Noite em branco nos abrigos de Kiev
Kiev, 25 fev 2022 (Lusa) – Kiev teve uma noite agitada numa cidade
quase deserta e com o bulício a decorrer nos diversos abrigos subterrâneos após
espaçados sinais de alerta sobre possíveis intensos bombardeamentos, que afinal
foram esporádicos.
Temia-se um ataque da aviação russa a pontos estratégicos, mas os
responsáveis civis e militares asseguraram que a ofensiva “foi travada”. De
madrugada, pela rua, passam dois soldados, fardados, capacete, colete
antibalas, pistola, equipados a rigor, e que se esquivam por uma esquina,
decerto direção ao seu posto. Diz-se que os russos estão a concluir o cerco à
capital ucraniana.
No caso de “ocupação” da cidade pelas forças enviadas pelo Presidente
Vladimir Putin, os dirigentes ucranianos já prometeram resistência bairro a
bairro, rua a rua, casa a casa, também assegurada pelos milhares de voluntários
já convocados após a declaração da lei marcial e do recolher obrigatório, das
21:00 às 07:00.
O piso menos dois da garagem de um hotel situado no centro foi adaptado
para abrigo, onde se chega através de um pequeno labirinto de corredores e onde
as paredes com setas impressas em folhas de papel que indicam o percurso.
“Vivo sozinha, estou muito nervosa. Pedi para ficar aqui de noite, moro
perto”, indica uma mulher loira, de profundos olhos esverdeados, com ar
cansado. Pouco se dormiu esta noite em Kiev.
“Primeiro disseram que não aceitavam, mas veio muita gente pedir abrigo
e acabaram por também nos acolher. Estou muito nervosa e não conseguia estar
sozinha em casa”.
No amplo espaço da garagem do segundo piso, com alguns carros
estacionados, improvisou-se um acampamento. Famílias inteiras sentam-se em
volta de mesas, avós, filhos e netos, que conversam em baixa voz. Uns dormitam,
outro servem-se de um café, chá, bolos, que o hotel pôs à disposição e
espalhados por diversas mesas. “Guardem os copos de plástico, já temos poucos”,
apela uma funcionária. O início do racionamento.
Muitos jornalistas estão também encurralados neste espaço. Alguns
trazem os edredons e almofadas dos seus quartos, buscam um pedaço de cartão e
improvisam uma cama. Muitos habitantes das redondezas fizeram o mesmo, e alguns
conseguem mergulhar num sono profundo.
Um jovem casal tenta confortar o seu bebé, que teima em ficar acordado
noite dentro. Muitos jornalistas de televisões também não pregaram olho, e
aproveitam para sair à rua e enviar as suas reportagens. A noite está fria, e
muitos acabam por regressar aos quartos, para pouco depois serem de novo
acordados pela receção, que avisa sobre prováveis novos ataques. De novo, a
peregrinação em direção ao piso menos dois, após o som de uma ou outra
explosão.
O dia começa a despontar, de novo cinzento. Do outro lado da rua, uma
pequena mercearia abre portas. Alguns compram pão, outros bebidas, dois
soldados totalmente equipados, com a insígnia da bandeira ucraniana azul e
amarela cozida na manga da farda, levam uma embalagem de enchidos, e também se
somem. Alguns carros cruzam apressados a rua. Alguns devem transportar gente
importante, uma coluna de modernos todo-o-terreno em alta velocidade.
Mais uma explosão, ao longe. A capital ucraniana também está só, as
forças da invasão já sabem que caso pretendam ocupá-la não terão tarefa fácil.
Mas, lentamente, vai-se instalando cansaço, ainda não o desânimo, na grande
Kiev e nos seus cinco milhões de habitantes”.
PEDRO CALDEIRA RODRIGUES (LUSA)
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