As marcas da guerra chegam aos arredores civis de Kiev
Kiev, 26 fev 2022 (Lusa) – O fumo ainda escapa de um dos três andares
de um prédio residencial junto ao aeroporto civil Zhiliany que hoje foi
atingido por um míssil da aviação russa, no mais recente “efeito colateral” de
um conflito sem fim à vista.
Os escombros ficaram espalhados pela rua, ao longo da avenida, milhares
de pedaços de cimento e tijolo, esferovite arrastada pelo vento, caixilhos de
janelas, fragmentos de vidro. Ainda continuam a cair despojos que se amontoam à
entrada do prédio de 23 andares, bagagens, uma bola, objetos pessoais.
Todos os moradores já foram retirados e alojados noutros locais, e
também estão vazias as lojas instaladas à entrada do edifício, um café, um
ginásio, uma loja de móveis. Alguém indica o balanço de três pessoas feridas,
uma em estado grave. Mesmo ao lado, o grande supermercado ficou intacto.
Do outro lado da avenida, os bombeiros prepararam-se para intervir,
enquanto carros da polícia cruzam a estrada em alta velocidade. Um deles pára e
três polícia fortemente armados, de farda negra, dirigem-se apressados para uma
zona das proximidades. Os carros dos civis seguem lentos e contornam os
detritos.
“Não estou certo de que os russos quisessem destruir o prédio. Mas são
russos e cometem erros com frequência. O trajeto foi assim”. E Roman, 63 anos,
desenha uma elipse com o dedo. “Eram cerca das oito da manhã”, indicou este
matemático, já reformado.
No início da abordagem tinha pedido a identificação como garantia. “Não
são da RT, pois não? Odeio-os, os russos”, disse numa referência a esta
televisão estatal da Rússia.
Roman diz que a maioria dos moradores deste bairro de altos edifícios,
que delimitam uma estrada estratégia, potencial porta de entrada das forças
russas provenientes do norte e desde Chernobyl já ocupada, optou por partir.
Alguns outros ficaram.
“Difícil, mas acreditamos que se todos abandonarmos Kiev significará
uma situação muito má para o nosso país. Devemos ser fortes e algumas pessoas
devem ficar aqui. Não tenho experiência militar, sou cientista, mas acredito
que devo estar aqui, pedi à minha mulher para sair também, recusou e decidimos
estar aqui”, conta.
O matemático diz ter escutado durante toda a noite disparos, explosões,
“mas longe”, e que só atualizou as notícias pela manhã. Diz desconhecer os
planos russos em relação à sua cidade, mas sem certezas atribuiu estas ações às
tropas provenientes da Bielorrússia, a norte, uma das três zonas por onde foi
desencadeada a operação militar, além do leste e da Crimeia, a sul.
“Não estou seguro de que o exército ucraniano esteja preparado… os
russos fizeram grandes progressos por este percurso em direção à nossa capital.
Mas acredito que o nosso exército vai conseguir travar os russos em Kiev. Não
penso que o ocidente ajudará muito, mas acredito que temos um exército mais
forte em relação a 2014”, adiantou.
Yuri, 49 anos, empresário de publicidade luminosa, mora a 500 metros do
prédio atingido e foi mais uma testemunha deste “efeito colateral”, sempre
doloroso para as populações civis.
“Muitos dos habitantes destes prédios foram para outras regiões, outros
estavam nos abrigos, talvez por isso as pessoas tenham tido sorte, ninguém foi
morto”, assinala.
Também admite que o objeto da aviação russa não seria atingir o prédio,
com os 15º, 16º e 17º andares muito danificados pelo impacto. “Certamente que
tentaram atingir o aeroporto Zhuliany, mas algo correu mal. Mas atravessamos
uma situação terrível”, indica e após elogiar Lisboa e o Porto, cidades que
conhece.
O empresário também insiste em permanecer em Kiev. “É a minha terra, o
meu país, a minha cidade. E devemos proteger-nos. A minha família está numa
região perto”.
À semelhança de grande parte da população, acredita que a vitória final
será do seu país. “Estamos a defender a nossa liberdade, soberania, terra,
país. Não sei como no terceiro milénio esta situação possa terminar com a
vitória dos invasores”, acrescenta.
Acusa o Presidente russo de mentir, diz que as suas palavras são “uma
fraude”, que não é um líder normal. “Parece-me ser o único Presidente no mundo
que mente com as suas palavras. Por vezes tento ver a televisão russa, e antes
do início da guerra não era possível sem nos rirmos. Uma explicação estranha e
falsa sobre a situação na Ucrânia…”, indica.
Yuri admite que existe medo. “Porque também receamos não permanecer um
país livre, o nosso principal objetivo é garantir a nossa soberania”.
Equipas de bombeiros atravessam os escombros e prepararam-se para
iniciar os trabalhos de rescaldo, alguns já dentro do edifício ferido. Pavel,
em tom mais descontraído, segue as operações.
Tinha uma pequena empresa que construía aquários, agora diz que o
negócio acabou e tenta outras alternativas. “Mas sorrio, mesmo sabendo que
estamos numa verdadeira guerra, que eles nos matam e nós matamo-los”.
Apesar de nunca ter cumprido o serviço militar, hoje com 40 anos, está
totalmente confiante na vitória do exército ucraniano, “que é muito forte”, e
admite combater se for necessário.
“Já foram distribuídas 80.000 armas automáticas e metralhadoras em
Kiev, incluindo aos grupos de defesa territorial e 10.000 em Lviv”,
assegura.
E emite o seu balanço no terceiro dia da invasão e das operações
militares contra o poderoso exército russo. “Já têm 3.500 mortos, 100 tanques e
outros 5.000 veículos blindados destruídos”, assegura, baseado em informações
que recolheu pelo telemóvel.
No regresso, junto à embaixada da Rússia totalmente abandonada, vidros
partidos, dois carros estão incendiados, um deles da polícia. E na noite de
quarta-feira, e quando se previam fortes ataques da aviação russa à capital
ucraniana, o Presidente Zelensky emitiu um apelo aos cidadãos, também para
combateram os russos com “cocktails molotov”, numa cidade, num país, em lei
marcial e estrito recolher obrigatório.
O momento de alta tensão que se vive em Kiev foi comprovado por
jornalistas, incluindo o da Lusa, quando se dirigiam para o edifício atingido.
No caminho, três membros da polícia especial, fardados de negro, revistavam
dois homens retirados de um carro, um totalmente estendido no chão e com arma
apontada, outra ajoelhado no passeio,
Os agentes viram-se para o carro dos jornalistas, apontam as armas,
gritam. Após comprovarem as identidades deixam-nos seguir e voltam a ocupar-se
dos detidos”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
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