Pesquisar neste blogue

sexta-feira, 4 de março de 2011

Notícias Antigas do Carnaval Português

País formado por acção dos cristãos peninsulares contra o domínio muçulmano , é de crer que o Entrudo estivesse calendarizado desde tempos remotos.

Uma das primeiras referências ao Entrudo data dos tempos de D.Afonso III (1),num documento de 1252 citado por José Pedro Machado(2).

Contudo,o Entrudo deverá ser entendido aqui,mais do ponto de vista do calendário religioso, do que em relação com a "anormalidade" dos festejos carnavalescos.

A primeira referência concreta às brincadeiras caracteristicas da época só são conhecidas a partir do século XVI:

“ (859) Indo ele por uma rua um dia de Entrudo , tirou-lhe um mancebo com uma laranja e depois pôs-se a olhar para outra parte, para lhe fingir que outro lhe tirara . E D.Simão , virando e entendendo nele o artifício de que usava, disse-lhe:
“-Gentil-homem, vós de tirardes,tirai (3), mas não dissimuleis, que eu sou o que dissimulo”(4).

Vários documentos do tempo de D.Sebastião referem a realização de brincadeiras no entrudo, nomeadamente “lançando farelos” ou “jugando as farelladas” , brincadeiras que muitas vezes acabavam em violência(5) .

A violência nos festejos de rua atingiria tal proporção que um alvará de Filipe III , proibia as "laranjadas e brigas de Entrudo" nas ruas de Lisboa. (6).

A Igeja introduziu em 1608 o "jubileu das quarenta horas", durante os dias de carnaval , com o objectivo de retirar ao Carnaval o seu significado.

"No jubileu das quarenta horas que ainda se celebrava no tempo de D.João V, enfeitava-se a Igreja de São Roque "(em Lisboa) "com a maior pompa,l evantava-se na capela-mor uma pirâmide doirada e por cima dessa pirâmide, onde se expunha o Sacramento, via-se um Arcanjo que, por determinado artifício, abria e fechava as asas, ocultando ou descobrindo a custódia. (...)"
"No Domingo Gordo, saíam em procissão, os meninos que frequentavam as escolas , acompanhados pelos mestres.Na segunda-feira, outra procissão saía do Colégio de Santo Antão, organizada pelos estudantes desse colégio, levando cada classe um andor.
"Por fim,na Terça-feira de Entrudo, saía outra procissão organizada pela Congregação de Nossa Senhora da Doutrina de São Roque , levando a imagem num andor de prata, indo o rei a uma das varas do pálio, seguido da corte.Tudo isto entretinha o povo, desviando-o dos folguedos carnavalescos."(7).

Sobre o carnaval português do séc.XVIII , conhecem-se vários testemunhos da autoria de diversos estrangeiros que, acompanhando a moda literária da época, descreveram coloridos , curiosos , por vezes preconceitoosos relatos sobre os usos e costumes do Portugal oitocentista.

Uma das mais completas descrições deve-se à pena de Joseph-Berthélemy-François Carrère:

"(...)O Carnaval em Lisboa é muito triste;esta quadra,usualmente destinada aos divertimentos mais ou menos variados, mais ou menos animados, é aqui das mais monótonas do ano . As famílias não se associam, as reuniões de sociedade não são nem mais numerosas nem mais elegres do que é uso;não se dá notícia nem de festins, nem de assembleias,nem de música, nem de bailes, e o único divertimento a que esta gente se dá é o de molhar os transeuntes ou de ser encharcado pelos que estão às janelas.
"Nos oito últimos dias do Carnaval, principalmente nos três finais , os dias gordos , as mulheres de todas as graduações sociais, e particularmente as senhoras, conservam-se às janelas despejando sobre os que passam cartuchos de pó de talco, que se pega à cara e aos fatos de tal maneira que é difícil limpá-los.Munidas de bexigas de goma-elástica, seringas, garrafas , potes, cântaros, caçarolas, caldeirões, despejam água, por vezes copiosamente, sobre quem vai passando na rua - ao que os homens se associam algumas vezes .E já se poderá dar por feliz quem ficar apenas molhado, porque há quem apanhe na cabeça não só com a água, mas também com a vasilha que a contém.Houve alguém que viu uma fidalga, dama da corte, depejar a água por meio de uma grande bomba, cujo jacto era suficiente forte para derrubar um homem.
"Os portugueses, habituados a esta galanteria, resignam-se a nestes dias só vestirem fatos velhos ou casacões, abrigando-se debaixo de grandes chapéus-de-chuva .Os estrangeiros, menos conformistas, ripostam muitas vezes com pedradas. Assim, todos os anos por esta época há vidros partidos, discussões,brigas, pancadaria , quando não cenas de sangue, e até mortes, quando calha.
" As rondas ,ou patrulhas, constituídas por burgueses, percorrem as ruas, mas não lhes incumbe impedir este divertimento; pelo contrário, o que lhes compete é proteger os despejadores de água e impedir que sejam insultados.De resto, as próprias rondas não conseguem chegar ao termo da sua volta sem terem sido frequentemente regadas"(8) .

Um outro viajante famoso,Carl Israel Ruders, não só confirma as afirmações anteriores,como
acrescentava novas informações sobre o carnaval urbano português setecentista:

"À noite soltavam-se foguetes .Para evitar desordens, as ruas eram patrulhadas. A populaça amarrava os cães prendendo-lhes à cauda caçarolas velhas, panelas funis e outros objectos semelhantes, largando-os em seguida.O barulho aterrorizava os pobres animais, fazendo-os correr pelas ruas da cidade."(9).

Em 1817, o Intendente Pina Manique publicava editais proibindo os folguedos de carnaval.Só com o advento do liberalismo o carnaval lisboeta irá ganhar alguma importância .

Com a definitiva vitória dos liberais a caricatura política passa a estar presente nos festejos, tendo aparecido então a máscara mais famosa de Lisboa, o “xéxé", que caricaturava os miguelistas.

Eis uma descrição do carnaval burguês na Lisboa oitocentista :

"Nas salas que davam para as janelas, as criadas em azáfama enrolavam os tapetes e as esteiras, preparando-se os donos da casa para a luta que começava, em geral, por volta das duas horas da tarde.
"E vinham os cestos de ovos e de farinha, os cartuchos de pós de goma, os sacos de alqueire cheios de tremoços, as laranjas, as batatas, a luva com areia que tinha a missão de esborrachar o chapéu de quem passava e até fogareiros,tachos e alguidares partidos eram empregados na refrega.A assistência dos foliões variava.No Baile Nacional, à Guia,dançavam as costureiras e na Floresta Egípcia bailava a caixeirada e divertia-se a burguesia.
"Os divertimentos eram diabólicos ,como passamos a narrar: entrava-se em casa da vizinhança com as mãos cheias de cal e empoava-se o cabelo de toda a gente, estragando os fatos sem piedade.
"Besuntavam-se as escadas de sabão e os trambulhões eram certos. (...)
"Quem quisese apanhar uma moeda de prata do chão arriscava-se a grande vexame, porque a moeda estava presa a um cordel que se puxava no momento preciso.
"Das janelas faziam-se novas brutalidades.
"Despejavam baldes de água sobre quem passava e atiravam sobre os transeuntes tudo o que encontravam no caixote do lixo:folhas de couve,cascas de batata, ossos, espinhas,etc.(...)"(10).

Em oposição ao tradicional e desordeiro carnaval de rua começam a ganhar importância os mundanos bailes de carnaval promovidos pelas novas classes dirigentes.Destinguem-se então os burgueses"Bailes Públicos",dos Teatros S.Carlos (onde em 1809 se havia realizado o primeiro baile de máscaras autorizado),D.Maria e Trindade e no Casino Lisbonense e Circo Price,dos aristocráticos"Bailes Privados" organizados pela nova nobreza liberal.Destes,os mais famosos foram os organizados pelos Condes de Penafiel (no seu palácio da rua de S.Mamede ao Caldas, atingindo o seu auge em1865),Condes da Anadia,Marquês deValada,Marqueses de Viana (no seu palácio do Largo do Rato,que 1855 contou com a presença do rei D.Pedro V)ou pelo Conde deFarrobo(no seu palácio das Laranjeiras,sendo famoso o de 1843,oferecido a D.Maria II)(11).

Para o final do século ensaiam-se novas formas de festejar o carnaval de rua,com o aparecimento das"Batalhas de Flôres":à imitação do carnaval de Nice,ensaiou-se em Lisbo,no carnaval de 1887,uma batalha de flôres.No ano seguinte era organizada a perceito, em recinto fechado e pago(”na rua central da Avenida”).As receitas revertiam a favor da fundação de um hospital para tisicos e para o cofre de beneficencia da câmara municipal de Lisboa.O desfile teve lugar na tarde de 2ª feira de Carnaval.Tomaram parte no cortejo carruagens e carros decorados com flôres da época e arremeçavam-se projecteis feitos com vários tipos de flôres.Participou toda a alta sociedade de Lisboa.Um dos carros lançava sobre a assistência pequenos saquinhos de setim com bombons.(12).

As Batalhas de Flôres não eram,exclusivas da quadra carnavalesca."Batalhas de flôres" relizavam-se também por ocasião da quinta- feira da Ascensão, no início da Primavera .Pelo menos assim aconteceu em Lisboa em 1894(13).

Data do final do século XIX esta outra descrição do carnaval lisboeta :

"(...) é mania na nossa capital as mascaradas de chéchés e gallegos com castanholas. O carnaval em Lisboa é brutal, grosseiro, impudico .
"Chovem os tremoços, abatem-secochichos , qualquer cidadão leva um remoque ou é empulhado por qualquer mascara com um halito vinoso, repellente.Pelas ruas,trens repletos de marafonas semi-nuas,vomitando grosserias, fazem côro com os amantes, que escondem na facha a tradicional navalha.É um esborrachar de bisnagas inaudito, uma vozearia enjoativa de falsete, ou rouca como a buzina do Cabo Carvoeiro. Depois ... nos bailes dos theatros, rapazes inconscientes, suam n'um redopio doido as quadrilhas estafadas, ceiam nos gabinetes com firma de má nota e corrupta; esvasiam-se as algibeiras ... e o hospital espera-vos ... a tuberculose ameaça-vos ! "(14).

Em 1903 o carnaval de Lisboa tinha lugar durante 3 dias: domingo, 2ªfeira e 3º feira. Incluia a chegada do carnaval à estação do Cais do Sodré,bailes e desfiles de mascarados e de carros alegóricos, sendo atribuidos prémios aos melhores enfeites e às melhores máscaras.Havia também um rei do carnaval.(15).

Curiosament,o carnaval urbano de Lisboa, que serviu de modelo a outros carnavais,foi morrendo progressivamente ao longo do século XX,enquanto à sua volta íam crescendo e afirmando-se as festas de Carnaval,como as de Loures,Torres Vedras e Samora Correia a norte e Montijo,Sesimbra eSines a sul. Nos ultimos anos importantes festejos carnavalescos vão-se realizando, também,no Funchal,em Ovar,na Mealhada e em Loulé, este ultimo reivindicando -se como o mais antigo dos carnavais (tem a sua origem no ano de 1825).

Notas:

(1)regente desde 1245,reinou de 1248 a 1279
(2)José Pedro Machado ,na sua obra "Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa" (2º vol.,ed.Livros Horizonte, 6ª edição de 1990 (1ª ed.1952),pág.413
(3)“ TIROU-LHE ; arremessou-lhe . DE TIRARDES , etc. : "quando a atirardes , podeis atirar ; mas é escusado fingir que o não fazeis , porque quem tem de fingir (que não foi atingido) sou eu"
(4)Fonte : Ditos Portugueses Dignos de Memória , autor anónimo , história íntima do século XVI (tempo de D.João III) anotada e comentada por José Hermano Saraiva , Publicação Europa-América ).
(5) (notícias referidas por Pedro de Azevedo no estudo “Costumes e Festas Populares dos Séculos XV e XVI” in REVISTA LUSITANA, Lisboa 1912 pp. 118-120).
(6)(Lourenço Rodrigues "Boémia de Outros Tempos" in ALMANAQUE , Lisboa Maio6)(6)(Lourenço Rodrigues "Boémia de Outros Tempos" in ALMANAQUE , Lisboa Maio de 1960 , pp.93 a 97)
(7)Lourenço Rodrigues, ob.cit. , p.97).
(8)(PP.48-49,J.B.F.Carrère -PANORAMA DE LISBOA NO ANO DE 1796 -ed.B:N:L,1989)..
(9)SANTOS , Piedade Braga ; RODRIGUES , Teresa S. ; NOGUEIRA, Margarida Sá , in LISBOA SETECENTISTA-vista por estrangeiros ed. Livros Horizonte, lx , 1987.p.65,citando Carl Ruders).
(10)(Lourenço Rodrigues , ob.cit. , p.96).
(11)(fonte Lourenço Rodrigues , ob.cit.).
(12)referência em “O Occidente”, p.46, nº330, 21 de fevereiro de 1888).
(13)”O Occidente”, p.107, nº1022 de 20/05/1907)
(14)(14). ( Martinho Torres , in "O Neophyto" , nº 4 , T.Vedras , 29 de Fevereiro de 1892). .
(15). (”O Occidente”, p.42, nº870, 28/02/1903).

Sem comentários: