“O casamento é difícil, mas podem ter a certeza de que o divórcio é
muitíssimo mais difícil"
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA, in Público de
31/10/2015 .
“A esquerda portuguesa prepara-se para um casamento, ou, se se quiser,
para uma união de facto. Terá os seus votos de noivado no momento em que
derrubar o Governo PSD-CDS e casará no dia em que um Governo do PS, com
participação ou apoio do BE e do PCP, for empossado pelo Presidente e vir o seu
programa aprovado pela Assembleia. O casamento poderá ter muitas fórmulas, ter
ou não “papel passado”, diferentes regimes de bens, ser um casamento de
necessidade com mais ou menos “amor”, juntarão ou não os “trapinhos”, mas, seja
qual for a fórmula, vão selar o seu destino.
“O casamento não se faz em momentos amáveis, após uma longa coabitação
ou namoro, mas faz-se em circunstâncias dramáticas, com muitos a prepararem-se
para deitar pedras em vez de confetis, e, queira-se ou não, contra muitos que
não o desejam, e que pensam que ele não vai resultar. Mesmo nos melhores amigos
dos esposos, há muito mais prudência e reserva do que confiança pura e simples.
É um casamento de alto risco e tem muita coisa que o pode levar a correr mal.
Mas há uma coisa que os esposos devem ter clara na sua cabeça, escrita em
letras de fogo, tatuada nas mãos e nos braços, para que estejam sempre a ver, é
que o divórcio será muito mais gravoso e penoso.
“Há várias coisas de que todos os que abraçam esta solução de um
Governo de esquerda devem saber, uma das quais é que nada contribuirá mais a
favor da legitimidade da solução encontrada do que se cumprir a legislatura
inteira. E, se há coisa que este Governo precisa é de um acrescento de
legitimidade política, visto que legitimidade formal, tem-na. E isso só vem de
governar razoavelmente, onde o óptimo é inimigo do bom, e se o fizer com
durabilidade, provocará um ponto sem retorno na vida política portuguesa. Até
lá, as fragilidades serão enormes e exigem de quem é parte desta solução que se
atenha ao essencial, sem hesitações.
“Se o esquecerem, garantem para muitas décadas que a direita governe
Portugal, não de forma amável e delicodoce, como esteve neste ano eleitoral (e
está agora a pensar que nos engana com Ministérios da Cultura), mas de forma
vingativa e agressiva. A direita que se vai levantar das cinzas de um Governo
de esquerda, caia ele pelo PS, pelo BE ou pelo PCP, falará a mesma linguagem
que hoje usam Nuno Melo, Paulo Rangel e os articulistas do Observador. E, por
trás dela, em formação regular e militar, estarão os anónimos comentadores,
genuínos e avençados, que pululam nas redes sociais, que espumam de fúria e
falam numa linguagem que torna o pior do PREC num conjunto de amabilidades.
Estes anos de crise do “ajustamento” alimentaram todos os monstros e deram-lhes
uma sustentação em fortes interesses, que eles sabem muito bem quanto é
perigoso o que se está a passar para a hegemonia assente no autoritarismo do
“não há alternativa”. De um lado sabe-se, espero que do outro também se saiba.
“Qualquer queda do Governo, em particular se os motivos dessa queda
estão na desunião, antes de ter tido tempo necessário para mostrar que é uma
melhor solução para as pessoas e para o país do que a continuidade dos
“mesmos”, penalizará fortemente toda a esquerda e não só PS, mas também o PCP e
o BE. O rasto de azedume e o atirar mútuo de culpas e recriminações irão durar
muitos anos e bloquearão a repetição da experiência.
“É por isso que é vital compreender que esta alternativa exige uma
enorme firmeza e capacidade de separar o essencial do secundário. Não se está a
jogar a feijões, isto é tudo muito a sério, demasiado a sério, para ser apenas
um devaneio ideológico e experimental de homenzinhos e mulherzinhas, mas é para
homens e mulheres a sério. Ou então mais vale irem para a casa medíocre do
Portugal submisso onde as hierarquias do poder e do dinheiro fazem o que
querem, para além da lei e da ética.
“Portanto, se entram numa solução deste tipo, têm que dar, neste caso
ao PS, alguma margem de manobra para fazer o equilibrismo financeiro que é
necessário para cumprir, sem qualquer zelo, o Tratado Orçamental, antes de
haver alguma negociação que o modere. Isto exige compreender que não é a mesma
coisa ser um Governo PS a fazê-lo nestas circunstâncias graves do que ser um
Governo da coligação PSD-CDS. Nem para o bem, nem para o mal. Quando os
salários e as pensões forem recuperados, como aliás a coligação também disse
que ia fazer, para quem vê o que recebe no fim do mês aumentar, faz toda a
diferença saber se isso vem de um Governo de esquerda, que lhe dirá que o faz
porque isso é a reposição de um direito que foi sonegado, e que é bom para
economia, ou da coligação PSD-CDS, que lhe dirá (se o fizer) que isso se deve à
justeza da sua política económica e quererá dessa eventual devolução justificar
outros cortes de salários ou pensões e, mais grave ainda, o corte de direitos
económicos, sociais e políticos, para prosseguir a mesma política de desigualdade
social. Insisto, faz toda a diferença e as pessoas sabem isso.
“PS, PCP e BE devem compreender que não ser a coligação PSD-CDS a
governar é um factor de tão grande importância que, mesmo que o PS tenha que
manter algumas políticas vindas do mesmo obscuro poço europeu, não é a mesma
coisa do que se fosse um Governo PSD-CDS a fazê-lo. A “farinha do mesmo saco”
era verdadeira até que o PS se distanciou daquela que era a sua expressão
política, o “arco da governação”, e abriu um espaço para mudar a farinha ou o
saco. Pode vir a fracassar, mas reconheça-se que está a tentar, correndo
imensos riscos. Isso exige que o BE e o PCP lhe dêem uma contrapartida que pode
ser mínima, mas que tem que ser sólida.
“Acresce este aspecto de que não se tem falado: se houver queda de um
Governo PS, porque um Presidente hostil ao entendimento à esquerda e próximo do
PSD-CDS quer convocar eleições, a aliança política que está a sustentar um
Governo de esquerda tem que ir junta, coligada ou pactuada, às eleições. Pode o
acordo ser apenas uma futura promessa de entendimento parlamentar, mas PCP, BE
e PS não têm muita margem de manobra para defrontarem cada um de per si uma
coligação sólida de direita. As vantagens de medirem os seus votos é ínfima,
comparada com o que vão perder se se tornarem responsáveis pela queda de uma
solução de alto risco, e, por isso, criadora e nova. O que estão a fazer,
implica consequências, senão ficam presos na frase de Saint-Just a propósito da
Revolução Francesa, “quem quer fazer a revolução pela metade está apenas a
cavar o seu próprio túmulo”. Não se trata de uma revolução, mas é uma mudança
tão relevante, que implica idênticos riscos.
“Por isso, tudo o que se está a fazer nestes dias pode ser uma
clamorosa derrota, ou uma mudança na relação das forças na política portuguesa.
Só essa mudança pode reequilibrar a enorme deslocação à direita que se deu nos
últimos anos no PSD e no CDS e a desertificação do centro. Qualquer tentativa,
mais que necessária, de reconstruir o centro político, o lugar das reformas e
da moderação, que era tradicionalmente o lugar que PSD e PS partilhavam, só
pode realizar-se após este reequilíbrio que o acesso de toda a esquerda ao
poder pode permitir. O risco aí é cristalizar uma bipolarização
esquerda-direita, frente contra frente, que impeça qualquer emergência de um
centro-direita, ou centro-esquerda. Mas isso é uma conversa para ter depois.
“Se houver uma recuperação da dinâmica da classe média, destruída e
radicalizada nestes últimos anos, um afastamento e uma mitigação do poder do
PPE, que é aquilo a que hoje chamamos “Europa” (e isso faz com que a
experiência portuguesa seja decisiva para as eleições espanholas ainda em
2015), um efeito de moderação, pela experiência de governação, de partidos como
o BE e o PCP, uma melhoria das condições de vida dos portugueses e um retomar
da sua dignidade, um repor dos equilíbrios no mundo laboral, uma diminuição da
radicalização inscrita na sociedade pelo aumento das desigualdades, o
extremismo da direita pode ficar acantonado e perder força. Vamos ver”.
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