Ucrânia: A esperança de um regresso sem medo à cidade de Donetsk
21 de Fevereiro de 2022
Kiev, 22 fev 2022 (Lusa) – “Lina Kushch ainda mantém a esperança num
regresso sem medo à sua casa em Donetsk, no leste da Ucrânia, que deixou em
2014, em pleno conflito, para se juntar à família já instalada na capital Kiev.
"O meu apartamento está fechado, uma senhora tem a chave para ver
se existe algum problema. Alugámos uma casa em Kiev e não podemos vender o
apartamento em Donetsk por ser necessário estar lá pessoalmente, devido às
novas leis em vigor e que são diferentes das ucranianas".
Lina Kushch, 55 anos, jornalista, é a atual primeira secretária do
Sindicato Nacional dos Jornalistas da Ucrânia, instalado num tradicional
edifício da avenida Khreshchatyk que sai da Praça Maidan (Independência) e onde
resistem diversos exemplares dos grandes edifícios soviéticos típicos da
arquitetura estalinista, estilo "bolos de casamento", alguns com a
estrela no topo.
Correspondente regional do diário A Voz da Ucrânia, e ainda de outros
periódicos locais, recorda com precisão o dia 1 de março de 2014, pouco após o
triunfo da "revolução de Maidan" em Kiev que afastou do poder o
Presidente "pró-russo" Viktor Yanukovych, quando a praça central de
Donetsk, cidade de um milhão de habitantes e onde nasceu cresceu, se encheu de
manifestantes.
"Traziam bandeiras da Rússia, foi o início de manifestações
contínuas na cidade. Mas muitas pessoas não eram de Donetsk, nem da região,
perguntavam qual a direção da praça principal, ou a paragem dos transportes.
Vinham de autocarro da Rússia para participar nos protestos", assegura.
Os seus pais e o filho mais novo, então com 11 anos, tinham abandonado
a cidade em maio, alguns dias antes do início da grande batalha pelo controlo
do aeroporto, para se juntarem ao filho mais velho do casal que já estudava em
Kiev. Com o seu marido, também jornalista, decidiu ficar e tornou-se numa
observadora privilegiada.
Logo em 3 de março, assistiu ao cerco ao edifício do conselho regional
(o parlamento local), onde fazia a cobertura de uma sessão. Milhares de
manifestantes exigiam a aprovação de um estatuto de federação para a região e a
realização de um referendo, com o edifício por fim invadido e a sessão
interrompida.
Já durante a guerra, em 11 de maio, as duas regiões separatistas
pró-russas do leste em rebelião aprovavam em referendo, não reconhecido por
Kiev e por margem esmagadora, a criação da República Popular de Donetsk (DNR) e
da República Popular de Lugansk (LNR).
"Donetsk era uma cidade muito calma, ninguém acreditava que a
situação piorasse a esse ponto. Mas já havia sinais antes do início dos
combates, em 26 de maio. Na retaguarda das manifestações estavam soldados
russos, sem insígnias. Eram militares ou membros de exércitos privados, muitos
dos oligarcas ucranianos tinham segurança pessoal, mas eram verdadeiros
exércitos privados".
Apesar de a maioria da população destas industrializadas e ricas
regiões do Donbass ser russófona, Lina Kushch indica que a deriva separatista
era residual e os seus apoiantes apenas mobilizavam um setor muito reduzido da
população. Subitamente, e através "de uma operação bem preparada, com o
bloqueio de edifícios, estradas, pontes", tudo mudou.
"Após o desfecho do Euromaidan, aumentou o número dos opositores à
revolta de Kiev. Tinham votado em Viktor Yanukovych mas quando ele fugiu da
Ucrânia para a Rússia [onde permanece exilado], era difícil encontrar alguém em
Donetsk que o apoiasse", em particular entre quem defendia o
prosseguimento das relações com a Rússia e contestava a nova opção pró-europeia
e ocidental do país, revela.
"Ficaram muito desapontados com a sua fuga, diziam que deveria ter
ficado e lutado, e passaram a identificar-se com novos líderes considerados
mais fortes, porque Yanukovych tinha deixado de ser o líder, tinha
fugido".
Foi uma guerra fratricida. "Lembro-me de exemplos de membros da
mesma família que combateram nos lados opostos da linha da frente, vizinhos a
combater entre si. As pessoas começaram a procurar quem tinha a mesma perspetiva
sobre o conflito", diz.
E começaram as delações, as queixas às novas autoridades, o divórcio
definitivo entre os "pró-russos" e os "pró-ucranianos", em
Donetsk, no Donbass, um vírus promovido por "minorias agressivas" das
duas fações e que alastrou por todo o país.
"No nosso edifício havia pró-ucranianos e pró-russos, no mesmo
espaço… Lembro que um nosso colega que aí vivia, exprimiu a sua forte posição
‘pró-Ucrânia’, os vizinhos denunciaram-no aos responsáveis da administração e
esteve preso duas semanas, foi espancado, tinha problemas de saúde que se
agravaram e morreu dois meses depois, sem sair de Donetsk", refere Lina
Kushch.
Um conflito violento, com um balanço atual de 14.000 mortos e muitos
mais feridos. Situado perto do aeroporto, um edifício de 12 andares onde
estavam instalados muitos ‘media’ de Donetsk foi ocupado pelas forças rebeldes,
diversas regiões da periferia foram devastadas, mas a cidade escapou aos
combates.
O deslocamento de 1,5 milhões de pessoas para as regiões sob controlo
ucraniano, hoje identificadas como "Pessoas Deslocadas" (Internally
Displaced Persons, IDF, na sigla em inglês) foi outra das consequências da
guerra civil. Entre elas, pelo menos 300.000 decidiram, entretanto, regressar
às suas regiões situadas nos territórios separatistas.
A larga maioria das pessoas reinstaladas na Ucrânia ainda não garante
qualquer ajuda, mas em alguns casos podem receber uma contribuição destinada ao
arrendamento, ou compra, de novo alojamento.
Lina Kushch refere que as crianças até aos 18 anos e os reformados
recebem 1.000 hryvnia [cerca de 30 euros] por mês. "E quem tem um trabalho
pode receber 442 hryvnia mensais [cerca de 13 euros]. Os desempregados não
recebem esta ajuda, (…) mas muitas pessoas também se envolvem na economia
paralela…".
Apesar de poder deslocar-se a Donetsk, onde está registada e possui uma
casa, Lina Kushch tem optado por não arriscar. Pelo contrário, muitos
deslocados continuam a visitar as suas regiões de origem, onde deixaram familiares,
amigos, posses.
"Mas desde 2020 que é mais difícil. Até então, podiam atravessar
os postos de controlo instalados na ‘linha de contacto’, entretanto encerrados
pelas autoridades de Donetsk e Lugansk devido ao aumento das tensões. Há muitas
pessoas que têm de viajar através de território da federação da Rússia",
esclarece.
"Partem desde Kiev em pequenos autocarros de oito, dez lugares,
entram em território da Rússia e seguem à fronteira com Donetsk e Lugansk.
Depois atravessam a fronteira com os territórios não controlados, até ao
destino, uma viagem de 27 horas a 30 horas".
Os que obtêm autorização para entrarem "no outro lado"
através dos postos de controlo situados na "linha de contacto" e em
funcionamento têm previamente de justificar o motivo, esperar pela autorização
e optar por segunda ou sexta-feira, num horário determinado.
Uma das mais eficazes formas de "russificação" de Donetsk e
Lugansk tem consistido no fornecimento em massa de passaportes à população, que
assim obtém nacionalidade russa, entregues presencialmente na cidade de Rostov,
junto à fronteira comum, após a apresentação da documentação exigida.
Nas atuais repúblicas populares separatistas vivem pelo menos três
milhões de pessoas, mas antes da guerra contavam-se 4,5 milhões na região de
Donetsk e cerca de dois milhões na região de Lugansk, informa com uma ponta de
orgulho a dirigente sindical. "Sim, era muita gente!".
Donetsk era a maior região industrial da Ucrânia, 10% do total da
população do país, mas cerca de 20% do PIB nacional. A grande maioria das
exportações também provinham daí, em particular metalurgia e indústria mineira.
Apesar do conflito e do seu estatuto separatista, em 2016 permanecia em segundo
lugar entre as 24 regiões da Ucrânia em termos de produção de bens industriais.
Lina Kushch revela nostalgia pela região onde nasceu e viveu durante
mais de 45 anos. Sabe que esta guerra não surgiu agora, está ativa há oito
anos. E que a eventual reintegração das regiões de Donetsk e Lugansk na
Ucrânia, que deseja, se vai prolongar por muitos anos.
"A desminagem vai demorar muito tempo, até que esses territórios
sejam seguros para as pessoas, e ainda serão necessários muitos anos para que a
lei ucraniana volte a vigorar nessas regiões".
Um cenário que se poderá complicar em definitivo com o reconhecimento
pela Rússia da independência das duas "repúblicas populares", e que
implicará o fim de um moribundo processo negocial.
"Se forem reconhecidas por Moscovo, Putin pode instalar as suas
tropas na região. Mas espero voltar à minha cidade, ter o direito de regressar
sempre que queira, com a minha família".
Na tarde de segunda-feira, no Kremlin, o presidente russo Vladimir
Putin anunciava o reconhecimento das "repúblicas" pró-russas. Horas
mais tarde, ordenava a mobilização do Exército para a "manutenção da
paz" em Donetsk e Lugansk”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (Lusa)
DIÁRIOS DE KIEV – (10) por Pedro Caldeira Rodrigues (Agência LUSA)
Ucrânia: Kiev acorda sem sobressaltos após decisão de Putin
22 de Fevereiro de 2022
Kiev, 22 fev 2022 (Lusa) – “Kiev acordou hoje com um sol esplendoroso, temperatura acima da média e num profundo silêncio, apenas quebrado pelo crocitar de corvos negros sobre a Maidan, a Praça da Independência, antecipando mais um dia ruidoso e com aparência normal.
A decisão anunciada na véspera pelo Presidente russo, Vladimir Putin,
de reconhecer as independências das duas repúblicas secessionistas pró-russas
do leste, na região do Donbass, não afetou o ritmo da cidade, apesar de algumas
expressões mais apreensivas.
Gente num rodopio em direção ao trabalho, o habitual e intenso
trânsito, grupos de jovens reunidos junto a pequenos quiosques ou à entrada de
estabelecimentos comerciais. Nas passagens subterrâneas que atravessam as ruas
e pejadas de pequenas lojas, alguns pedintes pedem uma ajuda, um ou outro
músico de rua exercita o violino ou a guitarra junto à aparelhagem de som.
À superfície, uma senhora de meia-idade instalou o seu pequeno teclado
junto a uma esquina e um som clássico dilui-se pela avenida. Mais à frente, um
homem insufla determinado a sua gaita de foles.
"A guerra prolonga-se há oito anos, por isso não é novidade para
nós. Mas agora o nosso exército é poderoso e pode mostrar o poder ucraniano.
Sobre o reconhecimento da independência das regiões do Donbass, não penso
nisso, não posso dizer nada. Penso que tudo vai ficar bem e que teremos um
grande futuro para a Ucrânia", diz Vadim, 27 anos, em conversa com um amigo
junto a uma nesga de sol.
Não longe, sentada num banco de metal, Iana fuma um cigarro eletrónico
e conversa com uma amiga, num tom muito calmo.
"Não quero falar disso porque é uma situação muito séria. Não sei
o que dizer… pode haver uma guerra, mas gostava que a Rússia e a Ucrânia
estivessem em paz. Somos irmãos, a Rússia era um país amigo e agora a situação
é muito má", diz Iana, 20 anos, loira, óculos escuros, brinco no nariz e
um sorriso triste.
Numa zona alta da cidade, numa sala exígua e atolada de livros e papéis
que funciona como sede de uma publicação universitária, o professor Viktor
Stepanenko, 60 anos, desdramatiza de algum modo a decisão do líder do Kremlin.
"Em certa medida e em termos gerais, não foi uma novidade para
muitas pessoas. Esses territórios já estavam sob controlo russo, por tropas
russas e pelo Estado russo. A única coisa que mudou foi que reconheceram
oficialmente a independência, ‘de jure’. Não como parte da Rússia, mas como
Estados independentes", disse.
Um cenário algo semelhante ao registado com a Ossétia do Sul e
Abkházia, duas regiões secessionistas da Geórgia reconhecias por Moscovo em
agosto de 2008, recorda este investigador principal do Instituto de Sociologia
da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia.
"São territórios junto à fronteira com a Rússia e podem ser
integrados sem problema, e de forma administrativa. O rublo já circula nesses
territórios, e estão a concluir o sistema de ‘passeportização’", a
concessão de passaportes russos à generalidade da população, adiantou.
"Para nós ucranianos, para as pessoas comuns, nada mudou, é apenas
uma alteração a nível judicial", sublinhou Viktor Stepanenko, numa
referência às autoproclamadas República Popular de Donetsk (DNR) e República
Popular de Lugansk (LNR), na sequência de referendos em maio de 2014, nunca
reconhecidos por Kiev e que decorreram duas semanas antes do início de um
conflito que já provocou 14.000 mortos, muitos milhares de feridos e 1,5
milhões de deslocados.
No entanto, deteta um "problema maior", que poderá emergir
após a decisão de Putin, que enterrou em definitivo os acordos de Minsk de 2014
e 2015, incapazes de garantirem uma solução política para o conflito e um
cumprimento integral do cessar-fogo pelas duas partes.
"A situação de risco é o facto de estas repúblicas reivindicarem
territórios que coincidem com os ‘oblast’ [províncias] da Ucrânia incluídos na
região do Donbass, podem argumentar que a Ucrânia está a ocupar esses
territórios e terem a intenção de os controlar na totalidade, agora que na sua
perspetiva são Estados reconhecidos", assinalou.
"Isso será um problema, porque deixaram de ser entidades para se
tornarem satélites da Rússia, e com a assinatura de Putin na segunda-feira a
incluir um tratado de amizade e apoio militar com estas repúblicas. E é por
isso que as tropas russas já entraram de forma legal", acrescentou.
Mas Viktor Stepanenko também recorda que o discurso de Putin não se
restringiu à questão do Donbass, indo mais além do previsto.
"Foi um discurso mais abrangente e colocou mesmo em causa a existência
da Ucrânia enquanto Estado soberano e independente. É a sua ideia fixa, pensa
que estes territórios pertencem ao designado império da ‘Grande Rússia’, e
sonha com a restauração de uma espécie de União Soviética", disse, antes
de recordar que em dezembro deste ano se celebra o centésimo aniversário da
fundação da União Soviética.
"Apesar dos seus sonhos, Putin poderá admitir que uma guerra
generalizada implicaria um alto preço, incluindo para ele próprio. Poderá ter
algum sucesso local no Donbass, mas a probabilidade de uma guerra total é muito
reduzida. Mas ninguém sabe, é um mundo louco…".
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (Lusa)
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