"A mistificação histórica e
política do 25 de Novembro apouca-o, porque o seu significado real justificava
uma comemoração digna nos seus 50 anos, em 2025, mais aquilo que traduz esta
capa do Diabo, a ideia de que a liberdade e a democracia nasceram impolutas
apenas no 25 de Novembro de 1975. O 25 de Abril não dera aos portugueses a
“verdadeira liberdade”.
Era isto que, em 1974 e 1975,
diziam, afirmavam e em função disto actuavam os partidários da ditadura que, de
1926 a 1974, oprimia os portugueses. Estas frases têm implícitas várias
afirmações. Uma é de que não falo de “saudosistas” da ditadura, porque a
palavra é mole. Eram muito mais que “saudosistas”. E digo oprimir porque,
durante 48 anos, os portugueses não mandavam no seu país, naquela que foi a
mais longa ditadura da Europa no século XX, com excepção da URSS. Não é pouco,
é muito, e a capa do Diabo glorifica esse muito, mistificando o que aconteceu no
25 de Novembro de 1975 para atacar o 25 de Abril.
Há quem vá dizer que uma coisa é
o Diabo, outra o “espírito” do 25 de Novembro, que seria o que presidiria às
comemorações da Assembleia da República. Infelizmente para a nossa democracia
não é verdade.
Começo por perguntar por que
razão o 25 de Novembro é comemorado aos 49 anos, quando o 25 de Abril foi aos
50. As datas de comemoração normalmente correspondem a números redondos, e não
se percebe a pressa de antecipar um ano a comemoração do 25 de Novembro, a não
ser para o colocar no mesmo plano do 25 de Abril, ou, pior ainda, considerar
que se pode comparar o seu significado histórico. Está-se a um passo de
materializar a posição que está por detrás da capa do Diabo. O resto da capa, o
“escapar à ditadura comunista”, também não tem qualquer fundamento histórico.
O 25 de Novembro pode e deve ser
comemorado, mas é como ele foi, “como ele foi” foi sem dúvida importante no
processo que, do 25 de Abril à plena democracia, teve várias etapas. O
nascimento da nossa democracia, a partir da conquista da liberdade em 25 de
Abril, demorou mais ou menos dez anos. Esses anos foram convulsivos,
conflituais, mas o que é que se esperava da queda de uma ditadura, que conduzia
uma Guerra Colonial, com censura todos os dias, com uma polícia política sem
lei, com prisões e repressão, com altas taxas de analfabetismo, emigração em
massa e enorme pobreza? Queriam que essa transição fosse “higiénica”, sem
pecado? Muito bem, ajudassem a derrubar a ditadura mais cedo, a acabar com a
guerra, pagando as consequências, e para isso
Por que razão o 25 de Novembro é
comemorado aos 49 anos?
Muitos dos que se queixam do
tumulto do pós-25 de Abril, com efeitos trágicos em particular nas colónias,
não mexeram uma palha. O nascimento da democracia teve avanços e recuos e
várias etapas que se estendem desde a revolução à derrota do 11 de Março (silêncio),
às eleições para a Assembleia Constituinte, à vitória do 25 de Novembro, à
vitória da AD, ao fim da tutela militar da democracia e, por fim, à eleição do
primeiro Presidente civil.
Nesses avanços e recuos, o 25 de
Novembro foi crucial para travar não uma “ditadura comunista” — o PCP continuou
no governo e algumas das mais importantes nacionalizações são posteriores a
Novembro —, mas sim o risco de um confronto entre fracções militares que se
podia transformar numa guerra civil. Aliás, quando se confronta os defensores
da versão “diabólica” do 25 de Novembro com as provas da participação comunista
num golpe, não passam da “entrevista” de Cunhal a Oriana Fallaci, que qualquer
pessoa que conheça o pensamento de Cunhal, com o que se sabe da estratégia do
PCP nesses meses e da posição da URSS, sabe que ele não poderia ter dado
aquelas respostas. Acresce que, quando confrontada com os desmentidos à sua
“entrevista”, Fallaci prometeu divulgar as gravações, o que nunca aconteceu. O
PCP tem muitas culpas no cartório no PREC, mas esta não tem.
Na verdade, os derrotados do 25
de Novembro são, a 25, a ala esquerdista ligada ao Copcon, que por razões
intrinsecamente militares e corporativas sai à rua, ficando isolada e derrotada.
A 26, os derrotados são outros, todos aqueles que queriam ilegalizar o PCP.
A mistificação histórica e
política do 25 de Novembro apouca-o, porque o seu significado real justificava
uma comemoração digna nos seus 50 anos, em 2025. O problema é que as pessoas a
serem homenageadas seriam, com excepção de Jaime Neves — o herói solitário das
comemorações “fake” de 2024 —, o Presidente general Costa Gomes, os militares
do Grupo dos Nove, que são os mesmos que hoje se recusam a ir a estas
comemorações, os seus vivos como Vasco Lourenço ou Sousa e Castro — demasiado
“esquerdistas” para os propugnadores das comemorações “diabólicas” —, Ramalho
Eanes e, no plano civil, Mário Soares, os seus companheiros da luta da Fonte
Luminosa e os homens do PPD, Sá Carneiro e Emídio Guerreiro.
Ou seja, tudo gente que merecia a
“verdadeira” homenagem, e não a que tem na sua propositura na Assembleia um
destacado membro da resistência armada ao 25 de Abril e os membros da direita
radical no CDS e no PSD. Vão todos participar numa mistificação histórica, que é
ao mesmo tempo uma menorização do valor do 25 de Novembro. Mas os tempos estão
para estas coisas, que a prazo se pagam caro."
José Pacheco Pereira (Historiador).
In Público - Edição Lisboa, 23
Nov 2024