“Mesmo que se aceite que a divida pública é aquela que nos
dizem e que toda ela é legal e legítima -o que está longe de estar demonstrado-,
o seu pagamento representa apenas uma obrigação entre as muitas obrigações do
Estado. A escolha que o actual Governo faz, de sobrepor o pagamento da divida a
todas as suas outras obrigações - garantir mínimos de protecção social a
pessoas em situação de extrema fragilidade, conservar para as gerações futuras
o património publico de que é fiel depositário, respeitar a Constituição que
jurou defender - é uma escolha ideológica, que sobrepõe os desejos de uns
poucos aos direitos da maioria.
“Esta escolha, plasmada no Orçamento ontem apresentado pelo
Governo, pode ser criticada em termos económicos, porque está a destruir a
estrutura produtiva do país e porque desperdiça competências e talentos em cuja
formação a comunidade investiu fortemente na última geração. Pode ser criticada
em termos políticos, porque está a destruir a confiança na democracia. Pode ser
criticada do ponto de vista da sua legitimidade democrática, pois esta política
nunca foi sufragada. Pode ser criticada em termos jurídicos, porque esta
política faz tábua rasa de leis fundamentais da República. Mas, para além de
todas as outras críticas possíveis, e acima de tudo, ela é moralmente
inadmissível.
“Ela reflecte uma escolha onde o Governo reconhece os
direitos dos mais fortes, mas ignora os direitos dos mais fracos, onde o
Governo prefere alimentar os privilégios dos poderosos, em vez de defender os
direitos dos desmunidos.
“ Apresentar esta política como não tendo alternativas é
falacioso. Ela não tem alternativas, quando se admite como mandamento divino os
lucros dos credores e como valor negligenciável as vidas das pessoas. As
alternativas têm aparecido às dezenas e recolhem cada dia mais adeptos. E
pretender apresentar, esta política como sendo motivada por um justo desejo de honrar
um compromisso é algo que mina a própria ideia de moral. Não é apenas a
economia ou a democracia que está a receber um golpe mortal, é a própria ideia
do bem que é violada e arrastada pela rua em farrapos.
“Não há nenhuma filosofia moral onde o pagamento de dívidas
se sobreponha a todos os outros deveres. Seria admissível que, em nome da
defesa dó nome da família, um pai deixasse de alimentar os filhos para pagar a
dívida de jogo do tio aldrabão?.
“A historia está cheia de massacres cometidos em nome da
pureza e do progresso. As atrocidades foram sempre defendidas como
indispensáveis para obter o progresso desejado. Não havia alternativa. Era
preciso levá-las a cabo custasse o que custasse. Por muito sofrimento que implicassem.
Reconhecem as palavras? Esta filosofia, onde os fins justificam os meios,
encheu a história de cadáveres e mutilados. Mas é a filosofia que o Governo defende. Custe o que
custar. E se custar o sofrimento de muita gente? O fim justifica o sofrimento.
É uma operação higiénica. Temos de cortar as gorduras, acabar com as pieguices,
pôr fim aos parasitas, limpar a sociedade. Reconhecem as palavras? São as
palavras que os deputados da maioria vão aprovar. São as palavras que
justificam o massacre que se vai seguir(…)”.
Excerto da crónica de José Vitor Malheiros, hoje editada no
jornal Público
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