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domingo, 27 de fevereiro de 2022

DIÁRIOS DE KIEV – (15 e 16) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) – 26 e 27 de Fevereiro de 2022


Kiev, a cidade barricada

por Pedro Caldeira Rodrigues (LUSA)

Kiev, 26 jan 2022 (Lusa) – Desde quinta-feira que Kiev mergulhou num silêncio profundo, com as suas ruas desertas, os seus parques abandonados, os caminhos pelos jardins que homenageiam heróis de distintos tempos e ideias sem vivalma.

Desde essa madrugada, que anunciou o início da invasão militar russa, ficou deserto o parque onde foi construído o Arco da Amizade das Nações, uma imensa estrutura que celebrava a irmandade dos povos socialistas, agora desfeita.

Ficaram desertas as belas catedrais de Santa Sofia e Santo Alexander, as igrejas e mosteiros ortodoxos, os museus que recordam o Holodomor, a morte pela fome do início da década de 1930, ou a história da Ucrânia.

Estão sós as estátuas a heróis soviéticos ou nacionalistas, está só o Parque Mariyinsky, as margens do Dnieper ou a imponente estátua à Mãe Pátria, estrutura de aço, com 120 metros de altura e 560 toneladas. Escudo com foice e martelo erguido na mão esquerda, espada com 16 metros na direita, um orgulho dos tempos soviéticos e uma celebração intemporal à “Grande Guerra Patriótica”.

Também sós os imensos murais com as fotos dos soldados ucranianos mortos no conflito com os separatistas russófonos do Donbass, junto à reconstruída igreja de São Miguel. 

Três milhões de pessoas fechadas em casa, após a imposição da lei marcial e do recolher obrigatório, que foi hoje inicialmente antecipado para começar às 17:00 e terminar à mesma hora 07:00 e depois alargado até às 08:00 de segunda-feira.

Apenas alguns habitantes aproveitaram hoje o sol para passear os seus animais de estimação. Outros concentraram-se junto a farmácias, ou nos poucos estabelecimentos comerciais ainda abertos. Levam caixas com mantimentos, conservas, bebidas, produtos de higiene. O açambarcamento começou em Kiev.

Alguns carros, apressados, a polícia nervosa e determinada nas ruas, e pouco mais. Restaurantes, bares, a maioria dos estabelecimentos, tudo vazio. A cidade barricou-se, à espera do inimigo. E armou-se.

O hotel onde se encontram diversos jornalistas, não longe da ópera de Kiev, foi transformado em ‘bunker’. As portas laterais e a grande entrada giratória estão fechadas e à guarda de um funcionário. Painéis de madeira protegem os vidros e a receção está sempre vazia.

A comida também foi racionada e é servida no abrigo improvisado, o piso menos dois, que integra a garagem do edifício. Ao pequeno-almoço uma sandes, uma maçã e café, chá ou água, algum leite. Ao almoço, uma sopa instantânea. Estão sempre disponíveis algumas bebidas, sumos, por vezes, bolinhos ou barras de chocolate. O jantar é a refeição mais reforçada, um prato geralmente com massa e carne. E o serviço de quartos deixou de ser assegurado.

Os inquilinos estrangeiros do hotel confundem-se no abrigo com diversos moradores das redondezas, que também foram acolhidos para se protegerem. Uma família numerosa diverte-se com um jogo de cartas, o seu cão branco, talvez um Akbash da Turquia, estendido num tecido almofadado, junto a um recipiente com água, alheio ao estranho mundo dos homens e olhar sempre indagador.

Trouxeram mantimentos, colchões, cadeiras. Alguns estendem-se nos colchões, outros juntam três cadeiras para o fazerem, muitos e muitas utilizam apenas o edredom separado do chão por um cartão mais grosso.

Para animar, alguns trouxeram guitarras, tocam e cantam, e muitos reúnem-se em redor para acompanhar o ritmo, gravar, fotografar. Depois, pouco a pouco, instala-se o silêncio. Dos microfones surge mais um aviso sobre sirenes a ecoarem na cidade, a possibilidade de novos ataques aéreos. Tenta-se dormir mais outra noite na cidade barricada. Por quanto tempo, todos se interrogam”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

As “revoluções coloridas” e a vingança de Putin

por Pedro Caldeira Rodrigues

Kiev, 27 fev 2022 (Lusa) – A invasão militar da Rússia à Ucrânia, além dos argumentos oficiais do Kremlin sobre a “desmilitarização e desnazificação” do país vizinho, também está a ser encarada como uma vingança pessoal do Presidente russo face à recente evolução política interna. 

A “Revolução da Dignidade” do inverno de 2014, que implicou a fuga do ex-Presidente Viktor Ianukovytch – desde então exilado na Rússia e condenado em 2019 à revelia por um tribunal ucraniano a 13 anos de prisão –, sempre foi encarada pelo Kremlin, em particular por Vladimir Putin, como uma revolta “fabricada” destinada a afastar a Ucrânia da sua natural relação de afinidade, mesmo que dependente, com a Rússia, no contexto do “grande mundo eslavo” que também inclui bielorrussos. 

O “Euromaidan”, também assim designado porque o pretexto da revolta foi a recusa de Ianukovytch em promover um acordo de associação com a União Europeia e, em contrapartida, reforçar os laços com Moscovo – em particular no campo económico e num país muito dependente do “grande irmão” eslavo –, nunca foi legitimado pelo Kremlin. 

Mas foi dez anos antes, com o triunfo da designada “revolução laranja” em 2004, e com Putin já há quatro anos no poder, que as relações entre Moscovo e Kiev se começam a deteriorar. 

O afastamento do “pai da independência” Leonid Kuchma, que cumpriu dois mandatos entre 1991 e 2005, promotor do início das privatizações que deram origem a um punhado de oligarcas próximos do círculo presidencial (como sucedeu em simultâneo na Rússia de Boris Ieltsin), e “inofensivo” para o Kremlin, fez soar os alarmes em Moscovo. 

Em particular, a eleição em 2005, do Presidente “pró-ocidental” Viktor Yushchenko, que derrotou no escrutínio o então primeiro-ministro cessante Viktor Yanukovych, definido como “pró-russo”. 

Apesar de se ter mantido no poder, o mandato de Yushchenko – alvo de alegado envenenamento em setembro de 2004 que lhe deixou marcas físicas – , ficou assinalado pelos graves conflitos internos com a então primeira-ministra Yulia Tymoshenko, sob acusações de traições, mentiras e corrupção. 

A vida política interna ucraniana, caracterizada por uma conceção pessoal da política em detrimento da ideologia, nunca conheceu a necessária tranquilidade desde a independência da ex-república soviética em 1991. 

As “revoluções coloridas”, em particular a ucraniana, passaram a ser consideradas por Moscovo como uma tentativa de o “ocidente” estender a sua influência, política e militar, para junto das suas fronteiras, e colocar em perigo a segurança do país.

“É ridículo dizer que o ocidente tentou financiar revoluções, porque a Rússia tentou financiar revoluções, também na Ucrânia, e os russos possuem muito ‘soft-power’ na Ucrânia, aplicaram muito mais dinheiro entre 2000 e 2010, influenciavam a opinião pública ucraniana através dos seus canais de televisão [entretanto banidos], faziam o que queriam. Tinham muito mais recursos que o ocidente”, responde à Lusa Volodymyr Yermolenko, filósofo e professor associado na Universidade Kyiv-Mohyla, situada na capital ucraniana. 

No caso da Ucrânia, em 2003 começou a emergir o movimento Pora! (Chegou a hora), inspirado no movimento Otpor! (Resistência!), decisivo na mobilização que em outubro de 2000 afastou do poder o então Presidente da Sérvia Slobodan Milosevic. Quase em simultâneo, surgia na Bielorrússia o Zubr (Bisonte), e na Geórgia o Kmara! (Basta!).

O dinheiro para as formações, as viagens e o material destes movimentos provinha inicialmente da Westminster Foundation for Democracy [uma fundação britânica financiada pelo ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth] que pagava os salários dos coordenadores. Em declarações em 2019 à jornalista de investigação e realizadora sérvia Ana Otasevic, a ativista do Pora!, Yarna Yasynevych, indicou que recebia uma mensalidade desta instituição.  

A US-Ukraine Foundation, uma campanha financiada pela Agência para o desenvolvimento internacional dos Estados Unidos (USaid) destinada a incentivar os jovens em eleições, ou a Freedom House, também participaram na formação e organização desta rede com somas avultadas. E na Ucrânia imprimiram 12.000 exemplares do folheto do norte-americano Gene Sharp “Da ditadura e da democracia” com a ajuda da Fundação Albert Einstein, que fundou, e traduzido para ucranianos pelos militantes do Pora!.

As primeiras ações, baseadas na “teoria da não violência” de Sharp, foram realizadas em março de 2004 em 16 regiões da do país, com os membros do Pora! a atuarem de forma muito discreta e sem emergir qualquer dirigente. E no contexto das presidenciais que elegeram Yushchenko, o movimento associou-se à campanha “Znayu!” (Eu sei!), lançada por Dmytro Potekhin, especialista em marketing e campanhas eleitorais, que trabalhava para a Fundação Soros. 

A estratégia consistia em denunciar um poder “ilegítimo”; através da invenção de termos como “kuchismo” e que deveria ser associado a “medo, miséria, crime”. E afastá-lo do poder através de movimentos de resistência antigovernamentais. 

Ian Marovic, um ex-Otpor!, delineou a estratégia e foi o responsável pela ideia central da campanha: “Divulgar a imagem de pessoas com boa apresentação, capazes e ambiciosas e que lutam pelo futuro do país. Toda a comunicação provém destas características”, indicou nas declarações a Ana Otasevic. 

E no caso de derrota, foi explícito: “Apenas significa que a população não está preparada para mudanças democráticas (…) e nesse caso prosseguiremos o nosso trabalho”. 

Em 21 de novembro de 2004 a oposição ucraniana contestou o resultado da segunda volta das presidenciais que deram a vitória a Yanukovych. O Supremo tribunal anulou a votação e o candidato da oposição, Viktor Yushchenko, venceu num novo escrutínio.  

Na ocasião, o Pora! já tinha cerca de 2.000 ativistas em Kiev, preparava-se para fomentar grandes manifestações em Maidan, mas a sua falta de experiência demoveu-os. Mas tinham ganho uma batalha. 

Na perspetiva do filósofo e ativista ucraniano, também diretor analítico na Internews Ukraine e chefe de redação da UkraineWorld.org, a questão central reside em saber se a democracia mobiliza as pessoas e as faz descer às ruas. 

“Em todos estes anos os russos foram incapazes de criar qualquer protesto similar. Por exemplo, diziam se necessário defender a língua russa, mas não havia protestos de massa para defender a língua russa em qualquer local do país”, diz Yermolenko. 

“O dinheiro não pode mobilizar as pessoas, se as pessoas não quiserem. A Rússia entende isso, está a perder influência da Ucrânia, a perder os corações e as mentes dos ucranianos, acontece há décadas, e a sua única opção é um ataque militar”, acrescentou à Lusa. 

Dez anos depois, a experiência acumulada pelos militantes do Pora! também servirá para impulsionar a “revolução de Maidan” contra Yanukovych, líder do “pró-russo” Partido das Regiões – o maior partido do país entre 2006 e 2014 –, e Presidente desde 2010 após derrotar Yulia Tymoshenko na segunda volta. Na sequência da sua fuga em fevereiro de 2014, após o triunfo de Maidan, foi organizado novo escrutínio presidencial que elegeu Viktor Poroshenko, com uma clara abordagem “pró-ocidental”. 

Yarna Yasynevych, que depois se envolveu na engrenagem política, extraiu o balanço da “Revolução da Dignidade” de 2014, baseada nos ensinamentos dos mentores do Otpor! sérvio.

 Nas suas declarações, entendeu que a “gestão da segurança face à polícia” foi eficaz em curtas campanhas não violentas, como sucedeu contra os regimes de Kuchma e Milosevic. No entanto, reconheceu que face a Vladimir Putin, e a Yanukovych, ajudado pelo líder do Kremlin, essa estratégia não resultava por se estar perante pessoas “com a experiência do KGB e que são mais hábeis, mais perigosas”.

Atualmente, as estações de televisão e rádio russas estão proibidas na Ucrânia, mas ainda estão presentes e possuem alguma influência nas redes sociais.

“Mas mesmo quando a Rússia controlava o espaço informativo da Ucrânia, os maiores canais eram indiretamente controlados por russos. Mas não convenceram os ucranianos a optar por essa etiqueta russa, e inventaram esse mito das ‘revoluções coloridas’ porque pensam que se pode mobilizar as pessoas para a rua através de dinheiro, mas é ridículo”, insistiu o académico e ativista. 

“E mesmo que fosse verdade, podiam tê-lo feito mais cedo, mas porque não o fizeram? Porque não tinham hipótese, porque as pessoas pró-russas são passivas e não querem agir, e as pessoas pró-ativas são contra o Kremlin”. 

A forma de contrariar as “revoluções coloridas” foi o tema central de um recente encontro em Moscovo entre o ministro do Interior da Sérvia, Aleksandar Vulin, e Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança do Kremlin. 

No final da reunião, que decorreu no início dezembro, os dois responsáveis concluíram que as ‘revoluções coloridas’ se tornaram num “instrumento político tradicional de determinados centros de poder e de países destinados a minar o Estado e promover a perda de soberania sob o pretexto de democratização”, e assinalaram que “os países livres devem resistir a isso”.

Para Yermolenko, o objetivo foi claro: “Estão a tentar impedir qualquer processo de democratização no leste da Europa porque atingiria a própria Rússia”. 

[Nota: Na primavera de 2019, com a vitória nas presidenciais de Volodymyr Zelesnky, um ex-comediante sem experiência política mas que impediu o milionário Poroshenko de cumprir segundo mandado – um claro sinal do eleitorado ucraniano – as relações com a Rússia registaram algum desanuviamento.  O novo líder de Kiev prometeu uma solução negociada e justa para o Donbass, o leste ocupado em parte pelos separatistas russófonos, aceitou discutir o estatuto de Crimeia, anexada por Moscovo em 2014, e combater sem tréguas a corrupção e o nepotismo a nível interno. Mas, progressivamente, também devido a contínuas ingerências externas, tudo se esboroou. ]”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)

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