Kiev, a cidade barricada
por Pedro Caldeira Rodrigues (LUSA)
Kiev, 26 jan 2022 (Lusa) – Desde quinta-feira que Kiev mergulhou num
silêncio profundo, com as suas ruas desertas, os seus parques abandonados, os
caminhos pelos jardins que homenageiam heróis de distintos tempos e ideias sem
vivalma.
Desde essa madrugada, que anunciou o início da invasão militar russa,
ficou deserto o parque onde foi construído o Arco da Amizade das Nações, uma
imensa estrutura que celebrava a irmandade dos povos socialistas, agora
desfeita.
Ficaram desertas as belas catedrais de Santa Sofia e Santo Alexander,
as igrejas e mosteiros ortodoxos, os museus que recordam o Holodomor, a morte
pela fome do início da década de 1930, ou a história da Ucrânia.
Estão sós as estátuas a heróis soviéticos ou nacionalistas, está só o
Parque Mariyinsky, as margens do Dnieper ou a imponente estátua à Mãe Pátria,
estrutura de aço, com 120 metros de altura e 560 toneladas. Escudo com foice e
martelo erguido na mão esquerda, espada com 16 metros na direita, um orgulho
dos tempos soviéticos e uma celebração intemporal à “Grande Guerra Patriótica”.
Também sós os imensos murais com as fotos dos soldados ucranianos
mortos no conflito com os separatistas russófonos do Donbass, junto à
reconstruída igreja de São Miguel.
Três milhões de pessoas fechadas em casa, após a imposição da lei
marcial e do recolher obrigatório, que foi hoje inicialmente antecipado para
começar às 17:00 e terminar à mesma hora 07:00 e depois alargado até às 08:00
de segunda-feira.
Apenas alguns habitantes aproveitaram hoje o sol para passear os seus
animais de estimação. Outros concentraram-se junto a farmácias, ou nos poucos
estabelecimentos comerciais ainda abertos. Levam caixas com mantimentos,
conservas, bebidas, produtos de higiene. O açambarcamento começou em Kiev.
Alguns carros, apressados, a polícia nervosa e determinada nas ruas, e
pouco mais. Restaurantes, bares, a maioria dos estabelecimentos, tudo vazio. A
cidade barricou-se, à espera do inimigo. E armou-se.
O hotel onde se encontram diversos jornalistas, não longe da ópera de
Kiev, foi transformado em ‘bunker’. As portas laterais e a grande entrada
giratória estão fechadas e à guarda de um funcionário. Painéis de madeira
protegem os vidros e a receção está sempre vazia.
A comida também foi racionada e é servida no abrigo improvisado, o piso
menos dois, que integra a garagem do edifício. Ao pequeno-almoço uma sandes,
uma maçã e café, chá ou água, algum leite. Ao almoço, uma sopa instantânea.
Estão sempre disponíveis algumas bebidas, sumos, por vezes, bolinhos ou barras
de chocolate. O jantar é a refeição mais reforçada, um prato geralmente com
massa e carne. E o serviço de quartos deixou de ser assegurado.
Os inquilinos estrangeiros do hotel confundem-se no abrigo com diversos
moradores das redondezas, que também foram acolhidos para se protegerem. Uma
família numerosa diverte-se com um jogo de cartas, o seu cão branco, talvez um
Akbash da Turquia, estendido num tecido almofadado, junto a um recipiente com
água, alheio ao estranho mundo dos homens e olhar sempre indagador.
Trouxeram mantimentos, colchões, cadeiras. Alguns estendem-se nos
colchões, outros juntam três cadeiras para o fazerem, muitos e muitas utilizam
apenas o edredom separado do chão por um cartão mais grosso.
Para animar, alguns trouxeram guitarras, tocam e cantam, e muitos
reúnem-se em redor para acompanhar o ritmo, gravar, fotografar. Depois, pouco a
pouco, instala-se o silêncio. Dos microfones surge mais um aviso sobre sirenes
a ecoarem na cidade, a possibilidade de novos ataques aéreos. Tenta-se dormir
mais outra noite na cidade barricada. Por quanto tempo, todos se interrogam”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
As “revoluções coloridas” e a vingança de Putin
por Pedro Caldeira Rodrigues
Kiev, 27 fev 2022 (Lusa) – A invasão militar da Rússia à Ucrânia, além
dos argumentos oficiais do Kremlin sobre a “desmilitarização e desnazificação”
do país vizinho, também está a ser encarada como uma vingança pessoal do
Presidente russo face à recente evolução política interna.
A “Revolução da Dignidade” do inverno de 2014, que implicou a fuga do
ex-Presidente Viktor Ianukovytch – desde então exilado na Rússia e condenado em
2019 à revelia por um tribunal ucraniano a 13 anos de prisão –, sempre foi
encarada pelo Kremlin, em particular por Vladimir Putin, como uma revolta
“fabricada” destinada a afastar a Ucrânia da sua natural relação de afinidade,
mesmo que dependente, com a Rússia, no contexto do “grande mundo eslavo” que
também inclui bielorrussos.
O “Euromaidan”, também assim designado porque o pretexto da revolta foi
a recusa de Ianukovytch em promover um acordo de associação com a União
Europeia e, em contrapartida, reforçar os laços com Moscovo – em particular no
campo económico e num país muito dependente do “grande irmão” eslavo –, nunca
foi legitimado pelo Kremlin.
Mas foi dez anos antes, com o triunfo da designada “revolução laranja”
em 2004, e com Putin já há quatro anos no poder, que as relações entre Moscovo
e Kiev se começam a deteriorar.
O afastamento do “pai da independência” Leonid Kuchma, que cumpriu dois
mandatos entre 1991 e 2005, promotor do início das privatizações que deram
origem a um punhado de oligarcas próximos do círculo presidencial (como sucedeu
em simultâneo na Rússia de Boris Ieltsin), e “inofensivo” para o Kremlin, fez
soar os alarmes em Moscovo.
Em particular, a eleição em 2005, do Presidente “pró-ocidental” Viktor
Yushchenko, que derrotou no escrutínio o então primeiro-ministro cessante
Viktor Yanukovych, definido como “pró-russo”.
Apesar de se ter mantido no poder, o mandato de Yushchenko – alvo de
alegado envenenamento em setembro de 2004 que lhe deixou marcas físicas – ,
ficou assinalado pelos graves conflitos internos com a então primeira-ministra
Yulia Tymoshenko, sob acusações de traições, mentiras e corrupção.
A vida política interna ucraniana, caracterizada por uma conceção
pessoal da política em detrimento da ideologia, nunca conheceu a necessária
tranquilidade desde a independência da ex-república soviética em 1991.
As “revoluções coloridas”, em particular a ucraniana, passaram a ser
consideradas por Moscovo como uma tentativa de o “ocidente” estender a sua
influência, política e militar, para junto das suas fronteiras, e colocar em
perigo a segurança do país.
“É ridículo dizer que o ocidente tentou financiar revoluções, porque a
Rússia tentou financiar revoluções, também na Ucrânia, e os russos possuem
muito ‘soft-power’ na Ucrânia, aplicaram muito mais dinheiro entre 2000 e 2010,
influenciavam a opinião pública ucraniana através dos seus canais de televisão
[entretanto banidos], faziam o que queriam. Tinham muito mais recursos que o
ocidente”, responde à Lusa Volodymyr Yermolenko, filósofo e professor associado
na Universidade Kyiv-Mohyla, situada na capital ucraniana.
No caso da Ucrânia, em 2003 começou a emergir o movimento Pora! (Chegou
a hora), inspirado no movimento Otpor! (Resistência!), decisivo na mobilização
que em outubro de 2000 afastou do poder o então Presidente da Sérvia Slobodan
Milosevic. Quase em simultâneo, surgia na Bielorrússia o Zubr (Bisonte), e na
Geórgia o Kmara! (Basta!).
O dinheiro para as formações, as viagens e o material destes movimentos
provinha inicialmente da Westminster Foundation for Democracy [uma fundação
britânica financiada pelo ministério dos Negócios Estrangeiros e da
Commonwealth] que pagava os salários dos coordenadores. Em declarações em 2019
à jornalista de investigação e realizadora sérvia Ana Otasevic, a ativista do
Pora!, Yarna Yasynevych, indicou que recebia uma mensalidade desta
instituição.
A US-Ukraine Foundation, uma campanha financiada pela Agência para o
desenvolvimento internacional dos Estados Unidos (USaid) destinada a incentivar
os jovens em eleições, ou a Freedom House, também participaram na formação e
organização desta rede com somas avultadas. E na Ucrânia imprimiram 12.000
exemplares do folheto do norte-americano Gene Sharp “Da ditadura e da
democracia” com a ajuda da Fundação Albert Einstein, que fundou, e traduzido
para ucranianos pelos militantes do Pora!.
As primeiras ações, baseadas na “teoria da não violência” de Sharp,
foram realizadas em março de 2004 em 16 regiões da do país, com os membros do
Pora! a atuarem de forma muito discreta e sem emergir qualquer dirigente. E no
contexto das presidenciais que elegeram Yushchenko, o movimento associou-se à
campanha “Znayu!” (Eu sei!), lançada por Dmytro Potekhin, especialista em
marketing e campanhas eleitorais, que trabalhava para a Fundação Soros.
A estratégia consistia em denunciar um poder “ilegítimo”; através da
invenção de termos como “kuchismo” e que deveria ser associado a “medo,
miséria, crime”. E afastá-lo do poder através de movimentos de resistência
antigovernamentais.
Ian Marovic, um ex-Otpor!, delineou a estratégia e foi o responsável
pela ideia central da campanha: “Divulgar a imagem de pessoas com boa
apresentação, capazes e ambiciosas e que lutam pelo futuro do país. Toda a
comunicação provém destas características”, indicou nas declarações a Ana
Otasevic.
E no caso de derrota, foi explícito: “Apenas significa que a população
não está preparada para mudanças democráticas (…) e nesse caso prosseguiremos o
nosso trabalho”.
Em 21 de novembro de 2004 a oposição ucraniana contestou o resultado da
segunda volta das presidenciais que deram a vitória a Yanukovych. O Supremo
tribunal anulou a votação e o candidato da oposição, Viktor Yushchenko, venceu
num novo escrutínio.
Na ocasião, o Pora! já tinha cerca de 2.000 ativistas em Kiev,
preparava-se para fomentar grandes manifestações em Maidan, mas a sua falta de
experiência demoveu-os. Mas tinham ganho uma batalha.
Na perspetiva do filósofo e ativista ucraniano, também diretor
analítico na Internews Ukraine e chefe de redação da UkraineWorld.org, a
questão central reside em saber se a democracia mobiliza as pessoas e as faz
descer às ruas.
“Em todos estes anos os russos foram incapazes de criar qualquer
protesto similar. Por exemplo, diziam se necessário defender a língua russa,
mas não havia protestos de massa para defender a língua russa em qualquer local
do país”, diz Yermolenko.
“O dinheiro não pode mobilizar as pessoas, se as pessoas não quiserem.
A Rússia entende isso, está a perder influência da Ucrânia, a perder os
corações e as mentes dos ucranianos, acontece há décadas, e a sua única opção é
um ataque militar”, acrescentou à Lusa.
Dez anos depois, a experiência acumulada pelos militantes do Pora!
também servirá para impulsionar a “revolução de Maidan” contra Yanukovych,
líder do “pró-russo” Partido das Regiões – o maior partido do país entre 2006 e
2014 –, e Presidente desde 2010 após derrotar Yulia Tymoshenko na segunda
volta. Na sequência da sua fuga em fevereiro de 2014, após o triunfo de Maidan,
foi organizado novo escrutínio presidencial que elegeu Viktor Poroshenko, com
uma clara abordagem “pró-ocidental”.
Yarna Yasynevych, que depois se envolveu na engrenagem política,
extraiu o balanço da “Revolução da Dignidade” de 2014, baseada nos ensinamentos
dos mentores do Otpor! sérvio.
Nas suas declarações, entendeu
que a “gestão da segurança face à polícia” foi eficaz em curtas campanhas não
violentas, como sucedeu contra os regimes de Kuchma e Milosevic. No entanto,
reconheceu que face a Vladimir Putin, e a Yanukovych, ajudado pelo líder do
Kremlin, essa estratégia não resultava por se estar perante pessoas “com a
experiência do KGB e que são mais hábeis, mais perigosas”.
Atualmente, as estações de televisão e rádio russas estão proibidas na
Ucrânia, mas ainda estão presentes e possuem alguma influência nas redes
sociais.
“Mas mesmo quando a Rússia controlava o espaço informativo da Ucrânia,
os maiores canais eram indiretamente controlados por russos. Mas não
convenceram os ucranianos a optar por essa etiqueta russa, e inventaram esse
mito das ‘revoluções coloridas’ porque pensam que se pode mobilizar as pessoas
para a rua através de dinheiro, mas é ridículo”, insistiu o académico e
ativista.
“E mesmo que fosse verdade, podiam tê-lo feito mais cedo, mas porque
não o fizeram? Porque não tinham hipótese, porque as pessoas pró-russas são
passivas e não querem agir, e as pessoas pró-ativas são contra o Kremlin”.
A forma de contrariar as “revoluções coloridas” foi o tema central de
um recente encontro em Moscovo entre o ministro do Interior da Sérvia,
Aleksandar Vulin, e Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança do
Kremlin.
No final da reunião, que decorreu no início dezembro, os dois responsáveis
concluíram que as ‘revoluções coloridas’ se tornaram num “instrumento político
tradicional de determinados centros de poder e de países destinados a minar o
Estado e promover a perda de soberania sob o pretexto de democratização”, e
assinalaram que “os países livres devem resistir a isso”.
Para Yermolenko, o objetivo foi claro: “Estão a tentar impedir qualquer
processo de democratização no leste da Europa porque atingiria a própria
Rússia”.
[Nota: Na primavera de 2019, com a vitória nas presidenciais de
Volodymyr Zelesnky, um ex-comediante sem experiência política mas que impediu o
milionário Poroshenko de cumprir segundo mandado – um claro sinal do eleitorado
ucraniano – as relações com a Rússia registaram algum desanuviamento. O novo líder de Kiev prometeu uma solução
negociada e justa para o Donbass, o leste ocupado em parte pelos separatistas
russófonos, aceitou discutir o estatuto de Crimeia, anexada por Moscovo em
2014, e combater sem tréguas a corrupção e o nepotismo a nível interno. Mas,
progressivamente, também devido a contínuas ingerências externas, tudo se
esboroou. ]”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
Sem comentários:
Enviar um comentário