Relato de quatro dias num confortável abrigo de Kiev
Por Pedro Caldeira Rodrigues,
agência Lusa, em Kiev
Kiev, 28 fev 2022 (Lusa) – Caiu como uma bomba a notícia da invasão da
Ucrânia pelo exército russo por três frentes, um cenário até essa madrugada de
24 de fevereiro excluído pela generalidade dos analistas, fazendo lembrar o
falhanço das previsões de resultados eleitorais.
No hotel Ukraine, situado mesmo em frente à Praça Maidan
(Independência), palco das grandes convulsões políticas de início deste século
no país eslavo, o ambiente era de apreensão, como em toda a cidade.
Muitos jornalistas dirigiam-se para a entrada e entravam em direto para
as suas televisões, de costas para uma praça central anormalmente vazia nessa
manhã de quinta-feira, e livre do caótico trânsito que entope as principais
artérias desta metrópole de três milhões de habitantes.
Para o jornalista da agência Lusa foi um regresso, menos de três
semanas após a primeira deslocação e estreia no país eslavo, que decorreu entre
24 e 29 de janeiro a convite da Academia de Imprensa Ucraniana e patrocínio da
embaixada dos Estados Unidos, com deslocações às cidades de Kramatorsk e
Severodonetsk, no Donbass sob controlo ucraniano.
Os dias anteriores ao do início da invasão tinham decorrido entre
contactos oficiais e reportagens, com estadia no mesmo hotel, desta vez no 11º
andar deste edifício de referência de Kiev. Em Severodontesk o alojamento tinha
sido no Mir, Paz em eslavo, o que agora soa a ironia.
O Ukraine, construído em 1961 em pleno centro da cidade e inicialmente
designado "hotel Moscovo", foi erguido no local originalmente ocupado
pelo primeiro arranha-céus da cidade, a Casa Ginzburg, propriedade de uma
abastada família judaica e que foi arrasado pelas tropas soviéticas na sua
retirada perante o invasor alemão, em 1941. A sua construção concluiu o
conjunto arquitetónico da Khreshchatyk, uma das principais avenidas de Kiev, e
um símbolo da reconstrução da parte central da cidade após a Segunda Guerra
Mundial.
Nessa manhã, a cidade quase fechou. Deixaram de circular, táxis, e
quase todos os veículos de transportes à exceção do metro, que também passou a
servir de abrigo para a população.
Alguns jornalistas, apressados, carregaram as suas malas e equipamentos
para a bagageira de carrinhas. O átrio do hotel, com as suas colunas alinhadas,
grandes escadarias, amplos cadeirões, ficou quase deserto. Nas traseiras, já
ninguém se recolhe junto ao "Templo do Arcanjo Miguel e Novos Mártires
Ucranianos", particular local de peregrinação onde regularmente vão
prestar tributo dirigentes nacionais ou chefes de Estado, de Governo,
ministros, em visita oficial.
Há o risco de ficar só, sem contactos, sem transportes. E há a
perspetiva de tentar sair do país.
Na véspera, um alarmante telefonema do embaixador, após contacto com
Lisboa, excluiu totalmente a hipótese da viagem que estava marcada, com a
equipa da RTP, a Cândida Pinto e o David Araújo, em direção da Kramatorsk, na
linha da frente do conflito com os territórios separatistas pró-russos.
O comboio partia às 06:10, mas não deverá ter chegado ao destino.
Também foi aconselhada a saída imediata de Kiev em direção à fronteira oeste, à
Polónia. Duas carrinhas preparadas no final da manhã dessa quinta-feira, levar
o menos possível, têm de vir a pé até à embaixada, não podemos esperar, partir
rapidamente… Não foi possível e os jornalistas ficaram na capital ucraniana.
Após algum desespero, o repórter da Lusa conseguiu finalmente garantir um
táxi com a ajuda de um jornalista oficial. O objetivo foi juntar-se às equipas
da RTP e SIC – Irina Shev, Rui do Ó, Ana Moreira e Fernando Silva – instaladas
num outro hotel, num apelo gregário, de proteção, em tempos de grave crise.
Que contraste com o dia anterior, quando se dirigiu ao hotel para onde
agora tentava alojar-se, para seguir com a Cândida e o David até um
estabelecimento onde vendem coletes à prova de bala e capacetes, na perspetiva
da viagem até ao Donbass.
Um trânsito infernal, as principais artérias cortadas pela polícia, o
impulso de saltar do táxi e fazer o resto do caminho a pé, até ao local de
encontro. Sempre a subir, nesta cidade também de pequenos montes e colinas.
Pelo caminho, veículos blindados e soldados totalmente fardados, uma,
duas pessoas, caminham com ar pensativo. No átrio do novo hotel, uma azáfama.
Chegou uma equipa da Cruz Vermelha, confirmam-se passaportes, uns no
‘check-in’, outros no ‘out’.
Na noite dessa quinta-feira, ainda se jantou no restaurante,
"self-service" com diversas opções. Mas no dia seguinte, tudo mudou.
O ruído das sirenes comprovava o início de uma guerra. Criou-se um abrigo
improvisado no último piso da garagem, foram acolhidas famílias e outros
habitantes do bairro mais sós. Estes trouxeram roupas, colchões, os seus
animais e, alguns, cartas para passarem um tempo que parecia nunca mais
terminar.
A entrada do hotel foi barricada com placas de madeira, a porta
fechada, com um aviso à entrada indicando que o hotel não funciona e que o ATM
não funciona. O piso menos dois, na garagem-abrigo, está repleto, quase sem
mais espaço. Há casa de banho, e após percorrer alguns corredores um local para
fumar. Mas os alojados no hotel mantêm privilégios, sobe-se aos quatros e
está-se à vontade.
É tempo de racionamento, também sentido no hotel onde agora apenas se
serve uma refeição quente, ao jantar e no abrigo. O pequeno-almoço, papas de
aveia, um ovo cozido, ao almoço uma sopa instantânea e sandes, e há ainda
bolachas, chocolates, sumos, água, café e chá em quantidade. A grande sala onde
se serviam as refeições está vazia. Os pratos empilhados, os recipientes para a
comida vazios. E do bar foram retiradas todas as garrafas em exposição.
Na manhã de hoje, foi possível sair à rua mais de 48 horas após um
estrito recolher obrigatório motivado pela lei marcial. As informações oficiais
falaram de "sabotadores" infiltrados na cidade, o silêncio da noite
tinha sido interrompido por rajadas de metralhadora e o som de explosões, mais
ao longe.
Nestes tempos de retiro, os jornalistas fazem diretos para as suas
televisões, após recolherem as últimas informações, ou escrevem. As refeições
são em conjunto e tenta-se decidir os próximos passos. Há contactos regulares
com autoridades portuguesas, civis e militares. E recebem-se muitas mensagens
dos mais próximos, de amigos. "Como estás? Bem? Força!".
Há mais gente à espera na pequena mercearia que fica a poucos metros do
hotel do outro lado da rua. Os enchidos empacotados, as conservas, a fruta,
começam a desaparecer. Há muitos idosos, levam enlatados, chocolates, bolachas.
Chegam três soldados do exército ucraniano, armados e fardados, têm
primazia. Compram tabaco, uns refrigerantes, e partem apressados. Um homem,
cabelo grisalho, barba branca, fardado, passa encurvado com uma enorme mochila.
Há um sentimento de comiseração entre os ucranianos. Quase que se
desculpam por também estarmos envolvidos numa situação tão imprevisível, que
agora ameaça degenerar em guerra total.
"Também lamentamos que estejam aqui, não nos queremos sentir
culpados, mas temos de defender a nossa terra", disse-me uma habitante de
Kiev durante um pequeno passeio por um parque. Mas são os ucranianos que vão
ficar aqui, os restantes estão apenas de passagem”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
Ucrânia: O êxodo de Kiev
por Pedro Caldeira Rodrigues,
agência Lusa, em Kiev
Kiev, 28 jan 2022 (Lusa) – A estação ferroviária central de Kiev é o
ponto de confluência de centenas, milhares de pessoas, que tentam sair da
capital ucraniana em direção às fronteiras oeste, ou a zonas mais seguras do
país.
Famílias transportam em malas o que conseguiram juntar, levam os
filhos, alguns bebés, animais de estimação. Amigos despedem-se com lágrimas nos
olhos.
À entrada, três polícias fortemente armados vigiam os movimentos. No
átrio, centenas de pessoas acotovelam-se junto dos painéis eletrónicos. Vão
partir dois comboios, um em direção a Lviv, oeste, outro um pouco mais tarde
para Ivano Frankifsk, no centro do país.
O apeadeiro está repleto de pessoas que aguardam a chegada do primeiro
comboio. Muitos não conseguem chegar, acotovelam-se, gritam, crianças choram,
um cão ladra. São sobretudo mulheres, crianças, idosas e idosos. Alguns
desistem.
Desde quinta-feira, o dia do início da invasão das tropas russas, que a
estação central de Kiev não descansa, mas os homens entre os 18 e os 60 anos
estão mobilizados para um combate que se avizinha.
As viagens são gratuitas, devido à situação de emergência nacional. E
as pessoas não têm dinheiros para pagar os mil dólares que agora se cobram para
sair da cidade até uma zona mais segura, os cinco mil dólares para rumar em
direção às fronteiras da Roménia ou Moldova, o percurso mais seguro de momento
através de uma estrada em más condições e que pode demorar 18 horas.
"As pessoas têm medo, têm crianças, querem sair daqui. Não as
censuro, mas eu vou ficar", diz Ivan, um jovem que agora transporta
pessoas na sua carrinha de dois lugares, um "negócio" com escassa
oferta e em alta.
Aos pares, polícias fortemente armados passam na parte exterior do
grande edifício. Perto, uma grande central de aquecimento a gás, que canaliza
calor para muitas habitações desta zona da cidade, com as suas três grandes
chaminés a expelir um fumo branco, contínuo. Gás vindo da Rússia e a Ucrânia
ainda é território de trânsito para que esta energia vital chegue a outras
regiões das Europa.
No percurso, carrinhas da polícia vigiam o trânsito. Um carro foi
parado, revistam os ocupantes, pedem documentos. Á frente, outro carro
esmagou-se contra um poste. Um outro carro da polícia está parado nesse local.
Kiev tornou-se numa cidade vigiada, nervosa, triste”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
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