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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

DIÁRIOS DE KIEV (1 e 2) por PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (para a LUSA)


É com muita honra e prazer que podemos anunciar a publicação, a partir de hoje, das reportagens de Pedro Caldeira Rodigues, a partir de Kiev, sobre a situação actual vivida na Ucrânia, escritas para a agência LUSA.

Pedro Caldeira Rodrigues é um consagrado repórter, especializado em assuntos internacionais, actualmente  jornalista da LUSA.

Nascisdo em 1958, formado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde se licenciou em 1981 e tirou o mestrado em História e Cultura Europeia Contemporânea em 2008, foi um dos jornalistas fundadores do jornal Público.

Teve o seu baptismo de fogo na guerra da ex-jugoslávia, como reporter do jornal Público e desta experiência resultou a publicação, em colaboração com o jornalista sérvio Steve Niksico de "Vírus balcânico. O Caso da Jugoslávia", obra editada pela Assírio & Alvim em 1996.

Publicou também o "Atlas da Europa", em 2001, editado pelo Público,  e "O Sobressalto Grego", editado em 2015, sendo um dos mais conceituados e mais bem informados jornalistas de politica internacional.

A História é outra das suas área de interesse, tendo publicado em 2011 "Teatro de Revista e a Iª República (...)" , sendo igualmente colaborador, com artigos de divulgação e investigação histórica, na revista Visão História.

Amigo pessoal de longa data e colega na faculdade de Letras do autor deste blog, é com grande orgulho que ele nos autorizou a publicar neste blog as suas reportagens diárias, que ele está a realizar a partir de Kiev, às quais daremos o Título de "DIÁRIOS DE KIEV por Pedro Caldeira Rodrigues".

Começamos por publicar os "Diários" dos últimos dias, caracterizados por uma grande sensibilidade, um conhecimento aprofundado da realidade ucraniana, uma preocupação de contextualização histórica e uma rara objectividade jornalistica.

Esperamos que os nossos leitores sintam, como nós, o prazer de ler o seu bem informado trabalho jornalistico :

DIÁRIOS DE KIEV - por Pedro Caldeira Rodrigues (1) 11 de Fevereiro de 2022 :

"Dois textos sobre a "crise russo-ucraniana" na perspetiva dos "vizinhos" finlandeses:


ENTREVISTA/Ucrânia: “Efeito Crimeia” de 2014 não será possível de repetir pela Rússia – académico



***por Pedro Caldeira Rodrigues, agência Lusa ***

 

"Redação, 12 fev 2022 (Lusa) - O Presidente da Rússia tem pouco a ganhar internamente com a crise nas relações com a Ucrânia porque o "efeito Crimeia" não pode ser repetido, mas manterá condições para permanecer no poder, afirmou à Lusa o investigador Arkady Moshes.  

"Vladimir Putin possui uma grande flexibilidade a nível interno. As instituições estão sob controlo, a Rússia é um estado autoritário, e a sua manutenção no poder não depende muito do desfecho da atual crise", considerou Moshes, diretor do programa para a Europa de leste e Rússia do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais (FIIA), sediado em Helsínquia.

Apesar de considerar que o líder do Kremlin não pode extrair importantes proveitos políticos desta crise, mesmo que a sua estratégia seja bem-sucedida, o atual cenário é muito diverso do registado há oito anos, na sequência da "designada "revolução de Maidan" que levou ao poder um Governo "pró-ocidental" e a consequente anexação da península da Crimeia pela Rússia e o início do conflito no leste do país.

"O designado 'efeito Crimeia' foi um momento de euforia que não pode ser repetido. Há oito anos, quando a Rússia anexou a Crimeia, foi uma medida que agradou à população, a maioria dos russos considerou-a justa, legítima, que a população da Crimeia queria juntar-se à Rússia. Foi popular e basicamente não teve custos. Não houve guerra, não chegaram caixões com mortos à Rússia, foi rápido", assinalou o académico, também membro do Programa de Novas Abordagens sobre Pesquisa e Segurança na Eurásia (PONARS, Eurásia).

O impacto a nível interno de novos sucessos protagonizados pela Rússia no seu envolvimento político-militar além-fronteiras também acabou por ser mitigado, assinalou, apontando o exemplo da Síria.

"A atuação russa na Síria foi muito bem-sucedida. Em relação à situação no terreno e face ao ocidente, a Rússia não permitiu que o ocidente concretizasse a sua agenda na Síria, mas no interior do país teve um efeito quase nulo na popularidade do Governo de Putin", indicou.

No entanto, Arkady Moshes adverte que a atual situação na Ucrânia pode ser "mais complicada" para o Kremlin, pelo facto de uma eventual escalada implicar um conflito em larga escala, com fortes consequências.

"Ninguém pode considerar que será uma guerra fácil. Será uma guerra. E os custos serão significativos, haverá mortos, e não será particularmente popular num país onde existem muitos 'patriotas do sofá', como os designamos. Os que gostam de ver os sucessos na televisão, mas não necessariamente enviar os seus filhos para combater".

O analista, especialista nas relações União Europeia-Rússia e nas políticas interna e externa dos países desta região e ex-repúblicas soviéticas, admite que o foco deve continuar a ser dirigido para as negociações em curso, a vários níveis e com diversos protagonistas - em particular em torno das "garantias de segurança" emitidas por Moscovo - e que poderão mesmo implicar algumas concessões à Rússia.

"Também isso não alterará em muito a popularidade do Governo, mas é qualquer coisa. Em comparação com o risco de uma escalada, é uma estratégia de saída muito mais fácil no âmbito da atual crise. Espero que seja conseguida".

No atual contexto, frisa, a opinião pública russa "não está preparada para a guerra", mas no caso de um conflito admite que Putin permanecerá no poder.

Mas a opção pela ocupação e anexação de territórios, envio de tropas terrestres para os controlar, implicaria uma situação que se prolongaria por largos anos, e um exercício particularmente arriscado.

"No passado, a Rússia errou várias vezes nos seus cálculos, nas duas revoluções ucranianas e em 2014-2015, quando pensou que metade da Ucrânia estava simplesmente à espera de ver a libertação por parte dos soldados russos ou pró-russos. Na realidade isso não aconteceu e a maioria dos soldados na linha da frente e do lado ucraniano eram falantes de russo (russófonos)", assegurou.

"Os cálculos errados aconteceram e penso que neste momento uma análise sóbria supõe que a situação pende mais para a busca de um compromisso que para uma escalada. Caso se inicie será uma grande guerra, com baixas, e nesse caso não é possível analisar que impacto teria".

Na sua perspetiva, a perspetiva de uma invasão militar da Ucrânia - que tem frequentemente sido admitida no ocidente, em particular pelos Estados Unidos - "não é inevitável".

Numa referência ao "plano original" da liderança russa, Arkady Moshes, considera que se destinava essencialmente "a demonstrar a prontidão para impor pressão militar, mas não necessariamente uma invasão e que seria demasiado arriscado", apesar de considerar que ninguém pode excluir essa hipótese.

"Mas tenho verificado nos últimos meses que o desejo da Rússia consiste em prosseguir as negociações. Haverá encontros na base do formato da Normandia a nível de conselheiros [componente política do processo de paz que permanece bloqueado e com envolvimento da Rússia, Ucrânia, Alemanha e França], trocas de cartas entre a Rússia e os países europeus e NATO, visitas a Moscovo, algumas mais bem-sucedidas que outras, e que indicam a existência de uma vontade séria para prosseguir no caminho da diplomacia. Não penso que a invasão seja inevitável".

A recente visita a Moscovo do Presidente francês, que acabou por desmentir que tenha utilizado o termo “finlandização” e que deveria ser “aplicado” à Ucrânia, também motivou uma observação arguta do investigador.  

“Foi extremamente importante, os políticos na Europa, em particular na Alemanha e França e que gostam de falar em ‘finlandização’ deveriam esquecer este termo que utilizam “, frisou, por considerar a expressão “um trauma, uma ofensa e um insulto” para os finlandeses.  

“Não foi uma escolha livre da Finlândia, foi uma escolha imposta à Finlândia como consequência da Segunda Guerra Mundial. Se a decisão fosse deles, nunca teria havido ‘finlandização’, que não é mais que a perda da soberania em política externa com o objetivo de proteger a situação ou uma solução política interna”.  

E exemplificou: “Seria o mesmo que alguém dizer agora aos franceses que o período entre 1940 e 1944 é um período da história do qual se deveriam orgulhar. Seriam insultados, mas por alguma razão pensam que podem utilizar esse termo dirigido a outros países”.  

Numa referência particular à Ucrânia, recordou que em 2014 e 2015, o país era um “Estado neutral”, não alinhado militarmente, mas que se confrontou com a perda de território e um conflito no leste.  

Neste contexto, considera que as posteriores emendas à Constituição ucraniana, com a consequente aproximação às estruturas euro-atlânticas, foi o resultado de uma experiência “muito negativa” como não-alinhado.  

“Tinha procurado ser membro da NATO antes, procura agora o mesmo, mas em 2014 não procurava essa adesão. E iniciou-se a crise... Oferecer agora à Ucrânia o mesmo do que quando perdeu os seus territórios será impraticável, condenado ao fracasso, e é compreensível”, num mundo “totalmente diferente e num sistema de segurança europeia totalmente diverso” do existente após a Segunda Guerra Mundial.  

Uma situação que comparou à existente no seu país, e na vizinha Suécia, que após os tratados de Ialta e Potsdam viram negado o direito de optar a que aliança pertencer. 

“Aceitar ou não um país na NATO é uma questão diferente, porque o caso tem de ser analisado. Mas negar a um país o direito de escolher a que aliança pertencer e pedir essa adesão é totalmente obsoleto e inaceitável no século XXI”, concluiu".

PCR/LUSA   


DIÁRIOS DE KIEV - por Pedro Caldeira Rodrigues (2) 11 de Fevereiro de 2022 :


*** Pedro Caldeira Rodrigues, agência Lusa ***

 

"Redação, 12 fev 2022 (Lusa) - A Rússia pretendia converter a Ucrânia numa Bósnia e manter uma influência decisiva sobre Kiev, mas a situação alterou-se e o acordo Minsk II já não é aplicável, defendeu em entrevista à Lusa o investigador Arkady Moshes.

"A Rússia pretendia converter a Ucrânia numa Bósnia. Criar um Estado fraco e poroso, com uma parte com possibilidade de veto sobre opções de política externa do conjunto do Estado", considerou Arkady Moshes, numa referência ao Acordo de Dayton de 1995 sobre a Bósnia-Herzegovina que pôs termo à guerra civil e criou duas entidades autónomas com um fraco Estado central.

"Isso foi entendido desde o início, e o que a Ucrânia tem feito nos últimos oito anos foi tentar progredir nessa área apesar do conflito. O cálculo seria que a Ucrânia poderia admitir fazer concessões para garantir o controlo de todo o território, mas basicamente a Ucrânia estabilizou a linha da frente e começou a fazer o que pretendia, designadamente prosseguir o acordo de associação com a União Europeia e o acordo de comércio livre abrangente, prosseguir a cooperação militar bilateral com a NATO, e o regime livre de vistos. Apesar do conflito, voltou-se para o ocidente", explicitou o diretor do programa para a Europa de leste e Rússia do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais (FIIA), sediado em Helsínquia.

Segundo Arkady Moshes, não existe uma perspetiva de integração formal da Ucrânia na UE e na NATO, nem se registaram conversações sobre o tema, mas antes "um intenso processo de cooperação e integração, não no ocidente, mas com o ocidente", com Moscovo a "perceber" que se construiu um cenário que pretenderia evitar.

Pelo contrário, os líderes russos e os dirigentes das duas repúblicas separatistas "pró-russas" do leste da Ucrânia continuam a insistir na aplicação dos acordos de Minsk II, assinados em fevereiro de 2015 pelos Presidente da Rússia, Ucrânia, França e a então chanceler da Alemanha, sob os auspícios da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), e considerados favoráveis às pretensões dos dirigentes russófonos do leste ucraniano.

"O acordo Minsk II não é aplicável, é uma folha e papel que está morta. Não pode ser aplicado pela simples razão de que a sua lógica está totalmente errada. Diz que devem ser realizadas eleições antes de a Ucrânia restabelecer o seu controlo [nos territórios separatistas], e que devem ser realizadas em conformidade com os padrões europeus. Mas quem pode imaginar a realização de eleições segundo esses padrões se a liberdade de reunião, de divulgar informação, de ser feita campanha em todo o território, não existirem", interrogou-se o investigador, também membro do Programa de Novas Abordagens sobre Pesquisa e Segurança na Eurásia (PONARS, Eurásia).

Na perspetiva de Moshes, o escrutínio apenas poderá ser concretizado após o "controlo soberano" da Ucrânia sobre esses territórios.

"Caso contrário, os resultados serão obviamente inaceitáveis para a Ucrânia, porque haverá pessoas que a Ucrânia pretenderá provavelmente indiciar por crimes de guerra que se tornariam membros do parlamento, ou membros da polícia nacional nessas áreas", sugeriu.

Ao abordar ainda os potenciais novos referendos sobre a autodeterminação previstos em Minsk II, o académico também se interrogou sobre em que territórios deveria decorrer a consulta, pelo facto de as fronteiras terem ficado indefinidas na sequência do conflito indicado em 2014 e que já provocou cerca de 14.000 mortos e pelo menos 1,5 milhões de deslocados.

Nos territórios secessionistas concentram-se cerca de quatro milhões de pessoas, num país com cerca de 36,5 milhões de habitantes, e o conflito implicou uma importante transferência de populações, que se mantiveram na região do Donbass mas separadas pela designada "linha de contacto".

O académico e especialista nas relações União Europeia-Rússia e nas políticas interna e externa dos países desta região e ex-repúblicas soviéticas, refere-se às populações deslocadas, questiona-se se também seriam elegíveis num referendo sobre a independência caso fossem autorizadas a votar, ou no destino das significativas populações russófonas, de língua russa, talvez 30% da população do país e sobretudo concentrada no centro-leste ucraniano e sul do país, e que se queixam de várias discriminações do poder de Kiev.

"Pelo menos 700.000 pessoas, ou agora cerca de um milhão, que vivem nesses territórios tornaram-se cidadãos russos devido à entrega massiva de passaportes. Votaram nas eleições na Rússia e são cidadãos de outro Estado, um estatuto que a Ucrânia não permite. São questões técnicas, e sem referência às políticas. Do ponto de vista técnico é muito difícil responder, mas se formos para o campo político, não sou um advogado mas sei que o direito à autodeterminação, e o direito de um Estado controlar todo o seu território, sempre estiveram em contradição".

O direito à autodeterminação não se aplica a estes territórios" pelo facto de já existir uma "nação" russa, considera Moshes.

Para além das questões "técnicas", a realidade política continua a impor-se e Arkady Moshes não tem dúvida em considerar que vai permanecer "uma questão estratégica" para a Rússia. "Não se trata necessariamente de um controlo territorial, mas uma espécie de possibilidade de decidir sobre o destino da Ucrânia, e que Putin tenta obter desde que assumiu o poder", indicou.

O que nunca implicará que a Rússia se "esqueça" da Ucrânia, mesmo na perspetiva de um acordo de âmbito global.

"Seria positivo mas isso não vai acontecer, Moscovo vai prosseguir a sua política, a Rússia é um grande país e possui outros instrumentos de pressão. Os instrumentos económicos de pressão são enormes devido à dependência energética da Ucrânia, e a sua ineficiência energética é ainda mais importante que a dependência, a cibersegurança, também a possibilidade de manter a pressão através da mobilização de forças militares para junto das fronteiras, incluindo na Bielorrússia, mas sem escalada", prognosticou.  

Numa referência à posição dos Estados Unidos nesta séria crise internacional, considerou ser este "o momento da verdade nas relações dos EUA com a Europa" e após a nova administração da Casa Branca se ter confrontado com diversas realidades.

"Quando o Presidente Joe Biden subiu ao poder, penso que poderia ser fácil reconstruir as pontes com a Europa, semidestruídas durante o mandato de Trump. Pensou que poderia efetuar alguns gestos, como em relação aos planos económicos da Alemanha relacionados com o gasoduto Nord Stream II, e outros temas", referiu.

"Mas percebemos que não havia unidade na administração Biden face à Rússia, e houve pessoas com perspetivas muito mais céticas em relação à Rússia", apontou, apesar de considerar "positivo" que Washington tenha passado a "prestar mais atenção" à Rússia, tendo neste aspeto "agitado" a Europa.

"Mas esta situação ainda não terminou. Se a escalada se verificar, o Nord Stream II [o novo gasoduto entre a Rússia e a Alemanha, já concluído, mas ainda sem licença para funcionar] estará em risco, e terão de ser aplicadas sanções norte-americanas a um gasoduto também alemão, agravando as relações EUA-Europa. Aproximamo-nos de um difícil ponto de bifurcação. A cooperação transatlântica pode melhorar, mas se ocorrer uma escalada ainda não sabemos quais as contradições que podem emergir entre os EUA e a Europa", concluiu".

PCR/LUSA

(CONTINUA)

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