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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

DIÁRIOS DE KIEV – (9 e 10) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA) - 21 e 22 de Fevereiro de 2022


 Ucrânia: A esperança de um regresso sem medo à cidade de Donetsk

21 de Fevereiro de 2022

Kiev, 22 fev 2022 (Lusa) – “Lina Kushch ainda mantém a esperança num regresso sem medo à sua casa em Donetsk, no leste da Ucrânia, que deixou em 2014, em pleno conflito, para se juntar à família já instalada na capital Kiev.

"O meu apartamento está fechado, uma senhora tem a chave para ver se existe algum problema. Alugámos uma casa em Kiev e não podemos vender o apartamento em Donetsk por ser necessário estar lá pessoalmente, devido às novas leis em vigor e que são diferentes das ucranianas".

Lina Kushch, 55 anos, jornalista, é a atual primeira secretária do Sindicato Nacional dos Jornalistas da Ucrânia, instalado num tradicional edifício da avenida Khreshchatyk que sai da Praça Maidan (Independência) e onde resistem diversos exemplares dos grandes edifícios soviéticos típicos da arquitetura estalinista, estilo "bolos de casamento", alguns com a estrela no topo.

Correspondente regional do diário A Voz da Ucrânia, e ainda de outros periódicos locais, recorda com precisão o dia 1 de março de 2014, pouco após o triunfo da "revolução de Maidan" em Kiev que afastou do poder o Presidente "pró-russo" Viktor Yanukovych, quando a praça central de Donetsk, cidade de um milhão de habitantes e onde nasceu cresceu, se encheu de manifestantes.

"Traziam bandeiras da Rússia, foi o início de manifestações contínuas na cidade. Mas muitas pessoas não eram de Donetsk, nem da região, perguntavam qual a direção da praça principal, ou a paragem dos transportes. Vinham de autocarro da Rússia para participar nos protestos", assegura.

Os seus pais e o filho mais novo, então com 11 anos, tinham abandonado a cidade em maio, alguns dias antes do início da grande batalha pelo controlo do aeroporto, para se juntarem ao filho mais velho do casal que já estudava em Kiev. Com o seu marido, também jornalista, decidiu ficar e tornou-se numa observadora privilegiada.

Logo em 3 de março, assistiu ao cerco ao edifício do conselho regional (o parlamento local), onde fazia a cobertura de uma sessão. Milhares de manifestantes exigiam a aprovação de um estatuto de federação para a região e a realização de um referendo, com o edifício por fim invadido e a sessão interrompida.

Já durante a guerra, em 11 de maio, as duas regiões separatistas pró-russas do leste em rebelião aprovavam em referendo, não reconhecido por Kiev e por margem esmagadora, a criação da República Popular de Donetsk (DNR) e da República Popular de Lugansk (LNR).

"Donetsk era uma cidade muito calma, ninguém acreditava que a situação piorasse a esse ponto. Mas já havia sinais antes do início dos combates, em 26 de maio. Na retaguarda das manifestações estavam soldados russos, sem insígnias. Eram militares ou membros de exércitos privados, muitos dos oligarcas ucranianos tinham segurança pessoal, mas eram verdadeiros exércitos privados".

Apesar de a maioria da população destas industrializadas e ricas regiões do Donbass ser russófona, Lina Kushch indica que a deriva separatista era residual e os seus apoiantes apenas mobilizavam um setor muito reduzido da população. Subitamente, e através "de uma operação bem preparada, com o bloqueio de edifícios, estradas, pontes", tudo mudou.

"Após o desfecho do Euromaidan, aumentou o número dos opositores à revolta de Kiev. Tinham votado em Viktor Yanukovych mas quando ele fugiu da Ucrânia para a Rússia [onde permanece exilado], era difícil encontrar alguém em Donetsk que o apoiasse", em particular entre quem defendia o prosseguimento das relações com a Rússia e contestava a nova opção pró-europeia e ocidental do país, revela.

"Ficaram muito desapontados com a sua fuga, diziam que deveria ter ficado e lutado, e passaram a identificar-se com novos líderes considerados mais fortes, porque Yanukovych tinha deixado de ser o líder, tinha fugido".

Foi uma guerra fratricida. "Lembro-me de exemplos de membros da mesma família que combateram nos lados opostos da linha da frente, vizinhos a combater entre si. As pessoas começaram a procurar quem tinha a mesma perspetiva sobre o conflito", diz.

E começaram as delações, as queixas às novas autoridades, o divórcio definitivo entre os "pró-russos" e os "pró-ucranianos", em Donetsk, no Donbass, um vírus promovido por "minorias agressivas" das duas fações e que alastrou por todo o país.

"No nosso edifício havia pró-ucranianos e pró-russos, no mesmo espaço… Lembro que um nosso colega que aí vivia, exprimiu a sua forte posição ‘pró-Ucrânia’, os vizinhos denunciaram-no aos responsáveis da administração e esteve preso duas semanas, foi espancado, tinha problemas de saúde que se agravaram e morreu dois meses depois, sem sair de Donetsk", refere Lina Kushch.

Um conflito violento, com um balanço atual de 14.000 mortos e muitos mais feridos. Situado perto do aeroporto, um edifício de 12 andares onde estavam instalados muitos ‘media’ de Donetsk foi ocupado pelas forças rebeldes, diversas regiões da periferia foram devastadas, mas a cidade escapou aos combates.

O deslocamento de 1,5 milhões de pessoas para as regiões sob controlo ucraniano, hoje identificadas como "Pessoas Deslocadas" (Internally Displaced Persons, IDF, na sigla em inglês) foi outra das consequências da guerra civil. Entre elas, pelo menos 300.000 decidiram, entretanto, regressar às suas regiões situadas nos territórios separatistas.

A larga maioria das pessoas reinstaladas na Ucrânia ainda não garante qualquer ajuda, mas em alguns casos podem receber uma contribuição destinada ao arrendamento, ou compra, de novo alojamento.

Lina Kushch refere que as crianças até aos 18 anos e os reformados recebem 1.000 hryvnia [cerca de 30 euros] por mês. "E quem tem um trabalho pode receber 442 hryvnia mensais [cerca de 13 euros]. Os desempregados não recebem esta ajuda, (…) mas muitas pessoas também se envolvem na economia paralela…".

Apesar de poder deslocar-se a Donetsk, onde está registada e possui uma casa, Lina Kushch tem optado por não arriscar. Pelo contrário, muitos deslocados continuam a visitar as suas regiões de origem, onde deixaram familiares, amigos, posses.

"Mas desde 2020 que é mais difícil. Até então, podiam atravessar os postos de controlo instalados na ‘linha de contacto’, entretanto encerrados pelas autoridades de Donetsk e Lugansk devido ao aumento das tensões. Há muitas pessoas que têm de viajar através de território da federação da Rússia", esclarece.

"Partem desde Kiev em pequenos autocarros de oito, dez lugares, entram em território da Rússia e seguem à fronteira com Donetsk e Lugansk. Depois atravessam a fronteira com os territórios não controlados, até ao destino, uma viagem de 27 horas a 30 horas".

Os que obtêm autorização para entrarem "no outro lado" através dos postos de controlo situados na "linha de contacto" e em funcionamento têm previamente de justificar o motivo, esperar pela autorização e optar por segunda ou sexta-feira, num horário determinado.

Uma das mais eficazes formas de "russificação" de Donetsk e Lugansk tem consistido no fornecimento em massa de passaportes à população, que assim obtém nacionalidade russa, entregues presencialmente na cidade de Rostov, junto à fronteira comum, após a apresentação da documentação exigida.

Nas atuais repúblicas populares separatistas vivem pelo menos três milhões de pessoas, mas antes da guerra contavam-se 4,5 milhões na região de Donetsk e cerca de dois milhões na região de Lugansk, informa com uma ponta de orgulho a dirigente sindical. "Sim, era muita gente!".

Donetsk era a maior região industrial da Ucrânia, 10% do total da população do país, mas cerca de 20% do PIB nacional. A grande maioria das exportações também provinham daí, em particular metalurgia e indústria mineira. Apesar do conflito e do seu estatuto separatista, em 2016 permanecia em segundo lugar entre as 24 regiões da Ucrânia em termos de produção de bens industriais.

Lina Kushch revela nostalgia pela região onde nasceu e viveu durante mais de 45 anos. Sabe que esta guerra não surgiu agora, está ativa há oito anos. E que a eventual reintegração das regiões de Donetsk e Lugansk na Ucrânia, que deseja, se vai prolongar por muitos anos.

"A desminagem vai demorar muito tempo, até que esses territórios sejam seguros para as pessoas, e ainda serão necessários muitos anos para que a lei ucraniana volte a vigorar nessas regiões".

Um cenário que se poderá complicar em definitivo com o reconhecimento pela Rússia da independência das duas "repúblicas populares", e que implicará o fim de um moribundo processo negocial.

"Se forem reconhecidas por Moscovo, Putin pode instalar as suas tropas na região. Mas espero voltar à minha cidade, ter o direito de regressar sempre que queira, com a minha família".

Na tarde de segunda-feira, no Kremlin, o presidente russo Vladimir Putin anunciava o reconhecimento das "repúblicas" pró-russas. Horas mais tarde, ordenava a mobilização do Exército para a "manutenção da paz" em Donetsk e Lugansk”.

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (Lusa)

DIÁRIOS DE KIEV – (10) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)

Ucrânia: Kiev acorda sem sobressaltos após decisão de Putin

22 de Fevereiro de 2022

Kiev, 22 fev 2022 (Lusa) – “Kiev acordou hoje com um sol esplendoroso, temperatura acima da média e num profundo silêncio, apenas quebrado pelo crocitar de corvos negros sobre a Maidan, a Praça da Independência, antecipando mais um dia ruidoso e com aparência normal.

A decisão anunciada na véspera pelo Presidente russo, Vladimir Putin, de reconhecer as independências das duas repúblicas secessionistas pró-russas do leste, na região do Donbass, não afetou o ritmo da cidade, apesar de algumas expressões mais apreensivas.

Gente num rodopio em direção ao trabalho, o habitual e intenso trânsito, grupos de jovens reunidos junto a pequenos quiosques ou à entrada de estabelecimentos comerciais. Nas passagens subterrâneas que atravessam as ruas e pejadas de pequenas lojas, alguns pedintes pedem uma ajuda, um ou outro músico de rua exercita o violino ou a guitarra junto à aparelhagem de som.

À superfície, uma senhora de meia-idade instalou o seu pequeno teclado junto a uma esquina e um som clássico dilui-se pela avenida. Mais à frente, um homem insufla determinado a sua gaita de foles.

"A guerra prolonga-se há oito anos, por isso não é novidade para nós. Mas agora o nosso exército é poderoso e pode mostrar o poder ucraniano. Sobre o reconhecimento da independência das regiões do Donbass, não penso nisso, não posso dizer nada. Penso que tudo vai ficar bem e que teremos um grande futuro para a Ucrânia", diz Vadim, 27 anos, em conversa com um amigo junto a uma nesga de sol.

Não longe, sentada num banco de metal, Iana fuma um cigarro eletrónico e conversa com uma amiga, num tom muito calmo.

"Não quero falar disso porque é uma situação muito séria. Não sei o que dizer… pode haver uma guerra, mas gostava que a Rússia e a Ucrânia estivessem em paz. Somos irmãos, a Rússia era um país amigo e agora a situação é muito má", diz Iana, 20 anos, loira, óculos escuros, brinco no nariz e um sorriso triste.

Numa zona alta da cidade, numa sala exígua e atolada de livros e papéis que funciona como sede de uma publicação universitária, o professor Viktor Stepanenko, 60 anos, desdramatiza de algum modo a decisão do líder do Kremlin.

"Em certa medida e em termos gerais, não foi uma novidade para muitas pessoas. Esses territórios já estavam sob controlo russo, por tropas russas e pelo Estado russo. A única coisa que mudou foi que reconheceram oficialmente a independência, ‘de jure’. Não como parte da Rússia, mas como Estados independentes", disse.

Um cenário algo semelhante ao registado com a Ossétia do Sul e Abkházia, duas regiões secessionistas da Geórgia reconhecias por Moscovo em agosto de 2008, recorda este investigador principal do Instituto de Sociologia da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia.

"São territórios junto à fronteira com a Rússia e podem ser integrados sem problema, e de forma administrativa. O rublo já circula nesses territórios, e estão a concluir o sistema de ‘passeportização’", a concessão de passaportes russos à generalidade da população, adiantou.

"Para nós ucranianos, para as pessoas comuns, nada mudou, é apenas uma alteração a nível judicial", sublinhou Viktor Stepanenko, numa referência às autoproclamadas República Popular de Donetsk (DNR) e República Popular de Lugansk (LNR), na sequência de referendos em maio de 2014, nunca reconhecidos por Kiev e que decorreram duas semanas antes do início de um conflito que já provocou 14.000 mortos, muitos milhares de feridos e 1,5 milhões de deslocados.

No entanto, deteta um "problema maior", que poderá emergir após a decisão de Putin, que enterrou em definitivo os acordos de Minsk de 2014 e 2015, incapazes de garantirem uma solução política para o conflito e um cumprimento integral do cessar-fogo pelas duas partes.

"A situação de risco é o facto de estas repúblicas reivindicarem territórios que coincidem com os ‘oblast’ [províncias] da Ucrânia incluídos na região do Donbass, podem argumentar que a Ucrânia está a ocupar esses territórios e terem a intenção de os controlar na totalidade, agora que na sua perspetiva são Estados reconhecidos", assinalou.

"Isso será um problema, porque deixaram de ser entidades para se tornarem satélites da Rússia, e com a assinatura de Putin na segunda-feira a incluir um tratado de amizade e apoio militar com estas repúblicas. E é por isso que as tropas russas já entraram de forma legal", acrescentou.

Mas Viktor Stepanenko também recorda que o discurso de Putin não se restringiu à questão do Donbass, indo mais além do previsto.

"Foi um discurso mais abrangente e colocou mesmo em causa a existência da Ucrânia enquanto Estado soberano e independente. É a sua ideia fixa, pensa que estes territórios pertencem ao designado império da ‘Grande Rússia’, e sonha com a restauração de uma espécie de União Soviética", disse, antes de recordar que em dezembro deste ano se celebra o centésimo aniversário da fundação da União Soviética.

"Apesar dos seus sonhos, Putin poderá admitir que uma guerra generalizada implicaria um alto preço, incluindo para ele próprio. Poderá ter algum sucesso local no Donbass, mas a probabilidade de uma guerra total é muito reduzida. Mas ninguém sabe, é um mundo louco…".

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (Lusa)

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