Na sua edição online de ontem , a revista “Sábado”publica alguns excertos da biografia não autorizada de Sócrates, da autoria do jornalista Rui Costa Pinto.
Como título dessa notícia, a revista Sábado escolheu o feliz título de “O Livro Negro de José Sócrates”.
Quando se prevê que, se ganhar estas eleições, o fará sem maioria absoluta, é importante perceber a forma como o actual Primeiro Ministro lida com os adversários e as adversidades, quanto a mim o aspecto mais significativo desta obra, já que, em relação os “casos” em que se envolveu, o livro não adiantará muitas novidades.
Como se revela nos excertos seguintes, José Sócrates não é homem para consensos ou negociações.
“O LIVRO NEGRO DE JOSÉ SÓCRATES
José Sócrates - O homem e o Líder é o título da biografia não autorizada do primeiro-ministro, escrita pelo jornalista Rui Costa Pinto.
O autor da obra, que denuncia vários episódios de alegadas pressões sobre a comunicação social, diz ao jornal 24horas que a distribuidora tem medo de represálias do Partido Socialista. A Dinalivro rejeitou as acusações.
Capítulo I
1. Última conversa
“– «E tu acreditas?».
Foi a pergunta que José Sócrates me fez, insistentemente, durante uma longa e tardia conversa que se foi revelando tensa, muito tensa.
(...)
O assunto era sério, grave e ingrato, mas de inegável interesse público. Em causa, estavam indícios de corrupção e suspeitas do pagamento de ‘luvas’ para influenciar um concurso público. Pela primeira vez, ouvi falar na “Cova da Beira”, que já fez correr rios de tinta. A reacção ao telefone, que não podia ser um ‘off’, surpreendeu pelos termos destemperados:
– «Isso é uma tentativa de assassinato político com base numa denúncia anónima»! E tu acreditas?», repetiu aos gritos, completamente descontrolado.
Nunca tinha falado com um membro do governo tão agitado e exaltado. Tentei manter a calma.
(…)
Com recurso a toda a diplomacia e sentido de responsabilidade, retorqui que a informação que me tinha sido passada resultara de um pré-inquérito da PJ e não exclusivamente dos termos de uma denúncia anónima.
(…)
José Sócrates ‘cega’ quando é confrontado com algo que não lhe agrada, do assunto mais grave ao mais trivial. Qualquer político, certamente mais experiente, teria desvalorizado a informação, pois estava em causa um documento preliminar que, muitas vezes, nem sequer tem consequências em termos criminais. Optou por outro caminho: a ameaça e o confronto com o ‘mensageiro’.
(…)
Nem o apelo à razão enfraqueceu a ira do então ministro, que, aliás, ainda teve o atrevimento de manifestar surpresa e desagrado pelo facto de eu não o ter alertado da investigação jornalística, insinuando que eu traíra a «nossa amizade». A nossa amizade? Fiquei estupefacto! Apesar de não ter sido eu a fazer a investigação, o que repeti, até à exaustão, o certo é que tal reivindicação me pareceu abusiva. É tolerável confundir um ‘bufo’ com um jornalista? Ou baralhar a amizade com relações cordiais, determinadas por razões de ordem profissional?
(…)
O político que brilhara ao assumir causas tão urgentes como a “defesa do consumidor” e a “descriminalização das drogas”, entre outras, afinal era mais prosaico e vulgar do que eu alguma vez imaginara.
(…)
José Sócrates nunca deixou em mãos alheias a iniciativa de evitar a publicação de uma notícia. Os telefonemas, as ameaças e as pressões multiplicaram-se até altas horas da madrugada seguinte, depois de lhe ter telefonado. Há mais de dez anos, já era assim.
(...)
O resultado foi surpreendente: a notícia foi adiada, apesar de ter chegado a estar planeada e paginada para mais uma manchete. Os protestos que eu e o autor da investigação manifestámos não foram suficientes para inverter aquela péssima decisão editorial. Tinha ganho, momentaneamente, adiando a publicação da notícia. Foi assim que descobri um dos lados negros do “homem” e do “líder”: a capacidade de influenciar, quiçá intimidar as chefias editoriais.
(…)
Após a publicação do artigo, as reacções não se fizeram esperar: os meus colegas fartaram-se de me gozar e o próprio fez questão de me convidar para almoçar nas ‘Belgas’, mesmo ao lado da Assembleia da República, então um dos restaurantes da moda. José Sócrates é assim. Gosta de ‘marcar’ quem julga poder ser um futuro aliado... Mal sabia eu, naquele momento, que deixaríamos de ter qualquer contacto profissional ou social.
(…)
2. Carta anónima
Tal como uma determinada classe política, José Sócrates sempre cultivou uma atitude ambivalente em relação à comunicação social. Por um lado, alimenta relações de proximidade com alguns jornalistas; por outro, nunca perde uma oportunidade para os ‘diabolizar’.
(…)
Ao longo da minha carreira jornalística, tive a oportunidade de sentir, por diversas vezes, que alguns políticos, – e não todos –, olham os jornalistas como meras correias de transmissão dos seus grandes pensamentos e feitos. É o caso, indiscutivelmente, de José Sócrates. Com uma auto-estima ímpar e um ego do tamanho do universo, o político «mais promissor do Partido Socialista», como cheguei a classificá-lo, baba-se com as prosas favoráveis e enfurece-se com as notícias e as opiniões negativas. Qualquer jornalista pode comprovar que tem o hábito de desancar os autores de trabalhos jornalísticos que lhe são desfavoráveis, ao telefone ou ao vivo.
(…)
Sempre defendi relações institucionais e cordiais com o poder, mas sem os jornalistas se esquecerem de uma das suas mais importantes missões: escrutinar o poder. A minha opinião sobre alguns políticos é tão má como a de alguns deles em relação aos jornalistas. Um dia, em Nova Iorque, disse-o a José Sócrates. Durante essa estadia, pude começar a confirmar uma das suas obsessões mais acentuadas, que, aliás, ainda o continuam a distinguir: não se incomoda com o que pensam dele, em privado, apenas se enfurece com o que dizem dele, em público. É uma espécie de esquizofrenia política que sofreu, nos anos subsequentes, um agravamento acentuado, como ficou bem patente no “Caso Charrua”.
(…)
Os amuos da generalidade dos políticos com os jornalistas são comuns e frequentes. José Sócrates é diferente. Tem a fama de implacável e de vingativo – um político que não esquece!
Depois da nossa última conversa telefónica, a propósito da investigação da PJ sobre o caso da “Cova da Beira”, preparei-me, imediatamente, para uma qualquer diatribe da sua parte ou de um qualquer dos seus apaniguados. O que nunca imaginei, nem no maior dos pesadelos, foi passar por situações que vieram a acontecer posteriormente, que a serem coinci¬dências são absolutamente extraordinárias.
No dia 5 de Março de 1999, sexta-feira, fui avisado, telefonicamente, que tinha sido alvo de uma carta anónima. Fiquei estupefacto, mas levei a ‘coisa’ a brincar. Horas mais tarde, quando cheguei ao ‘Indy’, ao princípio da tarde, depois de mais um fecho de edição esgotante, fui confrontado com o teor da carta, com data de 4 de Fevereiro de 1999, ou seja, sete dias depois da data da minha última conversa com José Sócrates.
Uma tal Maria Ludovina Correia, que ‘assinara’ o remetente, com morada identificada, em Lisboa, entre outras calúnias, acusava-me de «cobrar 70 contos [350 euros] por cada ‘encomenda’ em “O Independente”. É seu actual e habitual cliente, entre outros..., o João Soares». Enfim, aleivosias...
De imediato, contactei a ‘autora’ da carta. Percebi, rapidamente, que alguém tinha usurpado o seu nome, pois tratava-se de uma septuagenária, analfabeta, que ficou muito aflita e surpreendida com o meu telefonema. Obviamente, compreendi o sentido mentiroso, vil e persecutório daquela carta anónima, mas nunca julguei que a pusilanimidade fosse ao ponto de incomodar uma senhora de idade. Ainda assim, no mesmo dia, perguntei a uma empresa referenciada na carta, por escrito, se alguma vez lhe tinha prestado ou cobrado algum serviço. Fiz igual pedido a João Soares, então presidente da Câmara de Lisboa. A empresa respondeu, também por escrito, cinco dias depois, em 10 de Março de 1999, negando totalmente a infâmia. Por sua vez, o autarca nunca se deu ao trabalho de o fazer, por escrito, o que combina com o perfil descuidado.
O que mais me espantou foi o envio da carta para um autêntico mailing de Estado: Alta Autoridade para a Comunicação Social, Ministério da Administração Interna, Presidência da República, Serviço de Informações e Segurança (SIS), Polícia de Segurança Pública (PSP), Polícia Judiciária (PJ), Sindicato dos Jornalistas, Redacções (“Capital”, “Correio da Manhã”, “Diário de Notícias”, “Expresso”, “Jornal de Notícias”, “Público”, “RTP”, “SIC”, “Tal e Qual”, “TVI” e “Visão”), Gabinetes de membros do Governo, Direcção do Partido Socialista (PS), Partido Social Democrata (PSD), Centro Democrático Social (CDS/PP) e Partido Comunista português (PCP). Uma lista que, seguramente, não está à mão de um qualquer cidadão.
(…)
Nem eu, nem Pedro Guerra, o autor que levara a cabo da investigação jornalística do “Caso da Cova da Beira”.
A notícia que assinámos não foi publicada no dia 29 de Janeiro de 1999, mas foi-o mais tarde. E, para não deixar margem para dúvidas, só depois de concluída e formalizada a averiguação preventiva número 50/97. É certo que a ‘cacha’ saiu estampada longe da capa, numa página interior, no dia 14 de Maio de 1999, cinco meses depois da primeira tentativa. Mas foi publicada. A melhor resposta que um jornalista pode dar a uma tentativa de intimidação é trabalhar, trabalhar sempre mais. Eis uma atitude que também não lhe agrada, pois entende-a como uma afronta pessoal e não como uma simples questão de trabalho e de dignidade profissional. Mais do que um «animal feroz», como se intitulou, reage como um animal acossado. Parece estar em permanente estado de alerta. Por vezes, a crispação é tal que até dá a ideia que está sempre à espera que um polícia lhe venha a bater à porta.
Hoje, ainda não sei quem inventou e enviou a carta anónima. Até posso desconfiar, mas não o posso provar. Assim, e para estabelecer um padrão de coincidências, limito-me a descrever duas que me levaram a ter suspeitas, puramente lógicas, em que o papel principal foi desempenhado por Maria Rui Fonseca, então minha amiga pessoal e assessora de José Sócrates.
A primeira coincidência ocorreu a seguir ao incidente telefónico com então ministro adjunto. Fui convidado para jantar no “Alcântara Café”. Considerei o gesto normal, tanto mais que os contactos com a assessora eram regulares. A conversa decorreu calma e agradavelmente, apesar do tema de fundo versar a própria notícia sobre a “Cova da Beira”, cuja publicação o ‘patrão’ tinha evitado no último minuto.
Em nome da nossa boa relação pessoal e institucional, limitei-me reafirmar que não tivera conhecimento antecipado da investigação, bem como não podia recusar contactar o visado, após ter tomado conhecimento da documentação sobre o processo em causa.
O que me espantou, e me colocou de sobreaviso, foi o facto da então assessora ter deixado cair uma frase enigmática: «Quando fores alvo de uma carta anónima é que vais sentir como elas doem». Fiquei atónito, mas desvalorizei o assunto, pois nunca me passou pela cabeça que tal suposição se viesse a revelar tão certeira.
(…)
Fiquei impressionado, mas não paralisado. Depois de saber que o gabinete do ministro também tinha sido ‘brindado’ com a carta – e como tinha, e ainda tenho, boas relações com o seu então chefe de gabinete, Rui Nobre Gonçalves –, dirigi-me a São Bento para a recuperar. Não me esqueço das palavras atabalhoadas quando o informei que a ia buscar. E fui. Ainda a tenho, hoje, sobretudo para me recordar que há gente capaz de tudo e que os jornalistas estão expostos a todo o género de pulhices. Tal e qual como os políticos. (…)”
(in Sábado, edição on-line, 22 de Setembro de 2009)
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