Contudo, observando com atenção, essa trilogia não passava de retórica propagandística, muitas vezes injusta.

De facto, os estádios de futebol foram muitas vezes aproveitados para contestar o regime e as figuras públicas que surgiam nas bancadas dos grandes desafios, como o único palco autorizado para manifestações de massas. O jornal que entre nós mais promoveu o desporto “rei”, “A Bola”, era controlado por gente da oposição que se aproveitava da aparente temática inócua desportiva para denunciar o regime nas entrelinhas ou transmitir, de forma cifrada, informação sobre acontecimentos nacionais, recorrendo à metáfora desportiva, como naquela célebre reportagem sobre um jogo de futebol, no fim-de-semana do falhado golpe militar do 16 de Março de 1974, onde se anunciava esse acontecimento de forma subliminar.

O fado, por sua vez, foi a base de onde partiu a musica de intervenção, como aconteceu com Zeca Afonso com o fado de Coimbra, ou com a própria Amália que, privando com poetas de esquerda, deles recebeu sugestões para algumas das suas mais emblemáticas canções.

Também a Igreja, apesar de ser de facto um dos pilares ideológicos do regime, foi o seio onde cresceram algumas das movimentações mais organizadas contra o regime, principalmente a partir da década de 60, como a atitude de frontal contestação por parte do Bispo do Porto ou as denuncias dos crimes perpetrados pelo regime nas colónias durante a guerra. Aliás, algumas das atitudes mais consequentes contra a guerra colonial partiram do seio dessa instituição. O escotismo, por exemplo, teve um papel importante como contraponto em relação à influência que o regime procurava ter junto da juventude com a Mocidade Portuguesa. Por cá é de recordar, por exemplo, o caso do jornal “Badaladas”, dirigido pelo saudoso padre Joaquim, dando guarida, nas páginas desse semanário, aos intelectuais da oposição.

Depois do 25 de Abril, o fado afirmou-se como património cultural, revelando grandes nomes da musica popular, e a Igreja é hoje uma das instituições que tem revelado mais coragem e consequência na denuncia de injustiças sociais e do empobrecimento levado a cabo pelas políticas dos últimos tempos.

Contudo, o futebol, esse sim, tornou-se o grande pilar de alienação colectiva dos nossos tempos, ou, mais grave ainda, o palco privilegiado de afirmação de gente medíocre e um grande centro de lavagem de dinheiro de origem duvidosa.

Falar de desporto em Portugal tornou-se sinónimo de falar de Futebol. A maior parte das outras modalidades tem sido quase totalmente esquecida e esmagada pelo poder do futebol.

Para isso muito contribuiu uma comunicação social indigente, nomeadamente a televisiva, que usa e abusa da sua influência par promover esse desporto, abrindo noticiários com intermináveis resumos futebolísticos, alterando programações para dar destaque a qualquer evento futebolístico, por mais irrelevante que seja,  dando o mesmo destaque a esse desporto  que a qualquer noticia que seja de facto importante.

Apesar de tudo, o futebol nunca nos deu um título mundial, olímpico ou europeu, a não ser duas únicas vezes, uma com o Futebol Clube do Porto, já lá vão umas décadas, outra com os sub-21, há muitos anos, numa altura em que o Futebol ainda não tinha o poder dos nossos dias.

Entretanto temos centenas de campeões mundiais, olímpicos e europeus, nas mais variadas modalidades, cujos feitos merecem muitas vezes pouco mais que uma nota de rodapé, no meio de uma qualquer polémica boçal sobre o futebol.

E o mesmo podemos dizer em relação às centenas de prémios internacionais conseguidos por portugueses na área da Cultura, da Arte e da Ciência.

O que se passou no passado domingo foi, a todos os níveis, do mais vergonhoso exagero “jornalístico”, e eu até sou benfiquista e vibrei com a sua vitória.

Todos os canais “informativos” passaram horas com reportagens a acompanhar a festa dos benfiquista, dando largas aos quinze minutos de fama da mais alarve boçalidade, a roçar muitas vezes o puro vandalismo.

A partir das 17 horas (nalguns casos antes disso ) não houve qualquer outra informação sobre o que se passava no mundo ou no país.

É caso para dizer que a Democracia também criou os seus “FFF’s”… Futebol!, Futebol ! , e…Futebol!

Por isso fazemos nossas as palavras do jornalista José Vitor Malheiros, ontem publicadas na sua crónica do jornal Público, e que transcrevemos em baixo:



"Pertenço ao grupo dos milhares de portugueses que ontem não puderam adormecer à hora habitual devido aos festejos esfuziantes dos adeptos do Benfica, noite fora, que encheram as ruas com as suas cornetas, buzinadelas, gritos e petardos. Não guardo pelo facto nenhum azedume, apesar do incómodo. Gosto de festas ruidosas, gosto de ver pessoas na rua, tenho a felicidade de um sono fácil, tenho janelas com vidros duplos e não tenho nenhuma antipatia particular pelo Benfica. Mas confesso a minha dificuldade para entender estas euforias com as vitórias alheias, ainda que perceba o entusiasmo que o futebol transmite. Percebo o gosto, mas não consigo compreender a febre. De Gaulle dizia que patriotismo era amar o seu país e que nacionalismo era odiar o país dos outros. O que me espanta no fervor futebolístico é haver tanto “nacionalismo” e tão escasso “patriotismo” ou, dito de outra forma, que o “nacionalismo” que consiste no ódio aos outros clubes seja a forma predominante de viver o “patriotismo” que é o amor ao seu clube. Tanto ou mais do que a vitória do seu clube, o que arrebata os adeptos é a derrota e a humilhação dos adversários (basta ouvir os gritos na rua e ler os blogues), e isso é algo que tenho dificuldade em aceitar, tanto mais que as grandes conquistas vão sempre muito para além da derrota dos rivais.

"Há no fervor guerreiro dos adeptos dos clubes um aspecto puramente tribal, que há anos é objecto de estudos antropológicos e psicológicos. Não há no amor clubista nenhum valor substantivo, mas apenas uma adesão à camisola, à bandeira e ao grupo. O que é estranho é que a forma mais fácil de mobilizar multidões e de acirrar os seus ânimos seja através de um ritual tribal e não através de valores substantivos, de ideias ou de projectos que tenham um real impacto na vida dessas próprias pessoas.

"Ontem, ao ouvir as buzinadelas, pensava em quantos adeptos deste ou de outro clube, loucos de alegria pelo resultado de um jogo que em nada modificaria a sua vida, estariam dispostos a sair à rua para defender o aumento do salário mínimo, o aumento das pensões, o fim das propinas ou o pleno emprego. Quantas dessas pessoas seriam capazes de vir para as ruas exigir o fim da pobreza? Quantas dessas pessoas viriam para a rua indignadas pelos milhares de crianças que passam fome? Quantas dessas pessoas viriam para a rua exigir um combate eficaz à corrupção e uma justiça igual para todos? Quantas viriam defender uma escola pública de qualidade? Quantas destas pessoas virão para a rua no 25 de Abril gritar que não esquecemos a liberdade? Quantas dessas pessoas irão votar nas eleições europeias? Quantas irão votar nas legislativas? E quantas irão votar nos mesmos que hoje os condenam a eles à pobreza e os seus filhos à ignorância? Para que lhes serve este feroz orgulho de grupo e esta embriguez selvagem da vitória se, nos momentos que importam realmente, irão baixar o pescoço onde se irá pousar a canga?"

José Vitor Malheiros, "O jogo da Banca e o Jogo da Bancada", in Público, 22 de Abril de 2014








Carlos Calvet ...pintor, arquitecto e...FOTÓGRAFO:



A propósito do falecimento do artista plástico Carlos Calvet, figura marcante do movimento surrealista português, aqui recordamos uma faceta menos conhecida do pintor, a de fotógrafo, repescando aqui um texto de apresentação da sua obra nesta àrea, que encontrámos no site do Instituto Português de Fotografia:

(sobre o seu trabalho como artista plástico, podem ler mais AQUI).

"Carlos Frederico Calvet nasceu em Lisboa em 1928 e faleceu a 21 de abril de 2014. Estudou arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, onde se licenciou em 1957. 


"Iniciou a prática da fotografia na companhia de Sena da Silva, Gérard Castello Lopes e de seu irmão Nuno Calvet. De entre os vários trabalhos de fotografia de arquitectura e de viagens, ressalta uma pequena reportagem que realizou sobre a chegada da Rainha de Inglaterra a Lisboa, em 1957.

"Com Mário Cesariny e António Real colaborou na realização de pequenos filmes de atmosfera surrealista. 

"Em 1970, realizou uma reportagem fotográfica sobre a zona ribeirinha de Lisboa, sob a direcção de Formozinho Sanches, no âmbito do Estudo de integração urbana das zonas adjacentes a Praça do Comércio. 

"A partir de 1981 interrompeu a sua actividade nos campos da arquitectura e da fotografia para se dedicar à pintura a tempo inteiro.

"Realizou ilustrações para livros e executou painéis murais para o átrio de um edifício hospitalar. Expôs pintura, regularmente, desde 1947. Participou em dezenas de exposições individuais e colectivas em Portugal e no Estrangeiro, tendo sido premiado em 1968 e 1984. Está representado em diversas colecções particulares de várias instituições. Publicou estudos e redigiu artigos de pesquisa sobre geometria e simbolismo.

"A primeira câmara que teve aos doze anos foi uma Kodak, usando posteriormente uma Agfa Clac e mais tarde uma Leica, que trazia a objectiva Elmar 50".







terça-feira, 22 de abril de 2014

Homenagem a Gabriel Garcia Marquez: recordando uma sua passagem por Lisboa em plena Revolução de Abril:

Ao retomarmos a edição deste blogue, não podiamos deixar de referir um dos acontecimentos passados nestes dias de ausência, a morte de Gabriel Garcia Marquez, a sua passagem por Lisboa em 1975, aqui recordada numa reportagem do jornalista Ricardo J. Rodrigues do Diário de Notícias:

"A HISTÓRIA DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ EM LISBOA



Por: Ricardo J. Rodrigues, na Colômbia, Diário de Notícias on-line 17/04/2014

"No Verão Quente de 1975, Gabriel García Márquez veio passar duas semanas a Portugal. Encontrou-se com escritores e poetas, comoveu-se com o processo revolucionário e escreveu três reportagens para a revista que ele próprio tinha fundado, um ano antes, na Colômbia. Relato de uma viagem esquecida, reconstruída a partir de Lisboa, Bogotá e Cartagena de Índias.

"O postal de García Márquez chegou ao destino três semanas depois de enviado. Era uma fotografia da Ponte 25 de abril, com o Cristo Rei em fundo, e dizia apenas isto: «Lisboa é a maior aldeia do mundo. Quando chegar, conto-te desta revolução.» Juan Gossaín – um dos mais notáveis jornalistas colombianos e amigo do escritor desde os anos cinquenta – recebeu o correio na sua casa de Cartagena de Índias e não pôde deixar de sorrir. Gabriel, a quem trata carinhosamente por Gabo, tinha chegado à Colômbia muito antes da correspondência. E a viagem a Portugal já tinha sido largamente discutida numa conversa telefónica, dias antes. «Tenho pena, perdi esse postal há décadas, numa mudança de casa.» Mas, por uma questão de provocação, Gossaín nunca o esqueceu: «Desde esse tempo, sempre que nos encontramos, despeço-me de Gabo dizendo que ele ainda me deve uma conversa sobre Lisboa.»

"García Márquez aterrou no aeroporto da Portela no primeiro dia de junho de 1975, proveniente de Roma. «Tive a sensação de estar a viver de novo a experiência juvenil de uma primeira chegada. Não só pelo verão prematuro em Portugal e pelo odor a marisco, mas também pelos ventos e pelos ares de uma liberdade nova que se respiravam por toda a parte.» Estas palavras publicou-as ele, um mês mais tarde, na revista Alternativa, um semanário criado por si e por um grupo de intelectuais da esquerda colombiana, no ano anterior. «Por esta altura já tinha escrito Cem Anos de Solidão, era um romancista reputado e estava envolvido em muitas organizações internacionais», conta em Bogotá o jornalista Antonio Caballero, outro dos fundadores. «Viajava pelo mundo fora, ou a promover a sua obra ou em reuniões de trabalho. E às vezes ficava mais dois ou três dias num sítio para fazer peças jornalísticas.» Em Portugal, permaneceu duas semanas.

"É preciso dar muitas voltas à capital colombiana para encontrar os textos que Gabo escreveu sobre Lisboa. Na Rua 21 há uma série de alfarrabistas, mas é praticamente impossível encontrar uma edição da Alternativa. «Tivemos governos de direita muito fortes, e ter uma edição destas podia indicar que a pessoa era subversiva e perigosa», conta don Jimeno, dono da Libreria Mundial, que todos conhecem por Libreria Obscura – porque era ali que no final dos anos setenta se vendiam as obras da esquerda mais radical. Não só não tem uma única cópia para vender, como há anos não põe os olhos em cima de uma dessas revistas. Tente-se a biblioteca do Centro Cultural García Márquez, no bairro histórico da Candelária. Nada.

"Dois quarteirões acima reside a derradeira esperança: a hemeroteca. E é então que, encadernados num livro azul e pesado, se encontram os números 40, 41 e 42, publicados em 30 de junho, 7 e 14 de julho de 1975, respetivamente. Não podem ser digitalizados, mas podem ser fotocopiados. Fazem-se algumas fotografias à socapa, com o telemóvel. Um artigo chama-se «Portugal, território livre da Europa» e é pura reportagem, descrições de ambientes, de cheiros e das vivências de rua. Outro, «O socialismo ao alcance dos militares», um ensaio sobre a revolução portuguesa e o facto de as Forças Armadas terem organizado um golpe sem quererem guardar o poder para si. E ainda há um texto sobre o xadrez político do período revolucionário, as pressões europeias e americanas, os movimentos de organização popular. O título dessa reportagem, a segunda, encerra uma daquelas perguntas que ficaram até hoje por responder: «Pero que carajo piensa el pueblo?»

"Gabo tinha chegado a Lisboa depois de um voo atribulado. «Ele tinha um medo danado de viajar de avião, até chegou a escrever uma crónica sobre o assunto», conta Jaime García Márquez, irmão do escritor, no alto de um terraço com vista para a catedral de Cartagena de Índias. Está um dia quente e húmido, como são todos os dias na cidade caribenha. O escritor mora parte do ano ali perto, numa casa de muros vermelhos e altos. Não dá entrevistas, não faz aparições públicas e, anunciou o irmão mais novo, não voltará a escrever. Tem 86 anos e um diagnóstico de demência que lhe secou as palavras. «Pois Gabo, que nunca foi religioso, nesse voo para Portugal encomendou duas ou três vezes a alma à Virgem de Guadalupe. Ele costumava dizer que o único medo que um latino confessa é o de viajar de avião. E é verdade.»

"Ao lado de Gabriel García Márquez viajava Alfonso Fuenmayor, um jornalista de Barranquilla, de quem se tornara amigo, duas décadas antes, na redação do El Heraldo. Nesse tempo, Gabo era vice-presidente do Tribunal Russell, o tribunal internacional de crimes de guerra. Com a chegada de Pinochet ao poder no Chile e a ditadura militar brasileira numa das fases mais ferozes, havia a hipótese de abrir uma secção para a América Latina em Lisboa. Alfonso, que andava em viagem pela Europa, veio para dar uma ajuda na avaliação. Mas com o Verão Quente em pleno, a instabilidade política no país encarregar-se-ia de anular o projeto.

"Ficaram instalados no Ritz e, escreveu García Márquez no seu artigo, durante uma boa parte da estada só havia dois hóspedes no hotel – eles. «Lisboa é uma das mais belas cidades do mundo e, até há um ano, era também uma das mais tristes, por obra de uma rara ditadura medieval que durou quase meio século e cuja força se fundava numa polícia política inclemente. É um país de pobres que enfrenta obstáculos terríveis e uma pressão tremenda. Por causa da sua posição geográfica, está obrigado a sentar-se de sapatos rotos e casaco remendado na mesa dos mais ricos e sofisticados do mundo.» Gabo considerava que a sociedade portuguesa era mais próxima da sul-americana, mas que o país tinha uma espada sobre a cabeça para se tornar europeu. «Nos restaurantes caros, os mariscos exibem-se como joias nas vitrinas, mas são intocáveis, um luxo burguês. Nos restaurantes populares, onde se come um delicioso arroz com sangue de galinha, os empregados debatem-se com uma dúvida: no regime atual, é justo que recebam gorjeta?»

"Um dia depois da sua chegada a Lisboa, os primeiros deputados eleitos em liberdade tomavam posse no Parlamento. Gabo decidiu fazer a cobertura da sessão solene de abertura da Assembleia Constituinte e, aí, cruzou-se com alguns dos mais emblemáticos nomes das letras portuguesas. Juntou-se um grupo que acabaria por ir jantar nessa noite à Varanda do Chanceler, um restaurante de Alfama (o mesmo onde Natália Correia haveria de apresentar Francisco Sá Carneiro a Snu Abecassis). No repasto estavam José Cardoso Pires, Fernando Namora e Luís de Sttau Monteiro. Também estava presente o poeta José Gomes Ferreira, na altura presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores.

"Esse encontro com García Márquez causou forte impressão em Gomes Ferreira. O poeta português – cujo poema Acordai, musicado por Lopes-Graça, tem servido de hino a vários protestos recentes – escreveria até algumas notas, após uma conversa com o escritor colombiano. Estes escritos nunca foram publicados, são inéditos e íntimos, papéis em bruto. Foram cedidos pelo seu filho, o arquiteto Raul Hestnes Ferreira. «García Márquez, à despedida, disse-me: “Buena sorte!” Tremi. O García Márquez: “Os portugueses são muito parecidos com os latino-americanos. Os espanhóis são mais severos, mais hirtos. Mais senhores solenes. Anos de tempestades”.» Em 3 de junho, nova entrada no diário, um quase-poema: «Quando o García Márquez se despediu, desejando-me buena sorte, lembrou-se do Chile. Felizmente é a própria morte que me defende da morte. Que me importa viver mais um dia ou menos um dia? Sim, importa – diz-me a boca de uma nuvem que me acompanha noite e dia.»

"O QUE VAI DAR CABO DA REVOLUÇÃO É A CONTA DA LUZ

"A partir daquele jantar na Varanda do Chanceler, Gabo não voltou a estar sozinho em Lisboa. «Entre entrevistas com Vasco Gonçalves, Melo Antunes e Saramago, que nessa altura estava no Diário de Notícias [era director adjunto]», lembra Ernesto Santos Calderón, um dos mais importantes jornalistas da Colômbia, um dos melhores amigos de García Márquez e um dos fundadores da Alternativa, «também fez muitos amigos e divertiu-se bastante em Lisboa».

"José Carlos Vasconcelos, diretor do Jornal de Letras, lembra-se de ver o escritor colombiano na festa de aniversário de José Gomes Ferreira, na noite de 9 para 10 de junho, e novamente na Varanda do Chanceler. «Brincávamos todos juntos a dizer que o Gomes Ferreira tinha a mania das grandezas, queria nascer no dia de Camões.» Maria Velho da Costa conheceu García Márquez em casa de Sttau Monteiro. «Aquilo era para ser uma festa, mas estava a tornar-se numa tertúlia, era uma chatice tremenda. Às tantas Gabo perguntou-me se queria fugir dali.» Despediram-se rapidamente, saíram, apanharam um táxi para o Bairro Alto. «A minha memória funciona por imagens fotográficas», diz a escritora. «Lembro-me de descermos a rua em conversa animada. Lembro-me de que ele usava um fato de ganga, calças e casaco. E lembro-me de ficarmos umas boas horas num bar, a conversar e a beber whisky.» Às tantas, o colombiano disse que à revolução portuguesa não faltava heroísmo, faltava prudência e imaginação. «Então estamos bem tramados», respondeu Maria Velho da Costa. «Porque o povo português é como o diabo, sabe mais por velho do que por ser povo.» Essa sentença, descobriu a escritora portuguesa há uns dias, foi a frase com que García Márquez rematou a sua última reportagem em Portugal.

"A amizade mais estreita de Gabo em Lisboa era, no entanto, com o autor de Balada da Praia dos Cães. Tinham-se conhecido anos antes em Londres, quando ambos trabalhavam para o serviço internacional da BBC. Edite Cardoso Pires recorda-se dos encontros no terraço do Hotel Mundial, com vista para o Martim Moniz, epicentro da multiculturalidade da cidade. «A influência negra é notável em Portugal, manifesta-se mesmo no caráter dos portugueses», escreveu García Márquez. «E todo o país está saturado pela música quente de Cabo Verde e Angola, que parece a música do nosso trópico.» Era 1975, ano de independência das colónias. Gabo apanhou em cheio a chegada de refugiados, portugueses e africanos, e o regresso de soldados do ultramar. Em 1976, haveria de viajar várias vezes para Angola e escrever um artigo para a Alternativa sobre os novos ares de liberdade e as pressões que vinham de fora, fossem elas de Cuba ou da África do Sul.

"A teoria que Gabo expressou nos seus textos não era apenas a de um país cercado, era também o de um país dividido. «Desde a praça do Rossio até ao canto mais remoto e esquecido da província, não há um centímetro de parede, nem um sinal de trânsito, nem o pedestal de uma estátua que não tenha sido pintado com uma mensagem política. Os comunistas pedem unidade sindical. Os socialistas dizem que socialismo sim, mas com liberdades. A extrema-esquerda protesta contra o imperialismo capitalista, os liberais dizem que o voto é a arma do povo e os anarquistas contestam,que a arma é que é o voto do povo. À noite, a reação lança granadas contra as lojas, envenenando o mundo inteiro com o rumor infame que o Portugal formoso e tranquilo das canções morreu.».

"Ao mesmo tempo, o povo parecia querer ignorar as rivalidades, entregando-se à embriaguez feliz de Abril: «O erotismo invadiu os cinemas e os quiosques de jornais, fazendo que milhares de espanhóis atravessem ao fim de semana a fronteira para poderem ver o filme mais proibido em Madrid, O Último Tango em Paris. Lisboa tornou-se uma cidade movimentada, com acidentes de viação espetaculares, não só porque os portugueses conduzem de uma maneira intrépida, mas também porque estão genuinamente contentes – e por isso deixaram de respeitar os semáforos.».

"Há uma prudência enorme nos textos de Gabo sobre Lisboa, o escritor quase anuncia que a Revolução tem os dias contados, que a Europa, os Estados Unidos e as divisões internas arrastarão inevitavelmente o país para longe da sua essência. García Márquez teme o rumo que as elites estão a tomar, mas encontra nobreza no povo. «Toda a gente fala e ninguém dorme, às quatro da manhã de uma quinta-feira qualquer não havia um único táxi desocupado. A maioria das pessoas trabalha sem horários e sem pausas, apesar de os portugueses terem os salários mais baixos da Europa. Marcam-se reuniões para altas horas da noite, os escritórios ficam de luzes acesas até de madrugada. Se alguma coisa vai dar cabo desta revolução é a conta da luz.»


"O MAIS BELO DOS OFÍCIOS

«Sou fundamentalmente um jornalista», disse o maior romancista colombiano, há 22 anos, numa entrevista a uma rádio de Bogotá. «O jornalismo é uma paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada no confronto descarnado com a realidade. Quem não tiver nascido para isto, quem não estiver disposto a viver exclusivamente para isto, jamais poderá permanecer neste ofício incompreensível e voraz, cuja obra termina após cada notícia, como se fosse para sempre, mas que não concede tréguas até começar tudo de novo, com mais ardor do que nunca, no minuto seguinte.» Gabo, que se tornou um dos escritores mais influentes do mundo, que ganhou um Nobel a escrever ficção, sempre considerou que a melhor das narrativas era a realidade.

"As suas reportagens sobre Lisboa não tiveram grande impacte na Colômbia, mas ele insistiu sempre na necessidade de escrever histórias como aquelas para que lentamente os horizontes dos cidadãos se abrissem. «As edições que tinham estes temas internacionais eram as que menos vendiam», recorda Enrique Santos Calderón. «Mas Gabo tinha avançado com o dinheiro e queria escrever sobre Portugal, como depois quis escrever sobre Cuba e mais tarde sobre Angola.» O seu interesse sobre o país tinha mais de um ano. «Entre 1968 e 1974, García Márquez viveu em Barcelona, foi lá que escreveu OOutono do Patriarca. Logo a seguir à Revolução dos Cravos, ele pegou no carro e foi até à fronteira portuguesa, mas não o deixaram entrar porque não tinha visto.».

"Desde o final de 1973 que o homem andava em trânsito: Barcelona, Bogotá e Cartagena de Índias. No ano anterior tinha ganho, com Cem Anos de Solidão o prémio literário venezuelano Rómulo Gallegos, o mais importante da América Latina, no valor de cem mil dólares. Uma parte desse dinheiro foi usada para fundar a revista Alternativa. «Depois da morte de Allende e da subida ao poder de Pinochet, tornara-se claro que a esquerda na América Latina precisava de esquecer as divisões e de se unir em torno de um projeto comum», explica Antonio Cavallero. «No primeiro número, em fevereiro de 1974, esgotámos a edição e num instante chegámos aos quarenta mil exemplares. A nossa filosofia era dar uma visão de esquerda, mas tratar os assuntos com rigor.».

"Portugal foi a primeira grande reportagem no estrangeiro da Alternativa. Nos anos seguintes, García Márquez haveria de escrever artigos sobre Cuba, Angola, Espanha, Panamá, Rússia e Vietname. «Não quero um boletim sindical, quero um jornalismo sério e comprometido até ao tutano», repetia uma e outra vez, nas reuniões que se prolongavam até altas horas da noite, em casa de Enrique Santos Calderón. As rivalidades internas e as pressões do governo fizeram Gabo desistir do projeto em 1980 e mudar-se para a cidade do México. Até 1978, a presidência de Alfonso López tinha dado alguma margem de manobra à Alternativa. A subida ao poder do governo conservador de Julio César Turbay coincidiu com o aperto do cerco ao escritor. Algumas figuras poderosas do país, nomeadamente a família Santo Domingo, anunciaram cortes de relações. «A saída da Colômbia foi um exílio não declarado», diz Jaime Abelló, presidente da Fundação de Novo Jornalismo Ibero-Americano, que ambos fundaram em Cartagena de Índias há 19 anos.
Jaime García Márquez é perentório: «O período mais político da vida do meu irmão começou com a revolução cubana e terminou com o fim da revista Alternativa.» Ao contrário do senso comum, diz ele, Gabo nunca foi comunista. «Era amigo de Fidel Castro, sim, mas também se dava com Henry Kissinger [secretário de Estado norte-americano entre 1969 e 1977], apesar de discordar dele. Fascinavam-lhe as lutas de classes, as transformações sociais, a ascensão do povo, tanto quanto era fascinado pelo poder. Toda a sua obra, de Cem Anos de Solidão a OOutono do Patriarca, passando por O General no Seu Labirinto e Ninguém Escreve ao Coronel, fala da solidão do poder, da subida ao poder e das vítimas do poder.».

"Juan Gossaín, o jornalista que recebeu um postal lisboeta de Gabo, acredita que houve um pouco desse fascínio no seu encantamento por Portugal. «A ele sempre lhe fascinou a ideia do ditador e, comparado a Franco, Salazar era mais tropical. Lisboa parecia uma cidade do Caribe e a figura de Spínola, que no fim do século xx ainda usava monóculo, era digna do realismo mágico dos seus livros.» Esta, diz Gossaín, era a conversa antes de partir para Portugal. Quando voltou, vinha doido com três descobertas: o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, os fados de Amália e o despojamento dos militares em relação ao poder. «Mas a primeira coisa que ele me disse foi que, ao contrário do que eu pudesse pensar, a feijoada não era um exclusivo brasileiro. E garantiu-me que comeu a melhor feijoada da sua vida num restaurante que não tinha mais de seis mesas, num bairro pobre de Lisboa.».

"CRÓNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA

"O anúncio feito por Jaime García Márquez em julho do ano passado causou alguma consternação no mundo literário. Aos 85 anos, o mais lido dos autores latino-americanos e um dos romancistas mais reconhecidos do mundo deixou de escrever. Não é bem uma morte, mas é um ponto final em tudo o que definiu a sua vida. A sua autobiografia chamava-se, precisamente, Viver para Contá-la.

"Nascido em 1927 em Aracataca, no Caribe colombiano, Gabriel foi o mais velho de 12 irmãos. Estudou Direito em Bogotá, mas, aos 21 anos, decidiu abandonar os estudos para se dedicar ao jornalismo. Mudou-se para Cartagena de Índias e empregou-se no El Universal. Daí rumou a Barranquilla, outra cidade caribenha, onde escreveu uma crónica que deu nas vistas, «Septimus». Até que, ao serviço de um dos principais jornais do país, El Espectador, se tornou conhecido em todo o país. Ao longo de uma série de 14 episódios contou a história do naufrágio de um barco e conseguiu com isso pôr em causa todo o governo colombiano. Os fascículos haveriam de ser reunidos no livro Relato de Um Náufrago.

"Depois da afronta ao executivo, o jornal decidiu enviá-lo como correspondente para a Europa. Foi aí que o homem começou a dedicar-se seriamente à escrita. Em 1955, já tinha publicado um romance que escrevera aos 18 anos, LaHojarasca e, em 1967, edita Cem Anos de Solidão, um romance centrado na imaginária terra de Macondo e das sete gerações da família Buendía. Considerada a obra maior do realismo mágico, até hoje, é indubitavelmente o livro de referência de Gabo. Graças a este romance e a O Outono do Patriarca [1975], ganhou todos os prémios que podia ganhar, incluindo o Nobel da Literatura, em 1982.

"Voltou ao jornalismo em 1974, para fundar a revista Alternativa, aventurando-se no jornalismo político. Aproveitou a sua reputação para viajar pelo mundo e, nesse contexto, veio a Lisboa em 1975, perceber a revolução e o período que se lhe seguiu. Apesar de ser já uma figura de proa das letras mundiais, essa viagem foi praticamente ignorada em Portugal, merecendo referências brevíssimas no Diário de Notícias, Jornal de Letras e no extinto Diário Popular. Em 1980, abandonaria o jornalismo, ao qual só voltaria em 1994, para fundar com Jaime Abelló uma fundação em Cartagena de Índias que promovesse a ética profissional e a investigação na América Latina e na Península Ibérica.

"Crónica de Uma Morte Anunciada, Do Amor e Outros Demónios, O General no Seu Labirinto, O Amor nos Tempos de Cólera e Memórias das Minhas Putas Tristes são algumas das suas obras mais relevantes. Há um mês, saiu na Colômbia uma coletânea de reportagens de Gabriel García Márquez, com o título Gabo Periodista. Reúne crónicas, reportagens e ensaios. Entre os trabalhos publicados não há registo de nenhuma das histórias que escreveu sobre Portugal".

[Publicado originalmente na edição de 28 de abril de 2013]

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Salário Mínimo - um caso de indignação


Toda a chantagem feita pelo governo, com o aval da troika e de algum patronato, sobre o aumento do salário mínimo nacional de 485 euros para 500 euros é, no mínimo, abjecta e reveladora do nível ético dessa gente.

É indigno que quase 500 mil trabalhadores em Portugal recebam esse salário mínimo, um salário que resvala a escravatura e, como se sabe, coloca na pobreza milhares de assalariados.

Tenho por mim que qualquer salário inferior a 700 euros é um roubo e uma vergonha nacional.

Em Portugal, o mínimo para se viver com alguma dignidade, mesmo se com horizontes limitados, é um rendimento mensal de mil euros por pessoa adulto, numa família com um máximo de um filho …

Basta fazer as contas. Por estes lados uma empregada de limpeza, uma actividade digna e honrada, mas com pouca qualificação exigida, é paga a 6 euros por hora, o que perfaz o equivalente a um ordenado mensal de 960 euros, tendo por base um horário de trabalho semanal de 40 horas, multiplicado por 4 semanas.

Por isso, ao avançar com um mínimo aceitável de 700 euros de salário , já estou a ser muito benevolente em relação ao pagamento por hora, e partindo do principio que um ordenado certo mensal é sempre mais seguro que um pagamento à hora.


Por isso a discussão sobre um aumento do salário mínimo de 485 para 500 euros é, como o diz Nicolau Santos, na crónica que pode ser lida em baixo, uma vergonha nacional que envergonha patrões, políticos, economistas e toda a burocracia da União Europeia…  

A vergonha dos 500 euros - Expresso.pt (clicar para ler)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

"O meu país não é deste Presidente, nem deste Governo" - Alexandra Lucas Coelho:

"Alexandra Lucas Coelho recebeu nesta segunda-feira o prémio APE pelo romance E a Noite Roda. Este é o texto do discurso que fez, no qual critica o actual poder político" (in Público):

"(...) Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um império perdido.
"E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho, pois, que este Presidente se faça representar na entrega de um prémio literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”.
"Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto em vez de mais baixo. Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos, sermos seres para a morte, que somos, que somos.
"Partimos então do zero, sabendo que chegaremos a zero, e pelo meio tudo é ganho, porque só a perda é certa.
"O meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que seja amar a pátria. Sei que amar Portugal é voltar do mundo e descer ao Alentejo, com o prazer de poder estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar em Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o Governo nos mandar embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.
"Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do Governo do seu partido. É do arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no Brasil, dando conta do pesadelo que o Governo de Portugal se tornou: Siza dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo que este Governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação, Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página”.
"Este país é dos bolseiros da FCT que viram tudo interrompido; dos milhões de desempregados ou trabalhadores precários; dos novos emigrantes que vi chegarem ao Brasil, a mais bem formada geração de sempre, para darem tudo a outro país; dos muitos leitores que me foram escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a perguntar que conselhos podia eu dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam emigrar.
"Eu estava no Brasil, para onde ninguém me tinha mandado, quando um membro do seu Governo disse aquela coisa escandalosa, pois que os professores emigrassem. Ir para o mundo por nossa vontade é tão essencial como não ir para o mundo porque não temos alternativa.
"Este país é de todos esses, os que partem porque querem, os que partem porque aqui se sentem a morrer, e levam um país melhor com eles, forte, bonito, inventivo. Conheci-os, estão lá no Rio de Janeiro, a fazerem mais pela imagem de Portugal, mais pela relação Portugal-Brasil do que qualquer discurso oco dos políticos que neste momento nos governam. Contra o cliché do português, o português do inho e do ito, o Portugal do apoucamento. Estão lá, revirando a história do avesso, contra todo o mal que ela deixou, desde a colonização, da escravatura.
"Este país é do Changuito, que em 2008 fundou uma livraria de poesia em Lisboa, e depois a levou para o Rio de Janeiro sem qualquer ajuda pública, e acartou 7000 livros, uma tonelada, para um 11.º andar, que era o que dava para pagar de aluguer, e depois os acartou de volta para casa, por tudo ter ficado demasiado caro. Este país é dele, que nunca se sentaria na mesma sala que o actual Presidente da República.
"E é de quem faz arte apesar do mercado, de quem luta para que haja cinema, de quem não cruzou os braços quando o Governo no poder estava a acabar com o cinema em Portugal. Eu ouvi realizadores e produtores portugueses numa conferência de imprensa no Festival do Rio de Janeiro contarem aos jornalistas presentes como 2012 ia ser o ano sem cinema em Portugal. Eu fui vendo, à distância, autores, escritores, artistas sem dinheiro para pagarem dívidas à Segurança Social, luz, água, renda de casa. E tanta gente esquecida. E, ainda assim, de cada vez que eu chegava, Lisboa parecia-me pujante, as pessoas juntavam-se, inventavam, aos altos e baixos.
"Não devo nada ao Governo português no poder. Mas devo muito aos poetas, aos agricultores, ao Rui Horta, que levou o mundo para Montemor-o-Novo, à Bárbara Bulhosa, que fez a editora em que todos nós, seus autores, queremos estar, em cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais hostil, com margens canibais.
"Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é prémio, é compromisso.
"Portugal talvez não viva 100 anos, talvez o planeta não viva 100 anos, tudo corre para acabar, sabemos. Mas enquanto isso estamos vivos, não somos sobreviventes(...)".
A intervenção integral de Alexandra Lucas Coelho pode ser lida em baixo: