Kiev, 24 fev 2022 (Lusa) – “Chove em Kiev, coberta por um céu cinzento
e chuva miúda e persistente que se abate sobre o centro da cidade, quase
deserto e em profundo silêncio, apenas perturbado pelo ruído de aviões
militares que espaçadamente cruzam os céus, invisíveis.
“É incrível, ainda nem acredito, porque é horrível. Invadir o nosso
país no século XXI é insano e deve ser travado de qualquer forma”, diz Kostia,
que sobre apressado uma alameda, telemóvel na mão. Perto, apenas o som das
sirenes de um carro da polícia, ou de uma ambulância. Ao longe, ruído de
explosões afugenta as aves pousadas em árvores.
“Não sei ainda como parar esta guerra, temos de pensar nisso mais
tarde, mas agora temos de defender o país, defendermo-nos a nós, e todos devem
fazer o que puderem pela Ucrânia”.
Kostia, um homem de meia-idade que diz ser jornalista, talvez
caminhasse apressado para a sua redação. Está convencido que o país vai
resistir, que advertência do Presidente russo Vladimir Putin para que os
soldados ucranianos deponham as armas não sucederá.
“Isso não vai acontecer, são oito anos de guerra, os militares sabem
quem é o verdadeiro inimigo, não queremos viver sob ocupação. Se desistirem, e
não acredito que aconteça, se Putin capturar a Ucrânia haverá repressão, e será
duro. Quando pensamos nisso, a reação deverá ser erguermo-nos e combater”.
Kostas admite que a guerra possa alastrar a Kiev, que não se retenha
nas regiões do Donbass que o exército russo parece pretender conquistar na
totalidade, incluindo a estratégica cidade portuária de Mariupol, junto ao mar
de Azov que dá acesso ao mar Negro.
“É possível que chegue a Kiev, não temos a certeza sobre isso, mas
penso que os nossos militares farão o melhor possível para proteger o país”.
Ao longe, a praça Maidan é apenas atravessa por uma ou duas pessoas,
apressadas. Alguns carros cruzam a avenida. Que contraste com o dia anterior,
em que o sol iluminava a cidade mergulhada num trânsito caótico e com gentes
pelas ruas.
Frente ao grande hotel Ukraine, o centro comercial não abriu portas. No
átrio do edifício acumulam-se malas, material de reportagem. Chegam táxis, ou
veículos de transporte privado. “Estão todos a partir?” “Ainda não mas
preparamo-nos para isso”, diz uma jornalista francesa junto à sua câmara de
filmar.
Hoje, chove em Kiev, e a guerra está quase à porta. Como sempre esteve,
nos últimos oito anos.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
ENTREVISTA "Líderes e personalidades" continuam a
sobrepôr-se a políticas.
Kiev, 24 fev 2022 (Lusa) – Na Ucrânia existe um vácuo na agenda
social-democrata e a maioria da população ainda tem como referência líderes e
personalidades, em vez de organizações políticas e ideologias, disse à Lusa o
sociólogo Viktor Stepanenko.
"O problema da Ucrânia é que as pessoas ainda não estão orientadas
politicamente em torno de organizações políticas e ideologias, mas dão antes
preferência a líderes e personalidades. Votam não por ideias, mas sobretudo por
personalidades. É por isso que na Ucrânia prevalece um estilo personalista de
fazer política", assinala o académico num gabinete exíguo do Instituto de
Sociologia da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia, situada no centro de
Kiev, onde desde o átrio e pelas escadas de acesso se sucedem fotos emolduradas
de antigos investigadores.
"As pessoas votam por personalidades, e muitas organizações tinham
a designação do apelido dos políticos. Em anteriores eleições havia o partido
Bloco [Petro] Poroshenko [ex-presidente], nome já alterado, havia o bloco Yulia
Tymoshenko [ex-primeira-ministra]. Um político fundava um partido como se fosse
a sua coutada pessoal".
No atual cenário político interno, dominam duas formações de
centro-direita e de cariz populista, corporizadas pelo atual Presidente Volodymyr
Zelensky e o seu partido Servo do Povo (CH), e a formação de Petro Poroshenko,
derrotado nas presidenciais de 2019 e líder do Solidariedade Europeia (EC).
No entanto, Viktor Stepanenko, 60 anos, denota uma diferença essencial
entre estes dois rivais políticos, decerto os principais rivais nas futuras
presidenciais de 2024 e quando as recentes sondagens os colocam lado a lado.
"Poroshenko tem uma plataforma ideológica. Pode ser considerado
nacionalista, populista de direita, mas tem coordenação ideológica, uma forte
orientação euro-atlântica em política externa e para a economia de mercado
livre", considera.
"Já Zelensky e o seu partido declaravam-se libertários, no sentido
de uma posição mais à direita que os liberais. Mas o CH não tem ideologia, emite
mensagens populistas e atua consoante os desejos das pessoas… reduzir os
impostos", sugere, ao identificar o atual chefe de Estado como uma
"mistura de vários elementos", do socialismo ao liberalismo.
"Por exemplo, a ideia que o seu partido avançou de que todas as
pessoas acima dos 60 anos devem ter um ‘smartphone’ gratuito… Estava incluído
no programa presidencial, que revela um estilo populista sem uma agenda
ideológica séria. Tem decisões muito estranhas".
O Instituto de Sociologia desta Academia multidisciplinar, realiza
anualmente pesquisa sociológica e estudos em sociologia, da qual este
investigador principal é um dos responsáveis.
O estudo "Monitorização da sociedade ucraniana" é a mais
significativa publicação anual, que abrange todas as regiões do extenso país –
à exceção, desde 2014, da região da Crimeia anexada pela Rússia e nas regiões
separatistas do Donbass, no leste.
"Desde há dois anos que registamos o facto de o covid-19 não ter
sido um problema para a população, antes as questões económicas, como o salário
ou o medo do desemprego. Mesmo o conflito com a Rússia estava em quarto ou
quinto lugar. Para muitos a guerra estava longe, mas o salário e o desemprego
estão presentes no dia a dia. Agora com a nova situação talvez as prioridades se
alterem", admite, numa referência ao agravamento da situação político-militar
entre Kiev e Moscovo.
Os estudos sociológicos também têm denotado uma "alteração
radical" da estrutura social, com a emergência de novos estratos, em
particular de pequenos e médios proprietários, em contraste com os tempos em
que a Ucrânia era umas das repúblicas da extinta União Soviética.
"Trata-se de um novo estrato social que tentou envolver-se em
negócios, nos tempos soviéticos impunha-se sobretudo a propriedade estatal, mas
atualmente na Ucrânia a quota de propriedade privada é maior que a
estatal", regista.
"O Estado envolveu-se num constante processo de privatização,
venda ao setor privado de fábricas ou propriedade estatal, agora tentamos uma
espécie de concorrência, uma forma competitiva mais transparente. Algum deste
processo iniciou-se após a ‘revolução laranja’ em 2004, um processo de
democratização e normas mais cívicas no processo económico, a maioria surgiu
após a revolução do Maidan de 2014", concretiza.
Um conceito de propriedade individual, que Viktor Stepanenko diz ser
aceite e reconhecida pela maioria da população, apesar de denotar um
"paradoxo" nesta abordagem pelo facto de a Ucrânia ser um dos países
mais pobres da Europa, com profundas desigualdades sociais, mas com partidos de
esquerda muito frágeis.
"É um paradoxo, as pessoas não são ricas, têm falta de dinheiro,
baixo nível de vida, mas são relutantes em votar nos partidos de esquerda. Em
parte, porque estes partidos e os seus líderes combatiam os oligarcas, mas em
simultâneo eram um elemento dessa máquina".
Hoje, na Ucrânia, o salário mínimo não ultrapassa as 3.000 hryvnia [100
euros] e o médio não chega aos 500 euros. Uma realidade socioeconómica muito
diferente dos tempos soviéticos "onde havia uma igualdade convencional, as
pessoas tinham o suficiente para viver, apesar de a burocracia política ter
sempre mantido mais posses".
Com a desagregação da União Soviética e a declaração da independência
da Ucrânia em 1991, impôs-se o reino dos oligarcas, que no país representam
atualmente perto de "20 famílias" e são considerados bilionários
segundo os padrões ocidentais.
"A maioria fez fortuna não porque fosse talentosa, mas devido aos
privilégios que obtiveram na distribuição da antiga propriedade coletiva. Um
bom exemplo é Viktor Pinchuk, genro do antigo Presidente Leonid Kuchma, [o
primeiro chefe de Estado após a independência e que cumpriu dois mandatos na
década de 1990]".
E precisa: "Kuchma Foi o promotor deste sistema de novos
proprietários na Ucrânia, a distribuição da riqueza nacional surgiu nesse
período. Por exemplo, Pinchuk acumulou muitas antigas propriedades sociais não
porque fosse inteligente, mas porque era familiar de Kuchma".
A situação das formações de esquerda ainda ficou mais comprometida com
a ilegalização do Partido Comunista na sequência da "revolução de
Maidan" no início de 2014, e que ainda se mantém.
"A justificação oficial para a ilegalização do Partido Comunista
na Ucrânia em 2014 foi o facto de os comunistas serem uma espécie de aliados,
uma parte colaborante e que justificava o início do que se designa de agressão
russa contra a Ucrânia", indica.
Num processo de acelerada recomposição que abrange todos os setores de
uma sociedade complexa, o sociólogo e investigador sublinha o "leque de
identificações" que os seus estudos têm revelado, com destaque para o
"reforço das pessoas que se identificam com a cidadania ucraniana".
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
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