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quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dos Três FFF’s do “Fascismo” (“Fado”, “Fátima” e “Futebol”) aos Três FFF’s da Democracia (Futebol, Futebol e … Futebol!)…


Durante os tempos do Estado Novo, nas acções de “contra-propaganda” a que a oposição anti-fascista recorria para denunciar o regime, uma das frases mais repetidas para encontrar justificação para a mansidão resignada de um povo, era denunciar o recurso , por parte do regime, a três pilares de alienação: Fado, Fátima e Futebol.

Contudo, observando com atenção, essa trilogia não passava de retórica propagandística, muitas vezes injusta.

De facto, os estádios de futebol foram muitas vezes aproveitados para contestar o regime e as figuras públicas que surgiam nas bancadas dos grandes desafios, como o único palco autorizado para manifestações de massas. O jornal que entre nós mais promoveu o desporto “rei”, “A Bola”, era controlado por gente da oposição que se aproveitava da aparente temática inócua desportiva para denunciar o regime nas entrelinhas ou transmitir, de forma cifrada, informação sobre acontecimentos nacionais, recorrendo à metáfora desportiva, como naquela célebre reportagem sobre um jogo de futebol, no fim-de-semana do falhado golpe militar do 16 de Março de 1974, onde se anunciava esse acontecimento de forma subliminar.

O fado, por sua vez, foi a base de onde partiu a musica de intervenção, como aconteceu com Zeca Afonso com o fado de Coimbra, ou com a própria Amália que, privando com poetas de esquerda, deles recebeu sugestões para algumas das suas mais emblemáticas canções.

Também a Igreja, apesar de ser de facto um dos pilares ideológicos do regime, foi o seio onde cresceram algumas das movimentações mais organizadas contra o regime, principalmente a partir da década de 60, como a atitude de frontal contestação por parte do Bispo do Porto ou as denuncias dos crimes perpetrados pelo regime nas colónias durante a guerra. Aliás, algumas das atitudes mais consequentes contra a guerra colonial partiram do seio dessa instituição. O escotismo, por exemplo, teve um papel importante como contraponto em relação à influência que o regime procurava ter junto da juventude com a Mocidade Portuguesa. Por cá é de recordar, por exemplo, o caso do jornal “Badaladas”, dirigido pelo saudoso padre Joaquim, dando guarida, nas páginas desse semanário, aos intelectuais da oposição.

Depois do 25 de Abril, o fado afirmou-se como património cultural, revelando grandes nomes da musica popular, e a Igreja é hoje uma das instituições que tem revelado mais coragem e consequência na denuncia de injustiças sociais e do empobrecimento levado a cabo pelas políticas dos últimos tempos.

Contudo, o futebol, esse sim, tornou-se o grande pilar de alienação colectiva dos nossos tempos, ou, mais grave ainda, o palco privilegiado de afirmação de gente medíocre e um grande centro de lavagem de dinheiro de origem duvidosa.

Falar de desporto em Portugal tornou-se sinónimo de falar de Futebol. A maior parte das outras modalidades tem sido quase totalmente esquecida e esmagada pelo poder do futebol.

Para isso muito contribuiu uma comunicação social indigente, nomeadamente a televisiva, que usa e abusa da sua influência par promover esse desporto, abrindo noticiários com intermináveis resumos futebolísticos, alterando programações para dar destaque a qualquer evento futebolístico, por mais irrelevante que seja,  dando o mesmo destaque a esse desporto  que a qualquer noticia que seja de facto importante.

Apesar de tudo, o futebol nunca nos deu um título mundial, olímpico ou europeu, a não ser duas únicas vezes, uma com o Futebol Clube do Porto, já lá vão umas décadas, outra com os sub-21, há muitos anos, numa altura em que o Futebol ainda não tinha o poder dos nossos dias.

Entretanto temos centenas de campeões mundiais, olímpicos e europeus, nas mais variadas modalidades, cujos feitos merecem muitas vezes pouco mais que uma nota de rodapé, no meio de uma qualquer polémica boçal sobre o futebol.

E o mesmo podemos dizer em relação às centenas de prémios internacionais conseguidos por portugueses na área da Cultura, da Arte e da Ciência.

O que se passou no passado domingo foi, a todos os níveis, do mais vergonhoso exagero “jornalístico”, e eu até sou benfiquista e vibrei com a sua vitória.

Todos os canais “informativos” passaram horas com reportagens a acompanhar a festa dos benfiquista, dando largas aos quinze minutos de fama da mais alarve boçalidade, a roçar muitas vezes o puro vandalismo.

A partir das 17 horas (nalguns casos antes disso ) não houve qualquer outra informação sobre o que se passava no mundo ou no país.

É caso para dizer que a Democracia também criou os seus “FFF’s”… Futebol!, Futebol ! , e…Futebol!

Por isso fazemos nossas as palavras do jornalista José Vitor Malheiros, ontem publicadas na sua crónica do jornal Público, e que transcrevemos em baixo:



"Pertenço ao grupo dos milhares de portugueses que ontem não puderam adormecer à hora habitual devido aos festejos esfuziantes dos adeptos do Benfica, noite fora, que encheram as ruas com as suas cornetas, buzinadelas, gritos e petardos. Não guardo pelo facto nenhum azedume, apesar do incómodo. Gosto de festas ruidosas, gosto de ver pessoas na rua, tenho a felicidade de um sono fácil, tenho janelas com vidros duplos e não tenho nenhuma antipatia particular pelo Benfica. Mas confesso a minha dificuldade para entender estas euforias com as vitórias alheias, ainda que perceba o entusiasmo que o futebol transmite. Percebo o gosto, mas não consigo compreender a febre. De Gaulle dizia que patriotismo era amar o seu país e que nacionalismo era odiar o país dos outros. O que me espanta no fervor futebolístico é haver tanto “nacionalismo” e tão escasso “patriotismo” ou, dito de outra forma, que o “nacionalismo” que consiste no ódio aos outros clubes seja a forma predominante de viver o “patriotismo” que é o amor ao seu clube. Tanto ou mais do que a vitória do seu clube, o que arrebata os adeptos é a derrota e a humilhação dos adversários (basta ouvir os gritos na rua e ler os blogues), e isso é algo que tenho dificuldade em aceitar, tanto mais que as grandes conquistas vão sempre muito para além da derrota dos rivais.

"Há no fervor guerreiro dos adeptos dos clubes um aspecto puramente tribal, que há anos é objecto de estudos antropológicos e psicológicos. Não há no amor clubista nenhum valor substantivo, mas apenas uma adesão à camisola, à bandeira e ao grupo. O que é estranho é que a forma mais fácil de mobilizar multidões e de acirrar os seus ânimos seja através de um ritual tribal e não através de valores substantivos, de ideias ou de projectos que tenham um real impacto na vida dessas próprias pessoas.

"Ontem, ao ouvir as buzinadelas, pensava em quantos adeptos deste ou de outro clube, loucos de alegria pelo resultado de um jogo que em nada modificaria a sua vida, estariam dispostos a sair à rua para defender o aumento do salário mínimo, o aumento das pensões, o fim das propinas ou o pleno emprego. Quantas dessas pessoas seriam capazes de vir para as ruas exigir o fim da pobreza? Quantas dessas pessoas viriam para a rua indignadas pelos milhares de crianças que passam fome? Quantas dessas pessoas viriam para a rua exigir um combate eficaz à corrupção e uma justiça igual para todos? Quantas viriam defender uma escola pública de qualidade? Quantas destas pessoas virão para a rua no 25 de Abril gritar que não esquecemos a liberdade? Quantas dessas pessoas irão votar nas eleições europeias? Quantas irão votar nas legislativas? E quantas irão votar nos mesmos que hoje os condenam a eles à pobreza e os seus filhos à ignorância? Para que lhes serve este feroz orgulho de grupo e esta embriguez selvagem da vitória se, nos momentos que importam realmente, irão baixar o pescoço onde se irá pousar a canga?"

José Vitor Malheiros, "O jogo da Banca e o Jogo da Bancada", in Público, 22 de Abril de 2014








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