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quinta-feira, 1 de julho de 2021

Ainda a propósito do “branqueamento da História” no Congresso do MEL (1).


 Dei-me, finalmente, ao penoso trabalho de assistir às duas intervenções do Congresso do Movimento “Europa e Liberdade” que mais polémica geraram, a de Maria Fátima Bonifácio e a de Nuno Palma.

A primeira, e menos interessante, a de Maria de Fátima Bonifácio, que numa comunicação indigente, “relatou”, em tom monocórdico e cansado, como se falasse para uma plateia de ignorantes,  a “história” da consolidação do “Estado” português, desde D. Afonso Henriques, uma história cheia de lugares comuns e de interpretações forçadas, para nos conduzir ao elogio de “um tirano duro e frio”, mas “inteligente e patriota”, que, mesmo “prendendo, deportando e perseguindo”, impusesse “à estima do mundo um povo”, libertando-o de políticos torpes e estúpidos, citando as palavras de Basílio Teles no final da monarquia,  palavras com as quais nos conduziu, desta vez citando Fernando Pessoa, para justificar, com elas,  “porque motivo o país estava a pedir um Salazar”, o “salvador desse país  cativado pelo Estado, e por um parlamento “eloquente e palavroso” , na “sua simplicidade, dura e fria”.

“Esqueceu-se”, a eminente historiadora, que Fernando Pessoa rapidamente se desiludiu com mítico “salvador”, ainda no início da construção do Estado Novo. Ao que parece, para a sua mal preparado comunicação, não leu a obra “Fernando Pessoa – Sobre Fascismo, Ditadura Militar e Salazar”, de José Barreto, editado em 2015 pela Tinta-da-China, de onde transcrevemos este esclarecedor poema:

“Poema sobre Salazar

 

António de Oliveira Salazar

Três nomes em sequência regular...

António é António.

Oliveira é uma árvore.

Salazar é só apelido.

Até aí está bem.

O que não faz sentido

É o sentido que tudo isto tem

 

Este senhor Salazar

E feito de sal e azar.

Se um dia chove,

A água dissolve o sal,

E sob o céu

Fica só azar, é natural.

 

Oh, c’os diabos!

Parece que já choveu...

... ... ... ... ... ... ... ... ...

 

Coitadinho

Do tiraninho!

Não bebe vinho.

Nem sequer sozinho...

 

Bebe a verdade

E a liberdade.

E com tal agrado

Que já começam

A escassear no mercado.

Coitadinho

Do tiraninho!

O meu vizinho

Está na Guiné

E o meu padrinho

No Limoeiro

Aqui ao pé.

Mas ninguém sabe porquê.

Mas enfim é

Certo e certeiro

Que isto consola

E nos dá fé:

Que o coitadinho

Do tiraninho

Não bebe vinho,

Nem até

Café

 

Fernando Pessoa

ANTOLOGIA in Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar,

de Fernando Pessoa 5-4-1935

Do painel onde participou a dita historiadora, salvaram-se as intervenções de Jaime Nogueira Pinto e de José Miguel Júdice que, de forma indirecta, irónica e respeitosa, desmontaram o essencial da comunicação de Fátima Bonifácio, facto que a mesma parece não ter percebido.

À segunda intervenção, a mais interessante,  a de Nuno Palma, voltaremos a em próxima ocasião.



terça-feira, 24 de março de 2015

Breve homenagem a Herberto Helder


Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

in Herberto Helder
// Consultar versos e eventuais rimas


O Amor em Visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
-   Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
-   Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
-   Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
-              Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura, não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz
sobre as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
-   o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
-    E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
a cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
-              No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
-   Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
-  aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
-   no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


in Herberto Helder, 'O Amor em Visita'

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Um Poema para a semana - "Do Outro Lado", de Ana Paula Alexandra


DO OUTRO LADO
Não, não queiram saber.

É lá longe, em terras com nomes estranhos,
com gente que não fala a nossa língua,
que tem outras raízes, outros deuses,
outra forma de olhar as fronteiras,
outra maneira de morar em casas em ruínas
ou tapadas por muros ou que ficam em ruas que já não existem.

Não, não vale a pena deter o olhar no mapa
são países que não estão no roteiro das viagens,
onde nada acontece do que nos importa,
onde só há gente a tentar viver mais um dia,
onde o futuro definitivamente não entra nos sonhos,
caso sonhem …

Afeganistão, Síria, Iraque, Palestina…

Tudo fica em terra estranha,
Tudo permanece do outro lado do mundo que conhecemos.

Não nos pertencem.

Revoltam-se, sobrevivem, morrem todos os dias,
mas não são gente como nós,
as suas histórias não são notícia,
notícia são as bombas a cair.

Mas estranhamente, neste mundo estranho
quando se consegue ver um rosto, está lá tudo:
as lágrimas salgadas como o mar da nossa terra
a saudade por inteiro que é só nossa,
a raiva de não ir mais além, tão portuguesa,
um fado tão antigo no olhar com que se espera o futuro…

Podíamos ser nós.


Ana Paula Alexandra

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Um Poema para a semana. "Vendaval" de Ana Paula Alexandre

Vendaval

Passar, na mesma noite, por todas as fases da lua.
Ser rio e ponte entre as margens,
ter o som do silêncio e o canto de uma ave..
Ser a que fica e a que parte e ser só uma
subir à montanha e dizer bom dia ao mundo.

Erguer o copo
e conviver com os deuses,
de igual para igual.

Sentir a alma e o corpo entrelaçados.
Ser muito mais do que uma estrela do mar
e ter mil braços
e um olhar onde a alegria pousou as malas.

De repente
ir a correr comprar o bilhete,
apanhar o último comboio no último minuto
e partir,
porque há alguém onde moramos
e estamos longe de casa…

Vida…
Quem nunca a teve, assim, nos braços,

não sabe que os dias perfeitos acontecem…

Ana Paula Alexandre (2014)

quarta-feira, 2 de julho de 2014

O DIA DE SOPHIA:

A propósito da passagem do 10º aniversário de Sophia e da sua trasladação para o panteão nacional , que pode ser acompanhada na edição especial da ANTENA 1, aqui recordamos e reproduzimos alguns documentos que a recordam, como o dossier  a ela dedicado pela Biblioteca Nacional, uma pouco conhecida entrevista concedida a uma televisão francesa em 1988.

Reproduzimos também aqui o seu poema Pátria, uma dos mais belos sobre o país que tanto amou:

PátriaPor um país de pedra e vento duro 
Por um país de luz perfeita e clara 
Pelo negro da terra e pelo branco do muro 

Pelos rostos de silêncio e de paciência 
Que a miséria longamente desenhou 
Rente aos ossos com toda a exactidão 
Dum longo relatório irrecusável 

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento 

E pela limpidez das tão amadas 
Palavras sempre ditas com paixão 
Pela cor e pelo peso das palavras 
Pelo concreto silêncio limpo das palavras 
Donde se erguem as coisas nomeadas 
Pela nudez das palavras deslumbradas 

- Pedra   rio   vento   casa 
Pranto   dia   canto   alento 
Espaço   raiz   e água 
Ó minha pátria e meu centro 

Me dói a lua me soluça o mar 
E o exílio se inscreve em pleno tempo 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'
Por último, aqui deixamos um dos seus poemas mais conhecidos, cantado por Francisco Fanhais:

quinta-feira, 19 de junho de 2014

O OM DO DIA - 757 - Construção - Chico Buarque


Recordamos hoje alguns dos momentos mais significativos da carreira de Chico Buarque. 
O musico e poeta brasileiros completa hoje 70 anos de idade.
A história  da sua carreira também pode ser consultada AQUI.


Construção

Por Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague
  
1971 © by Cara Nova Editora Musical Ltda.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Um poema de Ana Paula Alexandre : "País de Costas para o Futuro" :

Aí em meados de 70 gostava muito de conversar com a Paula Alexandre. Encontrava-a quase sempre só, ali no café em frente à Henriques Nogueira.
Ela não era de Torres Vedras (notava-se...), mas tinha uma tia que vivia ali no prédio ao lado do "Segundo" e tinha histórias cativantes para partilhar comigo.
Já não me lembro como a conheci, talvez por um amigo comum.
Também já não me lembro bem das conversas, mas lembro-me do seu sorriso e da sua maneira de falar.
Depois os dias separaram-nos, durante quase três décadas.
Por ironia do destino frequentei muitas vezes aquele mesmo café, que ficava em frente da escola por onde leccionei quase as mesmas décadas e lembrava-me muitas vezes, não das conversas com a Paula, mas da sua presença agradável, e interrogava-me sobre o seu destino.
Mesmo com o facebook, pensei que não valia a pena procurá-la, pois só me lembrava do seu primeiro nome, Paula e...Paulas há muitas ( mas poucas como ela).
...Até que um dia foi ela que surgiu por aqui a dar notícias.
Não a reencontrei ainda, apenas nos vamos cruzando por aqui, mas revelou-me uma faceta que não lhe conhecia, mas que confirma a sua forma  sensível de olhar o mundo, a sua faceta poética.
Nas suas páginas tenho lido poemas muito belos e não resisti a transcrever um dos últimos, dedicado a José Afonso , sugerindo-lhe que, um dia, se faça publicar, pois a sua sensibilidade merece ser partilhada:
PAÍS DE COSTAS PARA O FUTURO
Neste país, a miséria não se revolta, envergonha-se.
Espera-se que os pobres se escondam nas ruas mais tristes da cidade.
Os jovens. sem futuro, emigram para terem presente
e os velhos, que construíram esta terra, são culpados de existir,
morrem sozinhos, porque a mais não têm direito.
Neste país, muitas medalhas são dadas aos cobardes.
A imoralidade ancorou no Tejo e tomou conta do Paço
e a impunidade tem um visto gold para andar por aí…
Aqui a mentira é dita com o Pai Nosso na boca,
e se os dias mudam as palavras, a culpa é dos dias…
Nesta terra, crime é roubar um pão,
não é crime tirar o pão…
Quem construiu os palácios não entra neles
e o voto é entendido como o poder de silenciar quem votou.
Neste país,
chama-se melancolia à passividade,
chama-se responsabilidade à submissão
e a pobreza é poética…
E o bom povo português, ao ouvir os lobos lá fora,
senta-se à lareira e espera…é sereno, este bom povo.
Afundados na saudade dos tempos da liberdade,
Colonizados pela memória do medo dos tempos mais sombrios,
Ou crentes no herói que há-de chegar, não importa quando,
nem porquê, mas há-de chegar,
todos os dias, as gentes do meu país
destroem, silenciosamente, as pontes para o futuro,
sem entenderem o preço da revolta silenciada.
Não é fado.
É apenas um país que se trancou dentro de casa
com medo de abrir a porta,
é um país aprisionado no seu próprio medo.
E os lobos andam soltos pela rua…
Mas estamos em Abril e Maio está próximo…
Ana Paula Alexandre

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Homenagem a Vasco Graça Moura:

 soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"


Morreu Vasco Graça Moura, um intelectual renascentista no século XXI - PÚBLICO

...e uma canção de Mísia com um poema de Graça Moura:

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

40 anos depois da sua morte: -Recordar Neruda...





A Infinita  


Vês estas mãos? Mediram
a terra, separaram
os minerais e os cereais,
fizeram a paz e a guerra,
derrubaram as distâncias
de todos os mares e rios
e, no entanto,
quando te percorrem
a ti, pequena,
grão de trigo, calhandra,
não conseguem abarcar-te,
fatigam-se ao agarrar
as pombas gémeas
que repousam ou voam no teu peito,
percorrem as distâncias das tuas pernas,
enrolam-se na luz da tua cintura.
Para mim tu és tesouro mais rico
de imensidade do que o mar e seus cachos
e és branca e azul e extensa como
a terra nas vindimas.
Nesse território,
desde os pés à fronte,
andando, andando, andando,
passarei a vida.

Pablo Neruda, in "Os Versos do Capitão"

terça-feira, 19 de março de 2013

NO DIA DO PAI...ou "as palavras que nunca te direi"...





"Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. "Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei".



José Luís Peixoto

In Morreste-me, Lisboa, Temas e Debates, 2001

                              

(outros excertos ditos por Luis Peixoto)