Vivi em Albufeira durante um ano, no final da década de 80 e já então me apercebi no "aperto" urbanistico em que vivia aquela localidade.
Calcorreei quase diáriamnete a "rua dos bares", e a praia dos pescadores, duas das zonas ontem mais atingidas.
As ruas mais baixas estavam "entaladas" numa garganta entre serras, em direcção ao mar, a tal "albufeira" que está na origem do nome da localidade, e acontecimentos como o de ontem pareciam inevitáveis.
Voltei lá algumas vezes anos depois e a memória que eu tinha dos tempos em que lá vi já nada tinha a haver com a densidade urbana que tornou o lugar irreconhecível.
Contudo, aquilo que ontem aconteceu, era previsivel, quer pelas condições naturais das avenidas inundadas, quer pelo caos urbanístico em que se transformaram as sua ruas antigas, quer pelas alterações climatéricas que vão tornar cada vez mais frequente situações como essas, não só em Albufeira, mas um pouco por todo o país.
Aliás, em Albufeira já tinha havido um aviso em 2008.
Ao ver as imagens televisivas e as fotografias que abaixo reproduzo, retiradas das páginas da net de vários canais informativos, não pude de deixar de recordar aquilo que aqui em Torres Vedras vivemos em 1983, também por esta altura do ano.
Históricamente, situações como as que Albufeira ontem viveu, não são únicas, como se recorda num excelente trabalho publicado ontem na página on line do jornal "Sul Informação" , da autoria do engenheiro Aurélio Nuno Cabrita , que reproduzimos em baixo.
Aos amigos e ex-alunos que deixei em Albufeira, embora tenha perdido o contacto de quase todos, mas sabendo que alguns estão neste momento a viver esse drama, aqui fica um abraço solidário e encorajamento para enfrentarem estes dias difíceis.
"Cheias em Albufeira, fenómeno tão antigo quanto a ocupação do vale
ribeirinho"
POR AURÉLIO NUNO CABRITA in “Sul
Informação” , 1 DE NOVEMBRO DE 2015
Há 65 anos, também se andou de
barco na baixa de Albufeira
"Há muito esquecidas e ignoradas, a magnitude das cheias que assolaram a
baixa de Albufeira, em meados do século passado, repetiu-se neste 1 de novembro
de 2015. É verdade que, amiúde e nos últimos anos, têm sido noticiadas diversas
inundações na cidade, mas as últimas grandes cheias tinham ocorrido ainda nos
anos de 1950.
"As décadas de 40 e 50 do século XX foram pródigas em inundações no
Algarve, as quais adquiriram contornos violentos em Albufeira. Cheias causadas
por intensa pluviosidade, que engrossaram a ribeira e invadiram a vila, que
cresceu precisamente sobre a ribeira.
"Em consequência, as cheias semearam o pânico e o horror, provocando
elevados prejuízos materiais e até perdas de vidas humanas.
"Nos últimos dias de novembro de 1949, um temporal de grande violência
assolou o Algarve, e Albufeira não foi exceção. Preparada para receber a feira
franca, a vila foi duramente atingida, conforme noticiou o jornal “O Século”,
de 01/12/1949: “Em Albufeira, na noite passada (29/11) e todo o dia de hoje, também
choveu torrencialmente. As águas da ribeira sobrepuseram-se aos dois diques e
fizeram levantar alguns cascões da canalização das águas para o mar. A parte
baixa da vila voltou a ser inundada pela cheia da ribeira, registando-se
prejuízos materiais em diversas casas”.
"O Diário de Notícias (DN), da mesma data, acrescentava: “Duramente
experimentada pelas inundações de 25 de Outubro e 23 de Dezembro de 1948, esta
vila está de novo inundada (…). A feira franca, marcada para os dias 29 e 30 do
corrente, não chegou a realizar-se, pois a água destruiu algumas barracas e
ameaça arrastar para o mar as pistas de automóveis eléctricos e as barracas de
cavalinhos. Os feirantes que foram atingidos por elevados prejuízos
encontram-se albergados em várias casas, postas à sua disposição. Continua a
chover e a população está sobressaltada”.
"Na sua edição de 03/12/1949, noticiava ainda o DN que “em Albufeira
apareceu abandonada uma embarcação e avistou-se no mar o cadáver dum homem que
se supõe ser um dos tripulantes. Durante todo o dia de ontem (1/12), por quatro
vezes toda a parte baixa da vila ficou coberta de água. Todos os pavimentos das
ruas estão revoltos e estragados”.
Cheias em Albufeira nas décadas de 40 e 50 do século XX
"A cheia de 30 de novembro de 1949 foi uma das primeiras da vila a ser
amplamente fotografada, pela mão de Fausto Napier, e da qual existem hoje
numerosas fotografias. Todavia, outras inundações ocorreram, como a de 25 de
outubro e a 22 de dezembro de 1948 ou ainda a de 15 de janeiro de 1956, de
efeitos e consequências mais nefastas, embora não abundem os registos
fotográficos.
“As águas das chuvas transbordaram um dique alagando ruas, largos e
quintais, desmoronando prédios e enchendo de pânico a população de Albufeira”,
foi a manchete da notícia, que o jornal “O Século” de 26/10/1948 dedicou às
cheias de 25 de outubro de 1948.
"O mesmo jornal acrescentava: “Difícil é descrever os momentos aflitivos
que se viveram aqui, quando a chuva, como se fora um verdadeiro dilúvio, fez
com que as águas inundassem a parte baixa da vila, tudo ameaçando
assustadoramente. Transbordou o dique e alagaram-se ruas, largos, quintas, e
casas de comércio e de habitação. Alguns edifícios que ameaçavam ruína desmoronaram-se,
outros ficaram com as paredes fendidas. Tudo se registou inesperadamente,
apesar das chuvas torrenciais que caíram durante a noite fazerem prever
inundações. O pânico foi terrível, pois a cheia atingiu dois metros, e como,
muita gente corresse perigo, logo se solicitaram os serviços dos bombeiros de
Faro, Loulé e Portimão. Igualmente se utilizaram barcos para socorrer pessoas
em perigo e haveres de muita gente”.
"O semanário farense “Correio do Sul” estimou os prejuízos em 2000
contos, sendo de 500 contos só no Grémio da Lavoura pela perda de sementes,
alfaias, trigo, cimento e adubos. O restante era repartido pelos comerciantes,
Central Elétrica (atual Galeria Samora Barros), e por proprietários de
edifícios que ruíram.
"Não eram decorridos dois meses, a 23/12/1948 o DN faz notícia de
primeira página: “Temporal no Algarve – Na Vila de Albufeira a água das chuvas
atingiu cerca de 7 metros de altura”. “A parte baixa daquela vila ficou
completamente bloqueada pelas águas. É tal a violência do temporal na costa que
muitas embarcações têm sido arrastadas para o mar, e estão-se a partir na
ressaca contra as rochas da praia. Estabelecimentos comerciais onde a água não
tinha entrado em inundações anteriores tiveram agora prejuízos quase totais. Em
muitos sítios a água atingiu os primeiros andares, cobrindo completamente as
árvores. Da frota pesqueira há mais de 40 barcos destruídos”.
Cheias em Albufeira nas décadas de 40 e 50 do século XX
"A inundação principiou cerca das 8 horas da manhã do dia 22 e
prolongou-se por cerca de 20 horas: “A pressão da torrente a certa altura
rebentou o dique e destruiu em enorme extensão, a rampa que serve de varadouro
aos barcos de pesca. Nalguns locais, como por exemplo no largo Duarte Pacheco,
as águas atingiram o nível de sete metros! Na avenida da Ribeira, a água
escavou o solo numa profundidade de 4 a 5 metros, pondo a descoberto o antigo
leito da ribeira, que àquela artéria deu o nome. E com a destruição da rampa do
varadouro, as águas do mar invadiram a vila e juntaram a sua fúria às
devastações da inundação. Paredes e alicerces de vários edifícios de construção
mais ligeira, minados pelo ímpeto das águas, estão agora a desmoronar-se,
ficando assim dezenas de famílias sem-abrigo. (…) Em suma Albufeira viveu horas
de indescritível horror, de uma angústia de que é impossível dar, sequer uma
pálida ideia”. (DN de 24/12/1948).
"Sete anos depois, e após uns dias mais chuvosos, as cheias em Albufeira
foram de novo notícia nos jornais: “Temporal no país – Em Albufeira a água da
cheia atingiu três metros de altura! Os prejuízos são grandes e uma mulher
desaparece na enxurrada” (DN de 16/01/1956).
"Em suma tudo se repetia! “No largo Eng. Duarte Pacheco, transformado
num pequeno lago, e onde a água subiu a três metros de altura (…).
Alfarrobeiras centenárias foram arrancadas cerce e vieram ribeira abaixo em
direção ao enorme esgoto ali recentemente mandado construir para evitar a
repetição das inundações de 1948, o qual apesar dos cálculos acabou por não ser
suficientemente grande para comportar o volume das águas. (…) Os prejuízos
sofridos pelas dezenas de estabelecimentos inundados e os verificados em
inúmeras residências são de alguns milhares de contos, pois houve vários
comerciantes com danos de centenas de contos só à sua parte”.
"Em termos de vidas humanas, faleceu, arrastada pelas águas, uma senhora
de 48 anos de idade. Outros habitantes foram salvos pelos bombeiros de todo o
Algarve que ali acorreram, após fortes apelos lançados pela Emissora Nacional,
e por populares, pois houve pessoas que “tiveram de agarrar-se às árvores como
aconteceu no jardim público e ali se conservaram, lutando para não serem
arrastadas pela água e por ela submersas, despendendo toda a sua energia e
esforço até que foram em seu auxílio”. (DN 16/01/1956)
Albufeira, nos anos 40 e 50 do século XX – a ocupação do vale e do
leito de cheia ainda apenas despontava
"Na realidade, a ribeira foi sendo canalizada em conduta ao longo dos
últimos 100 anos, e simultaneamente, foram sendo construídas mais
habitações/prédios nas “margens” e sobre o seu leito. Ainda em 2009 foi
intervencionado mais um troço, uma obra polémica entre o Parque de Campismo e o
Centro de Saúde.
"Sendo as cheias um fenómeno cíclico e normal no clima mediterrânico, e
a função dos cursos de água tão-somente transportá-la, seja ela muita ou pouca,
a ocorrência de cheias fluviais em Albufeira são, nas circunstâncias atuais,
uma verdadeira “bomba relógio”, de consequências imprevisíveis, que urge
corrigir.
"Quanto a responsáveis, somente o Homem o é, afinal ocupou, usou e
abusou de uma área que não era sua, mas da Ribeira de Albufeira".
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de
História Local .
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