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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

DIÁRIOS DE KIEV – (17 e 18) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 28 de Fevereiro de 2022

                                  

Relato de quatro dias num confortável abrigo de Kiev

Por  Pedro Caldeira Rodrigues, agência Lusa, em Kiev

Kiev, 28 fev 2022 (Lusa) – Caiu como uma bomba a notícia da invasão da Ucrânia pelo exército russo por três frentes, um cenário até essa madrugada de 24 de fevereiro excluído pela generalidade dos analistas, fazendo lembrar o falhanço das previsões de resultados eleitorais.

No hotel Ukraine, situado mesmo em frente à Praça Maidan (Independência), palco das grandes convulsões políticas de início deste século no país eslavo, o ambiente era de apreensão, como em toda a cidade.

Muitos jornalistas dirigiam-se para a entrada e entravam em direto para as suas televisões, de costas para uma praça central anormalmente vazia nessa manhã de quinta-feira, e livre do caótico trânsito que entope as principais artérias desta metrópole de três milhões de habitantes.

Para o jornalista da agência Lusa foi um regresso, menos de três semanas após a primeira deslocação e estreia no país eslavo, que decorreu entre 24 e 29 de janeiro a convite da Academia de Imprensa Ucraniana e patrocínio da embaixada dos Estados Unidos, com deslocações às cidades de Kramatorsk e Severodonetsk, no Donbass sob controlo ucraniano.

Os dias anteriores ao do início da invasão tinham decorrido entre contactos oficiais e reportagens, com estadia no mesmo hotel, desta vez no 11º andar deste edifício de referência de Kiev. Em Severodontesk o alojamento tinha sido no Mir, Paz em eslavo, o que agora soa a ironia.

O Ukraine, construído em 1961 em pleno centro da cidade e inicialmente designado "hotel Moscovo", foi erguido no local originalmente ocupado pelo primeiro arranha-céus da cidade, a Casa Ginzburg, propriedade de uma abastada família judaica e que foi arrasado pelas tropas soviéticas na sua retirada perante o invasor alemão, em 1941. A sua construção concluiu o conjunto arquitetónico da Khreshchatyk, uma das principais avenidas de Kiev, e um símbolo da reconstrução da parte central da cidade após a Segunda Guerra Mundial.

Nessa manhã, a cidade quase fechou. Deixaram de circular, táxis, e quase todos os veículos de transportes à exceção do metro, que também passou a servir de abrigo para a população.

Alguns jornalistas, apressados, carregaram as suas malas e equipamentos para a bagageira de carrinhas. O átrio do hotel, com as suas colunas alinhadas, grandes escadarias, amplos cadeirões, ficou quase deserto. Nas traseiras, já ninguém se recolhe junto ao "Templo do Arcanjo Miguel e Novos Mártires Ucranianos", particular local de peregrinação onde regularmente vão prestar tributo dirigentes nacionais ou chefes de Estado, de Governo, ministros, em visita oficial.

Há o risco de ficar só, sem contactos, sem transportes. E há a perspetiva de tentar sair do país.

Na véspera, um alarmante telefonema do embaixador, após contacto com Lisboa, excluiu totalmente a hipótese da viagem que estava marcada, com a equipa da RTP, a Cândida Pinto e o David Araújo, em direção da Kramatorsk, na linha da frente do conflito com os territórios separatistas pró-russos.

O comboio partia às 06:10, mas não deverá ter chegado ao destino. Também foi aconselhada a saída imediata de Kiev em direção à fronteira oeste, à Polónia. Duas carrinhas preparadas no final da manhã dessa quinta-feira, levar o menos possível, têm de vir a pé até à embaixada, não podemos esperar, partir rapidamente… Não foi possível e os jornalistas ficaram na capital ucraniana.

Após algum desespero, o repórter da Lusa conseguiu finalmente garantir um táxi com a ajuda de um jornalista oficial. O objetivo foi juntar-se às equipas da RTP e SIC – Irina Shev, Rui do Ó, Ana Moreira e Fernando Silva – instaladas num outro hotel, num apelo gregário, de proteção, em tempos de grave crise.

Que contraste com o dia anterior, quando se dirigiu ao hotel para onde agora tentava alojar-se, para seguir com a Cândida e o David até um estabelecimento onde vendem coletes à prova de bala e capacetes, na perspetiva da viagem até ao Donbass.

Um trânsito infernal, as principais artérias cortadas pela polícia, o impulso de saltar do táxi e fazer o resto do caminho a pé, até ao local de encontro. Sempre a subir, nesta cidade também de pequenos montes e colinas.

Pelo caminho, veículos blindados e soldados totalmente fardados, uma, duas pessoas, caminham com ar pensativo. No átrio do novo hotel, uma azáfama. Chegou uma equipa da Cruz Vermelha, confirmam-se passaportes, uns no ‘check-in’, outros no ‘out’.

Na noite dessa quinta-feira, ainda se jantou no restaurante, "self-service" com diversas opções. Mas no dia seguinte, tudo mudou. O ruído das sirenes comprovava o início de uma guerra. Criou-se um abrigo improvisado no último piso da garagem, foram acolhidas famílias e outros habitantes do bairro mais sós. Estes trouxeram roupas, colchões, os seus animais e, alguns, cartas para passarem um tempo que parecia nunca mais terminar.

A entrada do hotel foi barricada com placas de madeira, a porta fechada, com um aviso à entrada indicando que o hotel não funciona e que o ATM não funciona. O piso menos dois, na garagem-abrigo, está repleto, quase sem mais espaço. Há casa de banho, e após percorrer alguns corredores um local para fumar. Mas os alojados no hotel mantêm privilégios, sobe-se aos quatros e está-se à vontade.

É tempo de racionamento, também sentido no hotel onde agora apenas se serve uma refeição quente, ao jantar e no abrigo. O pequeno-almoço, papas de aveia, um ovo cozido, ao almoço uma sopa instantânea e sandes, e há ainda bolachas, chocolates, sumos, água, café e chá em quantidade. A grande sala onde se serviam as refeições está vazia. Os pratos empilhados, os recipientes para a comida vazios. E do bar foram retiradas todas as garrafas em exposição.

Na manhã de hoje, foi possível sair à rua mais de 48 horas após um estrito recolher obrigatório motivado pela lei marcial. As informações oficiais falaram de "sabotadores" infiltrados na cidade, o silêncio da noite tinha sido interrompido por rajadas de metralhadora e o som de explosões, mais ao longe.

Nestes tempos de retiro, os jornalistas fazem diretos para as suas televisões, após recolherem as últimas informações, ou escrevem. As refeições são em conjunto e tenta-se decidir os próximos passos. Há contactos regulares com autoridades portuguesas, civis e militares. E recebem-se muitas mensagens dos mais próximos, de amigos. "Como estás? Bem? Força!".

Há mais gente à espera na pequena mercearia que fica a poucos metros do hotel do outro lado da rua. Os enchidos empacotados, as conservas, a fruta, começam a desaparecer. Há muitos idosos, levam enlatados, chocolates, bolachas.

Chegam três soldados do exército ucraniano, armados e fardados, têm primazia. Compram tabaco, uns refrigerantes, e partem apressados. Um homem, cabelo grisalho, barba branca, fardado, passa encurvado com uma enorme mochila.

Há um sentimento de comiseração entre os ucranianos. Quase que se desculpam por também estarmos envolvidos numa situação tão imprevisível, que agora ameaça degenerar em guerra total.

"Também lamentamos que estejam aqui, não nos queremos sentir culpados, mas temos de defender a nossa terra", disse-me uma habitante de Kiev durante um pequeno passeio por um parque. Mas são os ucranianos que vão ficar aqui, os restantes estão apenas de passagem”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

Ucrânia: O êxodo de Kiev

por  Pedro Caldeira Rodrigues, agência Lusa, em Kiev

Kiev, 28 jan 2022 (Lusa) – A estação ferroviária central de Kiev é o ponto de confluência de centenas, milhares de pessoas, que tentam sair da capital ucraniana em direção às fronteiras oeste, ou a zonas mais seguras do país.

Famílias transportam em malas o que conseguiram juntar, levam os filhos, alguns bebés, animais de estimação. Amigos despedem-se com lágrimas nos olhos.

À entrada, três polícias fortemente armados vigiam os movimentos. No átrio, centenas de pessoas acotovelam-se junto dos painéis eletrónicos. Vão partir dois comboios, um em direção a Lviv, oeste, outro um pouco mais tarde para Ivano Frankifsk, no centro do país.

O apeadeiro está repleto de pessoas que aguardam a chegada do primeiro comboio. Muitos não conseguem chegar, acotovelam-se, gritam, crianças choram, um cão ladra. São sobretudo mulheres, crianças, idosas e idosos. Alguns desistem.

Desde quinta-feira, o dia do início da invasão das tropas russas, que a estação central de Kiev não descansa, mas os homens entre os 18 e os 60 anos estão mobilizados para um combate que se avizinha.

As viagens são gratuitas, devido à situação de emergência nacional. E as pessoas não têm dinheiros para pagar os mil dólares que agora se cobram para sair da cidade até uma zona mais segura, os cinco mil dólares para rumar em direção às fronteiras da Roménia ou Moldova, o percurso mais seguro de momento através de uma estrada em más condições e que pode demorar 18 horas.

"As pessoas têm medo, têm crianças, querem sair daqui. Não as censuro, mas eu vou ficar", diz Ivan, um jovem que agora transporta pessoas na sua carrinha de dois lugares, um "negócio" com escassa oferta e em alta.

Aos pares, polícias fortemente armados passam na parte exterior do grande edifício. Perto, uma grande central de aquecimento a gás, que canaliza calor para muitas habitações desta zona da cidade, com as suas três grandes chaminés a expelir um fumo branco, contínuo. Gás vindo da Rússia e a Ucrânia ainda é território de trânsito para que esta energia vital chegue a outras regiões das Europa.

No percurso, carrinhas da polícia vigiam o trânsito. Um carro foi parado, revistam os ocupantes, pedem documentos. Á frente, outro carro esmagou-se contra um poste. Um outro carro da polícia está parado nesse local. Kiev tornou-se numa cidade vigiada, nervosa, triste”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

Invasão da Ucrânia – Só cá faltava o racismo!!


Quando ontem me mostraram vídeos, onde se revelavam as atitudes racistas das autoridades ucranianas, junto à fronteira polaca, no tratamento que estavam a dar a negros e pessoas de origem árabe, trabalhadores na Ucrânia, que tentavam fugir da guerra, atribui isso a fake news inventadas pelos russos.

Afinal, infelizmente, não são fake news.

Já hoje, numa reportagem do jornal Público, sobre os refugiados ucranianos que fugiam para a Polónia, se referia o “tratamento diferenciado” dado a negros e magrebinos, que procuravam fugir à guerra, junto com a sua família, por parte das autoridades fronteiriças ucranianas e polacas (reportagem “Refugiados…”, de João Ruela Ribeiro, Público de 28 de Fevereiro de 2022), tratamento igulmente denunciado por brasileiros à imprensa do seu país.

Também hoje, logo de manhã, a RTP 1 falava com uma portuguesa de origem africana, a viver em Portugal, que se queixava das dificuldades que estavam a levantar ao seu filho e a um colega dele, filho esse com nacionalidade portuguesa e passaporte português, cidadão da União Europeia, como destacava essa mãe em desespero, dificuldade essa motivada apenas pela cor da pele.

Agora, neste momento, perto do meio-dia, oiço uma reportagem na Antena 1, a partir da fronteira polaca, onde se confirma o tratamento desigual em relação aos refugiados, em função da cor da pele.

Sem esquecer  a responsabilidade máxima do ditador russo por toda esta situação, uma invasão ilegal e desumana de um país soberano, como o é a Ucrânia, não podemos deixar que actos como estes tenham lugar.

A primeira baixa de uma guerra é a verdade, outra é trazer ao de cima o pior da condição humana. 

Uma guerra trás ao de cima o melhor da condição humana, como a solidariedade demonstrada pelo mundo em relação ao agredido povo ucraniano e a resiliência e combatividade dos ucranianos, mas também o pior da condição humana, com se demonstra por estes actos lamentáveis de racismo por parte de alguns ucranianos e polacos.

Ficamos a aguardar a reacção das autoridades portuguesas e das instituições europeias  em relação a estes lamentáveis actos de racismo, e que a nossa comunicação social não deixe passar em claro estes lamentáveis actos perpetrados por uma minoria de ucranianos.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

DIÁRIOS DE KIEV – (15 e 16) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 26 e 27 de Fevereiro de 2022


Kiev, a cidade barricada

por Pedro Caldeira Rodrigues (LUSA)

Kiev, 26 jan 2022 (Lusa) – Desde quinta-feira que Kiev mergulhou num silêncio profundo, com as suas ruas desertas, os seus parques abandonados, os caminhos pelos jardins que homenageiam heróis de distintos tempos e ideias sem vivalma.

Desde essa madrugada, que anunciou o início da invasão militar russa, ficou deserto o parque onde foi construído o Arco da Amizade das Nações, uma imensa estrutura que celebrava a irmandade dos povos socialistas, agora desfeita.

Ficaram desertas as belas catedrais de Santa Sofia e Santo Alexander, as igrejas e mosteiros ortodoxos, os museus que recordam o Holodomor, a morte pela fome do início da década de 1930, ou a história da Ucrânia.

Estão sós as estátuas a heróis soviéticos ou nacionalistas, está só o Parque Mariyinsky, as margens do Dnieper ou a imponente estátua à Mãe Pátria, estrutura de aço, com 120 metros de altura e 560 toneladas. Escudo com foice e martelo erguido na mão esquerda, espada com 16 metros na direita, um orgulho dos tempos soviéticos e uma celebração intemporal à “Grande Guerra Patriótica”.

Também sós os imensos murais com as fotos dos soldados ucranianos mortos no conflito com os separatistas russófonos do Donbass, junto à reconstruída igreja de São Miguel. 

Três milhões de pessoas fechadas em casa, após a imposição da lei marcial e do recolher obrigatório, que foi hoje inicialmente antecipado para começar às 17:00 e terminar à mesma hora 07:00 e depois alargado até às 08:00 de segunda-feira.

Apenas alguns habitantes aproveitaram hoje o sol para passear os seus animais de estimação. Outros concentraram-se junto a farmácias, ou nos poucos estabelecimentos comerciais ainda abertos. Levam caixas com mantimentos, conservas, bebidas, produtos de higiene. O açambarcamento começou em Kiev.

Alguns carros, apressados, a polícia nervosa e determinada nas ruas, e pouco mais. Restaurantes, bares, a maioria dos estabelecimentos, tudo vazio. A cidade barricou-se, à espera do inimigo. E armou-se.

O hotel onde se encontram diversos jornalistas, não longe da ópera de Kiev, foi transformado em ‘bunker’. As portas laterais e a grande entrada giratória estão fechadas e à guarda de um funcionário. Painéis de madeira protegem os vidros e a receção está sempre vazia.

A comida também foi racionada e é servida no abrigo improvisado, o piso menos dois, que integra a garagem do edifício. Ao pequeno-almoço uma sandes, uma maçã e café, chá ou água, algum leite. Ao almoço, uma sopa instantânea. Estão sempre disponíveis algumas bebidas, sumos, por vezes, bolinhos ou barras de chocolate. O jantar é a refeição mais reforçada, um prato geralmente com massa e carne. E o serviço de quartos deixou de ser assegurado.

Os inquilinos estrangeiros do hotel confundem-se no abrigo com diversos moradores das redondezas, que também foram acolhidos para se protegerem. Uma família numerosa diverte-se com um jogo de cartas, o seu cão branco, talvez um Akbash da Turquia, estendido num tecido almofadado, junto a um recipiente com água, alheio ao estranho mundo dos homens e olhar sempre indagador.

Trouxeram mantimentos, colchões, cadeiras. Alguns estendem-se nos colchões, outros juntam três cadeiras para o fazerem, muitos e muitas utilizam apenas o edredom separado do chão por um cartão mais grosso.

Para animar, alguns trouxeram guitarras, tocam e cantam, e muitos reúnem-se em redor para acompanhar o ritmo, gravar, fotografar. Depois, pouco a pouco, instala-se o silêncio. Dos microfones surge mais um aviso sobre sirenes a ecoarem na cidade, a possibilidade de novos ataques aéreos. Tenta-se dormir mais outra noite na cidade barricada. Por quanto tempo, todos se interrogam”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

As “revoluções coloridas” e a vingança de Putin

por Pedro Caldeira Rodrigues

Kiev, 27 fev 2022 (Lusa) – A invasão militar da Rússia à Ucrânia, além dos argumentos oficiais do Kremlin sobre a “desmilitarização e desnazificação” do país vizinho, também está a ser encarada como uma vingança pessoal do Presidente russo face à recente evolução política interna. 

A “Revolução da Dignidade” do inverno de 2014, que implicou a fuga do ex-Presidente Viktor Ianukovytch – desde então exilado na Rússia e condenado em 2019 à revelia por um tribunal ucraniano a 13 anos de prisão –, sempre foi encarada pelo Kremlin, em particular por Vladimir Putin, como uma revolta “fabricada” destinada a afastar a Ucrânia da sua natural relação de afinidade, mesmo que dependente, com a Rússia, no contexto do “grande mundo eslavo” que também inclui bielorrussos. 

O “Euromaidan”, também assim designado porque o pretexto da revolta foi a recusa de Ianukovytch em promover um acordo de associação com a União Europeia e, em contrapartida, reforçar os laços com Moscovo – em particular no campo económico e num país muito dependente do “grande irmão” eslavo –, nunca foi legitimado pelo Kremlin. 

Mas foi dez anos antes, com o triunfo da designada “revolução laranja” em 2004, e com Putin já há quatro anos no poder, que as relações entre Moscovo e Kiev se começam a deteriorar. 

O afastamento do “pai da independência” Leonid Kuchma, que cumpriu dois mandatos entre 1991 e 2005, promotor do início das privatizações que deram origem a um punhado de oligarcas próximos do círculo presidencial (como sucedeu em simultâneo na Rússia de Boris Ieltsin), e “inofensivo” para o Kremlin, fez soar os alarmes em Moscovo. 

Em particular, a eleição em 2005, do Presidente “pró-ocidental” Viktor Yushchenko, que derrotou no escrutínio o então primeiro-ministro cessante Viktor Yanukovych, definido como “pró-russo”. 

Apesar de se ter mantido no poder, o mandato de Yushchenko – alvo de alegado envenenamento em setembro de 2004 que lhe deixou marcas físicas – , ficou assinalado pelos graves conflitos internos com a então primeira-ministra Yulia Tymoshenko, sob acusações de traições, mentiras e corrupção. 

A vida política interna ucraniana, caracterizada por uma conceção pessoal da política em detrimento da ideologia, nunca conheceu a necessária tranquilidade desde a independência da ex-república soviética em 1991. 

As “revoluções coloridas”, em particular a ucraniana, passaram a ser consideradas por Moscovo como uma tentativa de o “ocidente” estender a sua influência, política e militar, para junto das suas fronteiras, e colocar em perigo a segurança do país.

“É ridículo dizer que o ocidente tentou financiar revoluções, porque a Rússia tentou financiar revoluções, também na Ucrânia, e os russos possuem muito ‘soft-power’ na Ucrânia, aplicaram muito mais dinheiro entre 2000 e 2010, influenciavam a opinião pública ucraniana através dos seus canais de televisão [entretanto banidos], faziam o que queriam. Tinham muito mais recursos que o ocidente”, responde à Lusa Volodymyr Yermolenko, filósofo e professor associado na Universidade Kyiv-Mohyla, situada na capital ucraniana. 

No caso da Ucrânia, em 2003 começou a emergir o movimento Pora! (Chegou a hora), inspirado no movimento Otpor! (Resistência!), decisivo na mobilização que em outubro de 2000 afastou do poder o então Presidente da Sérvia Slobodan Milosevic. Quase em simultâneo, surgia na Bielorrússia o Zubr (Bisonte), e na Geórgia o Kmara! (Basta!).

O dinheiro para as formações, as viagens e o material destes movimentos provinha inicialmente da Westminster Foundation for Democracy [uma fundação britânica financiada pelo ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth] que pagava os salários dos coordenadores. Em declarações em 2019 à jornalista de investigação e realizadora sérvia Ana Otasevic, a ativista do Pora!, Yarna Yasynevych, indicou que recebia uma mensalidade desta instituição.  

A US-Ukraine Foundation, uma campanha financiada pela Agência para o desenvolvimento internacional dos Estados Unidos (USaid) destinada a incentivar os jovens em eleições, ou a Freedom House, também participaram na formação e organização desta rede com somas avultadas. E na Ucrânia imprimiram 12.000 exemplares do folheto do norte-americano Gene Sharp “Da ditadura e da democracia” com a ajuda da Fundação Albert Einstein, que fundou, e traduzido para ucranianos pelos militantes do Pora!.

As primeiras ações, baseadas na “teoria da não violência” de Sharp, foram realizadas em março de 2004 em 16 regiões da do país, com os membros do Pora! a atuarem de forma muito discreta e sem emergir qualquer dirigente. E no contexto das presidenciais que elegeram Yushchenko, o movimento associou-se à campanha “Znayu!” (Eu sei!), lançada por Dmytro Potekhin, especialista em marketing e campanhas eleitorais, que trabalhava para a Fundação Soros. 

A estratégia consistia em denunciar um poder “ilegítimo”; através da invenção de termos como “kuchismo” e que deveria ser associado a “medo, miséria, crime”. E afastá-lo do poder através de movimentos de resistência antigovernamentais. 

Ian Marovic, um ex-Otpor!, delineou a estratégia e foi o responsável pela ideia central da campanha: “Divulgar a imagem de pessoas com boa apresentação, capazes e ambiciosas e que lutam pelo futuro do país. Toda a comunicação provém destas características”, indicou nas declarações a Ana Otasevic. 

E no caso de derrota, foi explícito: “Apenas significa que a população não está preparada para mudanças democráticas (…) e nesse caso prosseguiremos o nosso trabalho”. 

Em 21 de novembro de 2004 a oposição ucraniana contestou o resultado da segunda volta das presidenciais que deram a vitória a Yanukovych. O Supremo tribunal anulou a votação e o candidato da oposição, Viktor Yushchenko, venceu num novo escrutínio.  

Na ocasião, o Pora! já tinha cerca de 2.000 ativistas em Kiev, preparava-se para fomentar grandes manifestações em Maidan, mas a sua falta de experiência demoveu-os. Mas tinham ganho uma batalha. 

Na perspetiva do filósofo e ativista ucraniano, também diretor analítico na Internews Ukraine e chefe de redação da UkraineWorld.org, a questão central reside em saber se a democracia mobiliza as pessoas e as faz descer às ruas. 

“Em todos estes anos os russos foram incapazes de criar qualquer protesto similar. Por exemplo, diziam se necessário defender a língua russa, mas não havia protestos de massa para defender a língua russa em qualquer local do país”, diz Yermolenko. 

“O dinheiro não pode mobilizar as pessoas, se as pessoas não quiserem. A Rússia entende isso, está a perder influência da Ucrânia, a perder os corações e as mentes dos ucranianos, acontece há décadas, e a sua única opção é um ataque militar”, acrescentou à Lusa. 

Dez anos depois, a experiência acumulada pelos militantes do Pora! também servirá para impulsionar a “revolução de Maidan” contra Yanukovych, líder do “pró-russo” Partido das Regiões – o maior partido do país entre 2006 e 2014 –, e Presidente desde 2010 após derrotar Yulia Tymoshenko na segunda volta. Na sequência da sua fuga em fevereiro de 2014, após o triunfo de Maidan, foi organizado novo escrutínio presidencial que elegeu Viktor Poroshenko, com uma clara abordagem “pró-ocidental”. 

Yarna Yasynevych, que depois se envolveu na engrenagem política, extraiu o balanço da “Revolução da Dignidade” de 2014, baseada nos ensinamentos dos mentores do Otpor! sérvio.

 Nas suas declarações, entendeu que a “gestão da segurança face à polícia” foi eficaz em curtas campanhas não violentas, como sucedeu contra os regimes de Kuchma e Milosevic. No entanto, reconheceu que face a Vladimir Putin, e a Yanukovych, ajudado pelo líder do Kremlin, essa estratégia não resultava por se estar perante pessoas “com a experiência do KGB e que são mais hábeis, mais perigosas”.

Atualmente, as estações de televisão e rádio russas estão proibidas na Ucrânia, mas ainda estão presentes e possuem alguma influência nas redes sociais.

“Mas mesmo quando a Rússia controlava o espaço informativo da Ucrânia, os maiores canais eram indiretamente controlados por russos. Mas não convenceram os ucranianos a optar por essa etiqueta russa, e inventaram esse mito das ‘revoluções coloridas’ porque pensam que se pode mobilizar as pessoas para a rua através de dinheiro, mas é ridículo”, insistiu o académico e ativista. 

“E mesmo que fosse verdade, podiam tê-lo feito mais cedo, mas porque não o fizeram? Porque não tinham hipótese, porque as pessoas pró-russas são passivas e não querem agir, e as pessoas pró-ativas são contra o Kremlin”. 

A forma de contrariar as “revoluções coloridas” foi o tema central de um recente encontro em Moscovo entre o ministro do Interior da Sérvia, Aleksandar Vulin, e Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança do Kremlin. 

No final da reunião, que decorreu no início dezembro, os dois responsáveis concluíram que as ‘revoluções coloridas’ se tornaram num “instrumento político tradicional de determinados centros de poder e de países destinados a minar o Estado e promover a perda de soberania sob o pretexto de democratização”, e assinalaram que “os países livres devem resistir a isso”.

Para Yermolenko, o objetivo foi claro: “Estão a tentar impedir qualquer processo de democratização no leste da Europa porque atingiria a própria Rússia”. 

[Nota: Na primavera de 2019, com a vitória nas presidenciais de Volodymyr Zelesnky, um ex-comediante sem experiência política mas que impediu o milionário Poroshenko de cumprir segundo mandado – um claro sinal do eleitorado ucraniano – as relações com a Rússia registaram algum desanuviamento.  O novo líder de Kiev prometeu uma solução negociada e justa para o Donbass, o leste ocupado em parte pelos separatistas russófonos, aceitou discutir o estatuto de Crimeia, anexada por Moscovo em 2014, e combater sem tréguas a corrupção e o nepotismo a nível interno. Mas, progressivamente, também devido a contínuas ingerências externas, tudo se esboroou. ]”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Fotografias de Solidariedade com a UCRÂNIA - Manifestações contra a INVASÃO de Putin (inclui manifestações na Russia)

 









































DIÁRIOS DE KIEV – (14) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 26 de Fevereiro de 2022

                                    

As marcas da guerra chegam aos arredores civis de Kiev

Kiev, 26 fev 2022 (Lusa) – O fumo ainda escapa de um dos três andares de um prédio residencial junto ao aeroporto civil Zhiliany que hoje foi atingido por um míssil da aviação russa, no mais recente “efeito colateral” de um conflito sem fim à vista. 

Os escombros ficaram espalhados pela rua, ao longo da avenida, milhares de pedaços de cimento e tijolo, esferovite arrastada pelo vento, caixilhos de janelas, fragmentos de vidro. Ainda continuam a cair despojos que se amontoam à entrada do prédio de 23 andares, bagagens, uma bola, objetos pessoais. 

Todos os moradores já foram retirados e alojados noutros locais, e também estão vazias as lojas instaladas à entrada do edifício, um café, um ginásio, uma loja de móveis. Alguém indica o balanço de três pessoas feridas, uma em estado grave. Mesmo ao lado, o grande supermercado ficou intacto. 

Do outro lado da avenida, os bombeiros prepararam-se para intervir, enquanto carros da polícia cruzam a estrada em alta velocidade. Um deles pára e três polícia fortemente armados, de farda negra, dirigem-se apressados para uma zona das proximidades. Os carros dos civis seguem lentos e contornam os detritos. 

“Não estou certo de que os russos quisessem destruir o prédio. Mas são russos e cometem erros com frequência. O trajeto foi assim”. E Roman, 63 anos, desenha uma elipse com o dedo. “Eram cerca das oito da manhã”, indicou este matemático, já reformado. 

No início da abordagem tinha pedido a identificação como garantia. “Não são da RT, pois não? Odeio-os, os russos”, disse numa referência a esta televisão estatal da Rússia. 

Roman diz que a maioria dos moradores deste bairro de altos edifícios, que delimitam uma estrada estratégia, potencial porta de entrada das forças russas provenientes do norte e desde Chernobyl já ocupada, optou por partir. Alguns outros ficaram. 

“Difícil, mas acreditamos que se todos abandonarmos Kiev significará uma situação muito má para o nosso país. Devemos ser fortes e algumas pessoas devem ficar aqui. Não tenho experiência militar, sou cientista, mas acredito que devo estar aqui, pedi à minha mulher para sair também, recusou e decidimos estar aqui”, conta.

O matemático diz ter escutado durante toda a noite disparos, explosões, “mas longe”, e que só atualizou as notícias pela manhã. Diz desconhecer os planos russos em relação à sua cidade, mas sem certezas atribuiu estas ações às tropas provenientes da Bielorrússia, a norte, uma das três zonas por onde foi desencadeada a operação militar, além do leste e da Crimeia, a sul. 

“Não estou seguro de que o exército ucraniano esteja preparado… os russos fizeram grandes progressos por este percurso em direção à nossa capital. Mas acredito que o nosso exército vai conseguir travar os russos em Kiev. Não penso que o ocidente ajudará muito, mas acredito que temos um exército mais forte em relação a 2014”, adiantou. 

Yuri, 49 anos, empresário de publicidade luminosa, mora a 500 metros do prédio atingido e foi mais uma testemunha deste “efeito colateral”, sempre doloroso para as populações civis. 

“Muitos dos habitantes destes prédios foram para outras regiões, outros estavam nos abrigos, talvez por isso as pessoas tenham tido sorte, ninguém foi morto”, assinala. 

Também admite que o objeto da aviação russa não seria atingir o prédio, com os 15º, 16º e 17º andares muito danificados pelo impacto. “Certamente que tentaram atingir o aeroporto Zhuliany, mas algo correu mal. Mas atravessamos uma situação terrível”, indica e após elogiar Lisboa e o Porto, cidades que conhece. 

O empresário também insiste em permanecer em Kiev. “É a minha terra, o meu país, a minha cidade. E devemos proteger-nos. A minha família está numa região perto”. 

À semelhança de grande parte da população, acredita que a vitória final será do seu país. “Estamos a defender a nossa liberdade, soberania, terra, país. Não sei como no terceiro milénio esta situação possa terminar com a vitória dos invasores”, acrescenta. 

Acusa o Presidente russo de mentir, diz que as suas palavras são “uma fraude”, que não é um líder normal. “Parece-me ser o único Presidente no mundo que mente com as suas palavras. Por vezes tento ver a televisão russa, e antes do início da guerra não era possível sem nos rirmos. Uma explicação estranha e falsa sobre a situação na Ucrânia…”, indica.

Yuri admite que existe medo. “Porque também receamos não permanecer um país livre, o nosso principal objetivo é garantir a nossa soberania”. 

Equipas de bombeiros atravessam os escombros e prepararam-se para iniciar os trabalhos de rescaldo, alguns já dentro do edifício ferido. Pavel, em tom mais descontraído, segue as operações. 

Tinha uma pequena empresa que construía aquários, agora diz que o negócio acabou e tenta outras alternativas. “Mas sorrio, mesmo sabendo que estamos numa verdadeira guerra, que eles nos matam e nós matamo-los”. 

Apesar de nunca ter cumprido o serviço militar, hoje com 40 anos, está totalmente confiante na vitória do exército ucraniano, “que é muito forte”, e admite combater se for necessário. 

“Já foram distribuídas 80.000 armas automáticas e metralhadoras em Kiev, incluindo aos grupos de defesa territorial e 10.000 em Lviv”, assegura. 

E emite o seu balanço no terceiro dia da invasão e das operações militares contra o poderoso exército russo. “Já têm 3.500 mortos, 100 tanques e outros 5.000 veículos blindados destruídos”, assegura, baseado em informações que recolheu pelo telemóvel. 

No regresso, junto à embaixada da Rússia totalmente abandonada, vidros partidos, dois carros estão incendiados, um deles da polícia. E na noite de quarta-feira, e quando se previam fortes ataques da aviação russa à capital ucraniana, o Presidente Zelensky emitiu um apelo aos cidadãos, também para combateram os russos com “cocktails molotov”, numa cidade, num país, em lei marcial e estrito recolher obrigatório. 

O momento de alta tensão que se vive em Kiev foi comprovado por jornalistas, incluindo o da Lusa, quando se dirigiam para o edifício atingido. No caminho, três membros da polícia especial, fardados de negro, revistavam dois homens retirados de um carro, um totalmente estendido no chão e com arma apontada, outra ajoelhado no passeio, 

Os agentes viram-se para o carro dos jornalistas, apontam as armas, gritam. Após comprovarem as identidades deixam-nos seguir e voltam a ocupar-se dos detidos”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

DIÁRIOS DE KIEV – (13) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 25 de Fevereiro de 2022

                                

Noite em branco nos abrigos de Kiev

Kiev, 25 fev 2022 (Lusa) – Kiev teve uma noite agitada numa cidade quase deserta e com o bulício a decorrer nos diversos abrigos subterrâneos após espaçados sinais de alerta sobre possíveis intensos bombardeamentos, que afinal foram esporádicos.

Temia-se um ataque da aviação russa a pontos estratégicos, mas os responsáveis civis e militares asseguraram que a ofensiva “foi travada”. De madrugada, pela rua, passam dois soldados, fardados, capacete, colete antibalas, pistola, equipados a rigor, e que se esquivam por uma esquina, decerto direção ao seu posto. Diz-se que os russos estão a concluir o cerco à capital ucraniana.

No caso de “ocupação” da cidade pelas forças enviadas pelo Presidente Vladimir Putin, os dirigentes ucranianos já prometeram resistência bairro a bairro, rua a rua, casa a casa, também assegurada pelos milhares de voluntários já convocados após a declaração da lei marcial e do recolher obrigatório, das 21:00 às 07:00.

O piso menos dois da garagem de um hotel situado no centro foi adaptado para abrigo, onde se chega através de um pequeno labirinto de corredores e onde as paredes com setas impressas em folhas de papel que indicam o percurso. 

“Vivo sozinha, estou muito nervosa. Pedi para ficar aqui de noite, moro perto”, indica uma mulher loira, de profundos olhos esverdeados, com ar cansado. Pouco se dormiu esta noite em Kiev.

“Primeiro disseram que não aceitavam, mas veio muita gente pedir abrigo e acabaram por também nos acolher. Estou muito nervosa e não conseguia estar sozinha em casa”.

No amplo espaço da garagem do segundo piso, com alguns carros estacionados, improvisou-se um acampamento. Famílias inteiras sentam-se em volta de mesas, avós, filhos e netos, que conversam em baixa voz. Uns dormitam, outro servem-se de um café, chá, bolos, que o hotel pôs à disposição e espalhados por diversas mesas. “Guardem os copos de plástico, já temos poucos”, apela uma funcionária. O início do racionamento.

Muitos jornalistas estão também encurralados neste espaço. Alguns trazem os edredons e almofadas dos seus quartos, buscam um pedaço de cartão e improvisam uma cama. Muitos habitantes das redondezas fizeram o mesmo, e alguns conseguem mergulhar num sono profundo.

Um jovem casal tenta confortar o seu bebé, que teima em ficar acordado noite dentro. Muitos jornalistas de televisões também não pregaram olho, e aproveitam para sair à rua e enviar as suas reportagens. A noite está fria, e muitos acabam por regressar aos quartos, para pouco depois serem de novo acordados pela receção, que avisa sobre prováveis novos ataques. De novo, a peregrinação em direção ao piso menos dois, após o som de uma ou outra explosão.

O dia começa a despontar, de novo cinzento. Do outro lado da rua, uma pequena mercearia abre portas. Alguns compram pão, outros bebidas, dois soldados totalmente equipados, com a insígnia da bandeira ucraniana azul e amarela cozida na manga da farda, levam uma embalagem de enchidos, e também se somem. Alguns carros cruzam apressados a rua. Alguns devem transportar gente importante, uma coluna de modernos todo-o-terreno em alta velocidade.

Mais uma explosão, ao longe. A capital ucraniana também está só, as forças da invasão já sabem que caso pretendam ocupá-la não terão tarefa fácil. Mas, lentamente, vai-se instalando cansaço, ainda não o desânimo, na grande Kiev e nos seus cinco milhões de habitantes”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Todos Somos Ucranianos

                                   


A “besta” está de volta.

As coisas não são simples, nem a preto e branco.

Tal como o Tratado de Versalhes, ao humilhar o povo alemão, “criou” Hitler, a forma como a NATO e o ocidente humilharam os russos, depois do fim da União Soviética, “criou” Putin.

A forma como os Estados Unidos desvalorizaram o papel da ONU no período pós-soviético, intervindo quase sempre sem mandato internacional, um pouco por todo o mundo, serviu de modelo à justificação retórica de Putin para atacar os países vizinhos e agora a Ucrânia.

O uso e abuso da retórica “antiterrorista” para invadir o Afeganistão e o Iraque, usada pelo “ocidente”, é agora usado por Putin para justificar a invasão da Ucrânia.

A destruição da Jugoslávia e os bombardeamentos da NATO na Sérvia, com a justificação de acabar com o genocídio, é agora copiada a pente fino por Putin para acabar com o “genocídio” dos russos na Ucrânia.

Claro que, como aconteceu em 1939, quando Hitler invadiu a Polónia, a altura não é para discutir o passado histórico ou as responsabilidades, a prioridade é destruir a “besta”.

Foi pena é que os líderes ocidentais não tivessem aprendido nada com a História e tivessem permitido o renascimento da “besta”, agora sob a forma de Putin.

A História não se repete, mas surge sob novas roupagens. Putin não é Hitler, mas a invasão da Ucrânia é uma violação do direito internacional tão grave como foi a invasão da Polónia por Hitler.

Claro que, em matéria de violação do direito internacional, a NATO e os Estados Unidos não têm lições a dar.

A Guerra, em pleno século XXI, é uma barbaridade, um anacronismo civilizacional, e por isso é preciso que, num momento propenso a intolerâncias e fanatismos, de parte a parte, suja alguém que consiga travar o descalabro desta guerra.

Já vimos que esse alguém não é a NATO, que se alimenta da guerra, mesmo a dos “outros”, nem os Estados Unidos, que dependem económica e financeiramente do militarismo.

A ONU está enfraquecida, sem grande poder de acção, graças à forma como foi marginalizada pela NATO e pelos Estados Unidos.

O PAPA Francisco, das poucas vozes humanistas, só tem o poder da palavra.

A “neutral” China, não tem interesse em destabilizar a Europa, que já controla financeiramente, mas vê aqui a oportunidade de enfraquecer os Estados Unidos, a União Europeia e o amigo da “onça” Putin e, portanto, vai ficar a ver “onde param as modas”, para, no fim, “sair por cima”.

A Turquia, que detém um dos maiores exército da NATO, logo a seguir ao dos Estados Unidos, é governado por um autocrata, igual a Putin, com pouco interesse em envolver-se numa guerra contra a Rússia, e tudo fará para ficar fora deste conflito.

Erdogan, paradoxalmente, até pode surgir como um dos raros intermediários entre o Ocidente e Putin.

Mas o importante agora é ir direito ao essencial: apoiar o povo ucraniano contra a brutal e desigual intervenção militar russa e não confundir os russos com o ditador Putin.

Por outro lado, é preciso criar um Tribunal Penal Internacional, independente, quer da propaganda ocidental, quer da propaganda de Putin, para reunir provas e informações para condenar todos os crimes de guerra perpetrados durante esta guerra, quer pelo exército russo, quer pelo exército ucraniano, quer pelas milícias russas, quer pelas milícias ucranianas, como forma de travar o pior da guerra.

Mas, por agora….TODOS SOMOS UCRANIANOS e solidários com o seu povo! 

"CHOVE EM KIEV" : DIÁRIOS DE KIEV – (11 e 12) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 24 de Fevereiro de 2022


Chuva e aviões militares interrompem silêncio numa Kiev quase deserta

Kiev, 24 fev 2022 (Lusa) – “Chove em Kiev, coberta por um céu cinzento e chuva miúda e persistente que se abate sobre o centro da cidade, quase deserto e em profundo silêncio, apenas perturbado pelo ruído de aviões militares que espaçadamente cruzam os céus, invisíveis.

“É incrível, ainda nem acredito, porque é horrível. Invadir o nosso país no século XXI é insano e deve ser travado de qualquer forma”, diz Kostia, que sobre apressado uma alameda, telemóvel na mão. Perto, apenas o som das sirenes de um carro da polícia, ou de uma ambulância. Ao longe, ruído de explosões afugenta as aves pousadas em árvores.

“Não sei ainda como parar esta guerra, temos de pensar nisso mais tarde, mas agora temos de defender o país, defendermo-nos a nós, e todos devem fazer o que puderem pela Ucrânia”.

Kostia, um homem de meia-idade que diz ser jornalista, talvez caminhasse apressado para a sua redação. Está convencido que o país vai resistir, que advertência do Presidente russo Vladimir Putin para que os soldados ucranianos deponham as armas não sucederá.

“Isso não vai acontecer, são oito anos de guerra, os militares sabem quem é o verdadeiro inimigo, não queremos viver sob ocupação. Se desistirem, e não acredito que aconteça, se Putin capturar a Ucrânia haverá repressão, e será duro. Quando pensamos nisso, a reação deverá ser erguermo-nos e combater”.

Kostas admite que a guerra possa alastrar a Kiev, que não se retenha nas regiões do Donbass que o exército russo parece pretender conquistar na totalidade, incluindo a estratégica cidade portuária de Mariupol, junto ao mar de Azov que dá acesso ao mar Negro.

“É possível que chegue a Kiev, não temos a certeza sobre isso, mas penso que os nossos militares farão o melhor possível para proteger o país”.

Ao longe, a praça Maidan é apenas atravessa por uma ou duas pessoas, apressadas. Alguns carros cruzam a avenida. Que contraste com o dia anterior, em que o sol iluminava a cidade mergulhada num trânsito caótico e com gentes pelas ruas.

Frente ao grande hotel Ukraine, o centro comercial não abriu portas. No átrio do edifício acumulam-se malas, material de reportagem. Chegam táxis, ou veículos de transporte privado. “Estão todos a partir?” “Ainda não mas preparamo-nos para isso”, diz uma jornalista francesa junto à sua câmara de filmar.

Hoje, chove em Kiev, e a guerra está quase à porta. Como sempre esteve, nos últimos oito anos.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

ENTREVISTA "Líderes e personalidades" continuam a sobrepôr-se a políticas.

Kiev, 24 fev 2022 (Lusa) – Na Ucrânia existe um vácuo na agenda social-democrata e a maioria da população ainda tem como referência líderes e personalidades, em vez de organizações políticas e ideologias, disse à Lusa o sociólogo Viktor Stepanenko.

"O problema da Ucrânia é que as pessoas ainda não estão orientadas politicamente em torno de organizações políticas e ideologias, mas dão antes preferência a líderes e personalidades. Votam não por ideias, mas sobretudo por personalidades. É por isso que na Ucrânia prevalece um estilo personalista de fazer política", assinala o académico num gabinete exíguo do Instituto de Sociologia da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia, situada no centro de Kiev, onde desde o átrio e pelas escadas de acesso se sucedem fotos emolduradas de antigos investigadores.

"As pessoas votam por personalidades, e muitas organizações tinham a designação do apelido dos políticos. Em anteriores eleições havia o partido Bloco [Petro] Poroshenko [ex-presidente], nome já alterado, havia o bloco Yulia Tymoshenko [ex-primeira-ministra]. Um político fundava um partido como se fosse a sua coutada pessoal".

No atual cenário político interno, dominam duas formações de centro-direita e de cariz populista, corporizadas pelo atual Presidente Volodymyr Zelensky e o seu partido Servo do Povo (CH), e a formação de Petro Poroshenko, derrotado nas presidenciais de 2019 e líder do Solidariedade Europeia (EC).

No entanto, Viktor Stepanenko, 60 anos, denota uma diferença essencial entre estes dois rivais políticos, decerto os principais rivais nas futuras presidenciais de 2024 e quando as recentes sondagens os colocam lado a lado.

"Poroshenko tem uma plataforma ideológica. Pode ser considerado nacionalista, populista de direita, mas tem coordenação ideológica, uma forte orientação euro-atlântica em política externa e para a economia de mercado livre", considera.

"Já Zelensky e o seu partido declaravam-se libertários, no sentido de uma posição mais à direita que os liberais. Mas o CH não tem ideologia, emite mensagens populistas e atua consoante os desejos das pessoas… reduzir os impostos", sugere, ao identificar o atual chefe de Estado como uma "mistura de vários elementos", do socialismo ao liberalismo.

"Por exemplo, a ideia que o seu partido avançou de que todas as pessoas acima dos 60 anos devem ter um ‘smartphone’ gratuito… Estava incluído no programa presidencial, que revela um estilo populista sem uma agenda ideológica séria. Tem decisões muito estranhas".

O Instituto de Sociologia desta Academia multidisciplinar, realiza anualmente pesquisa sociológica e estudos em sociologia, da qual este investigador principal é um dos responsáveis.

O estudo "Monitorização da sociedade ucraniana" é a mais significativa publicação anual, que abrange todas as regiões do extenso país – à exceção, desde 2014, da região da Crimeia anexada pela Rússia e nas regiões separatistas do Donbass, no leste.

"Desde há dois anos que registamos o facto de o covid-19 não ter sido um problema para a população, antes as questões económicas, como o salário ou o medo do desemprego. Mesmo o conflito com a Rússia estava em quarto ou quinto lugar. Para muitos a guerra estava longe, mas o salário e o desemprego estão presentes no dia a dia. Agora com a nova situação talvez as prioridades se alterem", admite, numa referência ao agravamento da situação político-militar entre Kiev e Moscovo.

Os estudos sociológicos também têm denotado uma "alteração radical" da estrutura social, com a emergência de novos estratos, em particular de pequenos e médios proprietários, em contraste com os tempos em que a Ucrânia era umas das repúblicas da extinta União Soviética.

"Trata-se de um novo estrato social que tentou envolver-se em negócios, nos tempos soviéticos impunha-se sobretudo a propriedade estatal, mas atualmente na Ucrânia a quota de propriedade privada é maior que a estatal", regista.

"O Estado envolveu-se num constante processo de privatização, venda ao setor privado de fábricas ou propriedade estatal, agora tentamos uma espécie de concorrência, uma forma competitiva mais transparente. Algum deste processo iniciou-se após a ‘revolução laranja’ em 2004, um processo de democratização e normas mais cívicas no processo económico, a maioria surgiu após a revolução do Maidan de 2014", concretiza.

Um conceito de propriedade individual, que Viktor Stepanenko diz ser aceite e reconhecida pela maioria da população, apesar de denotar um "paradoxo" nesta abordagem pelo facto de a Ucrânia ser um dos países mais pobres da Europa, com profundas desigualdades sociais, mas com partidos de esquerda muito frágeis.

"É um paradoxo, as pessoas não são ricas, têm falta de dinheiro, baixo nível de vida, mas são relutantes em votar nos partidos de esquerda. Em parte, porque estes partidos e os seus líderes combatiam os oligarcas, mas em simultâneo eram um elemento dessa máquina".

 

Hoje, na Ucrânia, o salário mínimo não ultrapassa as 3.000 hryvnia [100 euros] e o médio não chega aos 500 euros. Uma realidade socioeconómica muito diferente dos tempos soviéticos "onde havia uma igualdade convencional, as pessoas tinham o suficiente para viver, apesar de a burocracia política ter sempre mantido mais posses".

Com a desagregação da União Soviética e a declaração da independência da Ucrânia em 1991, impôs-se o reino dos oligarcas, que no país representam atualmente perto de "20 famílias" e são considerados bilionários segundo os padrões ocidentais.

"A maioria fez fortuna não porque fosse talentosa, mas devido aos privilégios que obtiveram na distribuição da antiga propriedade coletiva. Um bom exemplo é Viktor Pinchuk, genro do antigo Presidente Leonid Kuchma, [o primeiro chefe de Estado após a independência e que cumpriu dois mandatos na década de 1990]".

E precisa: "Kuchma Foi o promotor deste sistema de novos proprietários na Ucrânia, a distribuição da riqueza nacional surgiu nesse período. Por exemplo, Pinchuk acumulou muitas antigas propriedades sociais não porque fosse inteligente, mas porque era familiar de Kuchma".

A situação das formações de esquerda ainda ficou mais comprometida com a ilegalização do Partido Comunista na sequência da "revolução de Maidan" no início de 2014, e que ainda se mantém.

"A justificação oficial para a ilegalização do Partido Comunista na Ucrânia em 2014 foi o facto de os comunistas serem uma espécie de aliados, uma parte colaborante e que justificava o início do que se designa de agressão russa contra a Ucrânia", indica.

Num processo de acelerada recomposição que abrange todos os setores de uma sociedade complexa, o sociólogo e investigador sublinha o "leque de identificações" que os seus estudos têm revelado, com destaque para o "reforço das pessoas que se identificam com a cidadania ucraniana".

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)