Durante os tempos do Estado Novo, nas acções de
“contra-propaganda” a que a oposição anti-fascista recorria para denunciar o
regime, uma das frases mais repetidas para encontrar justificação para a mansidão
resignada de um povo, era denunciar o recurso , por parte do regime, a três pilares de
alienação: Fado, Fátima e Futebol.
Contudo, observando com atenção, essa trilogia não passava
de retórica propagandística, muitas vezes injusta.
De facto, os estádios de futebol foram muitas vezes
aproveitados para contestar o regime e as figuras públicas que surgiam nas
bancadas dos grandes desafios, como o único palco autorizado para manifestações
de massas. O jornal que entre nós mais promoveu o desporto “rei”, “A Bola”, era
controlado por gente da oposição que se aproveitava da aparente temática inócua
desportiva para denunciar o regime nas entrelinhas ou transmitir, de forma
cifrada, informação sobre acontecimentos nacionais, recorrendo à metáfora
desportiva, como naquela célebre reportagem sobre um jogo de futebol, no
fim-de-semana do falhado golpe militar do 16 de Março de 1974, onde se
anunciava esse acontecimento de forma subliminar.
O fado, por sua vez, foi a base de onde partiu a musica de
intervenção, como aconteceu com Zeca Afonso com o fado de Coimbra, ou com a
própria Amália que, privando com poetas de esquerda, deles recebeu sugestões
para algumas das suas mais emblemáticas canções.
Também a Igreja, apesar de ser de facto um dos pilares
ideológicos do regime, foi o seio onde cresceram algumas das movimentações mais
organizadas contra o regime, principalmente a partir da década de 60, como a
atitude de frontal contestação por parte do Bispo do Porto ou as denuncias dos
crimes perpetrados pelo regime nas colónias durante a guerra. Aliás, algumas
das atitudes mais consequentes contra a guerra colonial partiram do seio dessa
instituição. O escotismo, por exemplo, teve um papel importante como
contraponto em relação à influência que o regime procurava ter junto da
juventude com a Mocidade Portuguesa. Por cá é de recordar, por exemplo, o caso
do jornal “Badaladas”, dirigido pelo saudoso padre Joaquim, dando guarida, nas
páginas desse semanário, aos intelectuais da oposição.
Depois do 25 de Abril, o fado afirmou-se como património
cultural, revelando grandes nomes da musica popular, e a Igreja é hoje uma das
instituições que tem revelado mais coragem e consequência na denuncia de
injustiças sociais e do empobrecimento levado a cabo pelas políticas dos últimos
tempos.
Contudo, o futebol, esse sim, tornou-se o grande pilar de
alienação colectiva dos nossos tempos, ou, mais grave ainda, o palco
privilegiado de afirmação de gente medíocre e um grande centro de lavagem de
dinheiro de origem duvidosa.
Falar de desporto em Portugal tornou-se sinónimo de falar de
Futebol. A maior parte das outras modalidades tem sido quase totalmente
esquecida e esmagada pelo poder do futebol.
Para isso muito contribuiu uma comunicação social indigente,
nomeadamente a televisiva, que usa e abusa da sua influência par promover esse
desporto, abrindo noticiários com intermináveis resumos futebolísticos,
alterando programações para dar destaque a qualquer evento futebolístico, por
mais irrelevante que seja, dando o mesmo
destaque a esse desporto que a qualquer
noticia que seja de facto importante.
Apesar de tudo, o futebol nunca nos deu um título mundial,
olímpico ou europeu, a não ser duas únicas vezes, uma com o Futebol Clube do
Porto, já lá vão umas décadas, outra com os sub-21, há muitos anos, numa altura
em que o Futebol ainda não tinha o poder dos nossos dias.
Entretanto temos centenas de campeões mundiais, olímpicos e
europeus, nas mais variadas modalidades, cujos feitos merecem muitas vezes pouco
mais que uma nota de rodapé, no meio de uma qualquer polémica boçal sobre o
futebol.
E o mesmo podemos dizer em relação às centenas de prémios
internacionais conseguidos por portugueses na área da Cultura, da Arte e da
Ciência.
O que se passou no passado domingo foi, a todos os níveis,
do mais vergonhoso exagero “jornalístico”, e eu até sou benfiquista e vibrei
com a sua vitória.
Todos os canais “informativos” passaram horas com
reportagens a acompanhar a festa dos benfiquista, dando largas aos quinze
minutos de fama da mais alarve boçalidade, a roçar muitas vezes o puro
vandalismo.
A partir das 17 horas (nalguns casos antes disso ) não houve
qualquer outra informação sobre o que se passava no mundo ou no país.
É caso para dizer que a Democracia também criou os seus
“FFF’s”… Futebol!, Futebol ! , e…Futebol!
Por isso fazemos nossas as palavras do jornalista José Vitor
Malheiros, ontem publicadas na sua crónica do jornal Público, e que
transcrevemos em baixo:
"Há no fervor guerreiro dos adeptos dos clubes um aspecto
puramente tribal, que há anos é objecto de estudos antropológicos e
psicológicos. Não há no amor clubista nenhum valor substantivo, mas apenas uma
adesão à camisola, à bandeira e ao grupo. O que é estranho é que a forma mais
fácil de mobilizar multidões e de acirrar os seus ânimos seja através de um
ritual tribal e não através de valores substantivos, de ideias ou de projectos
que tenham um real impacto na vida dessas próprias pessoas.
"Ontem, ao ouvir as buzinadelas, pensava em quantos adeptos
deste ou de outro clube, loucos de alegria pelo resultado de um jogo que em
nada modificaria a sua vida, estariam dispostos a sair à rua para defender o
aumento do salário mínimo, o aumento das pensões, o fim das propinas ou o pleno
emprego. Quantas dessas pessoas seriam capazes de vir para as ruas exigir o fim
da pobreza? Quantas dessas pessoas viriam para a rua indignadas pelos milhares
de crianças que passam fome? Quantas dessas pessoas viriam para a rua exigir um
combate eficaz à corrupção e uma justiça igual para todos? Quantas viriam
defender uma escola pública de qualidade? Quantas destas pessoas virão para a
rua no 25 de Abril gritar que não esquecemos a liberdade? Quantas dessas
pessoas irão votar nas eleições europeias? Quantas irão votar nas legislativas?
E quantas irão votar nos mesmos que hoje os condenam a eles à pobreza e os seus
filhos à ignorância? Para que lhes serve este feroz orgulho de grupo e esta
embriguez selvagem da vitória se, nos momentos que importam realmente, irão
baixar o pescoço onde se irá pousar a canga?"
José Vitor Malheiros, "O jogo da Banca e o Jogo da Bancada", in Público, 22 de Abril de 2014
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