O meu amigo Antero Valério criou uma montagem ilustrada onde ironizava com as ideias de um tal Movimento Acção Ética, liderado por Paulo Otero, onde se defende o papel “tradicional” da “dona de casa”, papel, aliás, vedado, segundo o mesmo, aos homens, a não ser aos viúvos.
Essa idéia veio na sequência
de um livro, “Identidades e Família”, apresentado numa sessão pública pelo
ex-primeiro ministro Passos Coelho, no qual, no meio de uma ou outra
colaboração a merecer reflexão, o que se evidenciou foi a polémica intervenção
daquele político e a defesa da chamada “família tradicional”, idéia enfatizada pelas
intervenções pública de uma personalidade, até agora desconhecida, o tal Paulo
Otero, professor da faculdade de Direito (uma escola pública, recorde-se àqueles
que acham que a escola pública é uma coutada de “esquerdistas”, como afirmam
alguns dos autores desse livro).
Uma das virtudes da democracia é a liberdade
de opinião.
Todas as ideias, mesmo as mais
absurdas, têm liberdade de serem expressas, sem que ninguém vá preso por isso.
Contudo, a partir do momento
em que se tornam públicas ou são debitadas por figuras públicas, estão sujeitas
ao escrutínio da critica pública ou a serem ridicularizadas em cartoon’s,
quando essas ideias roçam o absurdo ou o ridículo.
Mais do que as opiniões
expressas por esse tal Otero ou por alguns dos autores desse livro, devidamente
analisadas e escalpelizadas por Susana Peralta no jornal “Público” (“Promover a
liberdade e acolher as diferenças”, Público de 12 de Abril de 2024), o que me espantou
foram as reacções à publicação daquele “cartoon” humorístico do Antero.
Desde acusações de estar a
defender o comunismo até a de ridicularizar as donas de casa.
Defender a igualdade de
direitos entre mulheres e homens, o respeito pelas opções sexuais de cada um, a
diversidade da composição familiar ou o direito das mulheres de decidirem sobre
a sua maternidade, são direitos desde há muito consignado na lei e que fazem
parte dos Direitos Humanos e dos Direitos sociais na União Europeia. Não são ideias
“comunistas” ou “esquerdistas”. Não tenho dúvidas que toda a “esquerda”, assim
como, por uma questão de princípios, a Iniciativa Liberal e a maior parte do
PSD, e até gente do CDS, concorda e aplica no seu dia a dia os princípios
consignados nessas leis.
Por outro lado, ninguém é
proibido de viver numa “família tradicional” (seja lá o que isso for. Alguns
estudiosos do tema consideram que esse tipo de família existe, no mundo
ocidental, há menos de 200 anos, outros que esse é um mito criado pelas
ideologias extremistas dos anos 1930). Também ninguém é obrigado a ser homossexual
ou a abortar. Era o que faltava!.
Pelo contrário, são alguns dos
autores desse livro e alguns dos seus apoiantes que defendem uma alteração na
lei, essa sim com o objectivo de regressar à perseguição intolerante, marginalização
e criminização de outros tipos de
organização familiar ou de opções sexuais.
Esse tal Otero chegou a
comparar, num teste que efectuou aos seus alunos da faculdade de Direito, o
casamento entre pessoas do mesmo sexo ao “casamento” entre pessoas e animais, teste
revelado esta semana nas páginas do insuspeito jornal “Correio da Manhã”.
Muitas das ideias expressas
por esse “professor” e por alguns dos autores desse livro não são muito
diferentes, adaptadas à nossa realidade, do discurso que temos ouvido por parte
de Vladimir Putin sobre a “decadência do Ocidente”, onde a lei persegue as
pessoas pela suas opções sexuais e familiares, ou, pior ainda, pelos regimes
fundamentalistas dos aiatolas iranianos, dos talibãs do Afeganistão ou de
algumas monarquias absolutas do mundo árabe.
E já agora, para os que
anseiam pelo regresso do estatuto “tradicional” da dona de casa, como é
defendido por outro dos “aiatolas” desse livro, como César da Neves que “questiona
a discriminação histórica das “senhoras, alegadamente tiranizadas, [que] nunca
se queixavam ou manifestavam o seu desagrado”(citado do referido artigo de Susana
Peralta), recorde-se qual era a situação das mesmas “donas de casa”, aqui
recordo alguns dos principio, consignados na lei, nos tempos do Estado Novo:
Embora a condição da mulher
durante o Estado Novo não fosse uma situação exclusiva de um regime, ela era
transversal à sociedade e à época, o que esse regime fez foi enfatizar muitas
das regras legais e sociais que marginalizavam as mulheres da vida social,
económica, cultural e política e que já vinham de trás.
Recordamos, resumidamente,
algumas características da condição feminina durante o Estado Novo:
Legalmente, a condição das
mulheres nesse período regia-se pelo Código Civil de 1867, reformado e alterado
parcialmente em 1930 e que vigorou até 1966, pelo Código Penal de 1889, que
vigorou até 1982, famoso pelo seu artigo 372, segundo o qual o “homem casado
que achar sua mulher em adultério (…) e nesse acto matar ou a ela ou ao
adúltero, ou a ambos (…) será desterrado para fora da comarca por seis meses” e
ainda pela Concordata de 1940, todos eles bastante restritivos sobre o poder de
decisão e a liberdade das mulheres.
De acordo com essas leis, o
divórcio nos casamentos católicos era proibido, a violência sobre a mulher e os
filhos não era criminalizado, o marido, “chefe de família”, tinha todos os
direitos de decisão sobre toda a vida conjugal.
Essa situação perpetuava-se em
muitos aspetos da sociedade da época.
Na educação, a separação por
sexos vigorou por largos anos e em quase todos os graus de ensino, até 1972,
destacando-se o facto de o ensino obrigatório, que ia até à antiga 4ª classe,
só ser obrigatório para os rapazes. A maior parte dos conteúdos escolares
reproduziam a lógica e o estereótipo da mulher submetida às funções do lar e ao
serviço do marido. De destacar ainda o facto de as professoras necessitarem de
autorização para se casarem, nunca podendo auferir um rendimento superior ao do
noivo.
Noutros aspectos da vida
profissional, destacavam-se outras normas restritivas e discriminatórias da
condição feminina: as enfermeiras e telefonistas do Estado eram proibidas de se
casarem; a discriminação salarial era consagrada na lei; o marido podia ficar
com o ordenado da esposa e mesmo fazer cessar o contrato da esposa, proibindo-a
de trabalhar; existiam profissões que estavam vedadas às mulheres (a
magistratura, a aviação, as forças de segurança, a carreira diplomática e
militar…).O exercício da advocacia era uma rara excepção de uma profissão
permitida às mulheres, bem como as profissões liberais e o funcionalismo
público, onde não era necessário o consentimento do conjugue para o seu
exercício.
Na vida política, que se regia
pelas leis eleitorais, decreto 1931, lei 1946 e lei 1968, embora se tivesse
registado um alargamento do corpo eleitoral em relação ao que aconteceu na 1ª
República, só as mulheres chefes de família, isto é, viúvas, ou que tivessem
completado o ensino secundário, uma “imensa” minoria, é que possuíam o direito
de voto .
Enfim, não vou perder mais
tempo com este tema e acredito que a "imensa minoria" de mais de um milhão de
portugueses que pensa de acordo com algumas das ideias do referido livro e com
as opiniões de Paulo Otero e César das Neves, respeite os direitos dos restantes
9 milhões consignados em lei.
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