O MEU 25 DE ABRIL
Quando fui acordado pelo meu pai, às 8.30 da manhã daquele dia 25 de Abril, estava longe de imaginar o impacto que esse acontecimento acabou por ter na vida da minha geração, então a sair da adolescência e a entrar na idade adulta.
Para um então jovem idealista, com dezoito anos acabados de fazer, pareciam-se abrir todas as portas para o possível e o impossível.
Eu era então um privilegiado, pois estava minimamente alertado para os problemas políticos, sociais e culturais com que o país se debatia, por ser filho de um ex-preso político, homem da oposição e activista cultural atento, que em casa falava de muita coisa que nos despertava, a mim e ao meu irmão, para o mundo que nos rodeava, ao contrário do que acontecia com a maior parte dos meus colegas de escola, cuja formação e informação eram limitadas por uma educação escolar anti-democrática e uma férrea censura.
Poucos meses antes do 25 de Abril tinha iniciado a minha actividade cívica, quer no campo da política quer no campo da cultura.
Tinha assistido aos primeiros comícios políticos em 1973, por ocasião da campanha eleitoral para as eleições parlamentares desse ano, e pude assistir à falta de liberdade que então existia, com os comícios da oposição interrompidos pelas “autoridades”, ou cercados pela polícia de choque.
Envolvi-me então em reuniões políticas clandestinas, ligadas ao MDP-CDE, muitas delas em casa do Francisco Manuel Fernandes, tendo sido escolhido, juntamente com o Hélio e o Porfírio, para fazer parte da direcção de uma comissão clandestina dos alunos do Liceu de T. Vedras. Pela primeira vez viveu-se nessa escola alguma agitação política, com distribuição clandestina de comunicados, pinturas nas paredes, interrogatórios a alunos por parte da direcção da escola e a presença habitual da PIDE (então chamada de DGS).
Por essa ocasião fui convidado a entrar para o PCP, convite que não aceitei por me afirmar adepto da social-democracia e considerar que aquele partido ainda não se tinha libertado do autoritarismo stalinista, mas aceitei colaborar na distribuição da sua propaganda política, já que era o único partido a fazer frente, de forma organizada, à ditadura, e por considerar que apoiaria todos os partidos e movimentos que se organizassem para lutar contra o regime. Esta posição que então tomei pode ser confirmada por uma das pessoas acima referidas.
Em termos culturais, dirigia então um “fanzine” de banda desenhada, o “Impulso”, dos primeiros editados em Portugal, citado nas principais histórias da B. D. portuguesa, de cuja redacção faziam parte, de entre os que eu me lembro, o Antero Valério, o Joaquim Esteves, o Carlos Ferreira, o Calisto, o José Eduardo (“Zico”), o meu irmão Mário Luís, o João Nogueira (“Janeca”) e o Mário Rui Hipólito.
Em Janeiro de 1974 fui eleito para a direcção do Cine-Clube, dirigido pelo Emílio Gomes e da qual faziam parte o José Travanca, o Aurelindo Ceia, o Celestino Pereira, o José Alfredo Saraiva, o António da Palma e a Ana Damião, presidindo à Assembleia Geral o António José Bernardes, secundado pela Cecília Travanca e por Luís Pio, pertencendo ao Conselho Fiscal, o Joaquim Rodrigues, o Mário Rui Hipólito e o José Augusto Gomes.
Se recordo esses nomes, faço-o porque o seu envolvimento nesses projectos acarretava então alguns riscos pessoais, tanto mais que se vivia um período de forte inovação e renovação cultural, visto com desconfiança pelo poder ditatorial de então, a braços com uma grave crise de sobrevivência. Nomeadamente a direcção do cine-clube apresentava-se com um programa de actividades que, a não ter havido 25 de Abril, se confrontaria, mais tarde ou mais cedo, com as autoridades, repetindo-se provavelmente uma situação idêntica àquela que essa associação viveu nos anos 60, com o afastamento compulsivo e prisão de alguns dos seus dirigentes associativos.
Sobre o dia 25 de Abril, tendo ficado dele uma memória pessoal bem viva, possuo um valioso auxiliar de memória num rascunho que esbocei na altura a lápis, onde registei o que fiz entre os dias 25 e 30 de Abril de 1974.
Acordado pelo meu pai de manhã, a alegria que se viveu então em família e entre amigos foi indescritível, eivada contudo por algum temor em relação ao desenrolar dos acontecimentos, não se sabendo muito bem quem estava por detrás do golpe militar. Havia o receio que os “ultras” pudessem estar por detrás de tudo.
Esse dia vivi-o entre a minha casa, onde ouvi e gravei alguns comunicados emitidos na rádio, o liceu, que encerrou à tarde, e a casa do Mário Rui Hipólito, aqui na companhia do Jacinto Leandro, que foi, anos depois, presidente da Câmara de T. Vedras, eleito pelo PS.
Na noite desse dia realizou-se um improvisado comício de esclarecimento do MDP-CDE no Largo da Graça.
A grande manifestação de alegria e de apoio aos militares teve lugar na tarde do dia seguinte, com uma grande manifestação que percorreu as ruas de Torres Vedras, tendo eu nessa noite, indo para Peniche assistir à libertação dos presos políticos, que só se concretizou na madrugada do dia 27.
Na tarde deste dia, três dos presos libertados foram recebidos em festa no Largo da Graça. Nesse mesmo dia uma força do MFA veio a Torres Vedras para ocupar as instalações da Legião Portuguesa, no edifício onde veio a funcionar a Creche do Povo (ao lado do Teatro-Cine), prender o “chefe” local da PIDE e desarmar a GNR.
A 28 de Abril realizou-se na sede do CAC uma reunião aberta à população onde foi escolhida uma comissão para dirigir provisoriamente os destinos do município.
A 29 de Abril eu e os meus colegas do “Impulso” redigimos um manifesto intitulado “Por uma nova Banda Desenhada” enviado a toda a imprensa nacional, que o publicou.
Com a data de 26 de Abril foi cedida ao Cine-clube, pela Fundação Gulbenkian, uma máquina de projectar de 16 mm que permitiu a esta associação conhecer então uma intensa actividade nas zonas rurais do concelho.
Politicamente, aderi em Junho ao Partido Socialista, tendo sido fundador local da Juventude desse partido, sendo também eleito para a primeira associação de estudantes do Liceu.
Cedo me desiludi com a vida partidária, tendo passado a apoiar esporadicamente candidaturas e projectos políticos, sem nunca me comprometer como militante, acreditando mais na acção fora dos partidos e no direito à diferença.
Foi nesse espírito que me envolvi nas candidaturas presidenciais de Otelo Saraiva de Carvalho, Lurdes Pintasilgo e Jorge Sampaio, que me candidatei em eleições municipais pelos GDUP’s e pela CDU, ou que votei recentemente em Manuel Alegre, ou voto, desde que surgiu, no Bloco de Esquerda, nas eleições nacionais e europeias, e na CDU, nas autárquicas.
Mais do que na vida política, tenho-me envolvido com mais entusiasmo na vida cultural, recordando aqui projectos como o “Área”, que esteve na origem da Cooperativa de Comunicação e Cultura, as rádios locais, tendo participado nalgumas das primeiras emissões piratas, na Rádio Estremadura e na Rádio Oeste, e fazendo parte de algumas associações culturais, como a Associação de Defesa do Património.
Participei activamente em vários projectos jornalisticos, tendo começado pelo “Oeste Democrático”, continuado no já mencionado “Área”, e acabando no “Zona Oeste”. Tenho além disso colaborado activamente em muitos jornais e revistas, com destaque para o “Badaladas” e “Frente Oeste”.
Os meus interesses actuais estão mais virados para a investigação histórica, nomeadamente sobre o concelho de Torres Vedras, sendo autor e co-autor de alguns livros publicados sobre a sua história.
Sem a liberdade trazida pelo 25 de Abril estou convencido que muitos daqueles projectos não teriam sido possíveis, e toda a vida das pessoas da minha geração teria sido bem mais difícil, pois, a prolongar-se o regime por muito mais tempo, não nos teríamos escapado ao envolvimento na guerra colonial, com as consequências conhecidas.
Não deixa contudo de ser paradoxal que, quando se comemora o 35º aniversário dessa data, Portugal esteja envolvido numa grave crise internacional, e seja governado pelo mais retrógrados, autoritário e anti-social governo do pós-25 de Abril.
Para se completar o espírito do 25 de Abril falta ainda caminhar muito na via da educação, da cultura, da defesa do ambiente e do aprofundamento da participação cívica da população, que não se pode esgotar nos partidos políticos e no dia das eleições.
Pesem todos os erros, abusos e dificuldades, o 25 de Abril valeu a pena, e ficará na minha memória como um grande dia da minha vida, só comparável com o dia do nascimento da minha filha.
Quando fui acordado pelo meu pai, às 8.30 da manhã daquele dia 25 de Abril, estava longe de imaginar o impacto que esse acontecimento acabou por ter na vida da minha geração, então a sair da adolescência e a entrar na idade adulta.
Para um então jovem idealista, com dezoito anos acabados de fazer, pareciam-se abrir todas as portas para o possível e o impossível.
Eu era então um privilegiado, pois estava minimamente alertado para os problemas políticos, sociais e culturais com que o país se debatia, por ser filho de um ex-preso político, homem da oposição e activista cultural atento, que em casa falava de muita coisa que nos despertava, a mim e ao meu irmão, para o mundo que nos rodeava, ao contrário do que acontecia com a maior parte dos meus colegas de escola, cuja formação e informação eram limitadas por uma educação escolar anti-democrática e uma férrea censura.
Poucos meses antes do 25 de Abril tinha iniciado a minha actividade cívica, quer no campo da política quer no campo da cultura.
Tinha assistido aos primeiros comícios políticos em 1973, por ocasião da campanha eleitoral para as eleições parlamentares desse ano, e pude assistir à falta de liberdade que então existia, com os comícios da oposição interrompidos pelas “autoridades”, ou cercados pela polícia de choque.
Envolvi-me então em reuniões políticas clandestinas, ligadas ao MDP-CDE, muitas delas em casa do Francisco Manuel Fernandes, tendo sido escolhido, juntamente com o Hélio e o Porfírio, para fazer parte da direcção de uma comissão clandestina dos alunos do Liceu de T. Vedras. Pela primeira vez viveu-se nessa escola alguma agitação política, com distribuição clandestina de comunicados, pinturas nas paredes, interrogatórios a alunos por parte da direcção da escola e a presença habitual da PIDE (então chamada de DGS).
Por essa ocasião fui convidado a entrar para o PCP, convite que não aceitei por me afirmar adepto da social-democracia e considerar que aquele partido ainda não se tinha libertado do autoritarismo stalinista, mas aceitei colaborar na distribuição da sua propaganda política, já que era o único partido a fazer frente, de forma organizada, à ditadura, e por considerar que apoiaria todos os partidos e movimentos que se organizassem para lutar contra o regime. Esta posição que então tomei pode ser confirmada por uma das pessoas acima referidas.
Em termos culturais, dirigia então um “fanzine” de banda desenhada, o “Impulso”, dos primeiros editados em Portugal, citado nas principais histórias da B. D. portuguesa, de cuja redacção faziam parte, de entre os que eu me lembro, o Antero Valério, o Joaquim Esteves, o Carlos Ferreira, o Calisto, o José Eduardo (“Zico”), o meu irmão Mário Luís, o João Nogueira (“Janeca”) e o Mário Rui Hipólito.
Em Janeiro de 1974 fui eleito para a direcção do Cine-Clube, dirigido pelo Emílio Gomes e da qual faziam parte o José Travanca, o Aurelindo Ceia, o Celestino Pereira, o José Alfredo Saraiva, o António da Palma e a Ana Damião, presidindo à Assembleia Geral o António José Bernardes, secundado pela Cecília Travanca e por Luís Pio, pertencendo ao Conselho Fiscal, o Joaquim Rodrigues, o Mário Rui Hipólito e o José Augusto Gomes.
Se recordo esses nomes, faço-o porque o seu envolvimento nesses projectos acarretava então alguns riscos pessoais, tanto mais que se vivia um período de forte inovação e renovação cultural, visto com desconfiança pelo poder ditatorial de então, a braços com uma grave crise de sobrevivência. Nomeadamente a direcção do cine-clube apresentava-se com um programa de actividades que, a não ter havido 25 de Abril, se confrontaria, mais tarde ou mais cedo, com as autoridades, repetindo-se provavelmente uma situação idêntica àquela que essa associação viveu nos anos 60, com o afastamento compulsivo e prisão de alguns dos seus dirigentes associativos.
Sobre o dia 25 de Abril, tendo ficado dele uma memória pessoal bem viva, possuo um valioso auxiliar de memória num rascunho que esbocei na altura a lápis, onde registei o que fiz entre os dias 25 e 30 de Abril de 1974.
Acordado pelo meu pai de manhã, a alegria que se viveu então em família e entre amigos foi indescritível, eivada contudo por algum temor em relação ao desenrolar dos acontecimentos, não se sabendo muito bem quem estava por detrás do golpe militar. Havia o receio que os “ultras” pudessem estar por detrás de tudo.
Esse dia vivi-o entre a minha casa, onde ouvi e gravei alguns comunicados emitidos na rádio, o liceu, que encerrou à tarde, e a casa do Mário Rui Hipólito, aqui na companhia do Jacinto Leandro, que foi, anos depois, presidente da Câmara de T. Vedras, eleito pelo PS.
Na noite desse dia realizou-se um improvisado comício de esclarecimento do MDP-CDE no Largo da Graça.
A grande manifestação de alegria e de apoio aos militares teve lugar na tarde do dia seguinte, com uma grande manifestação que percorreu as ruas de Torres Vedras, tendo eu nessa noite, indo para Peniche assistir à libertação dos presos políticos, que só se concretizou na madrugada do dia 27.
Na tarde deste dia, três dos presos libertados foram recebidos em festa no Largo da Graça. Nesse mesmo dia uma força do MFA veio a Torres Vedras para ocupar as instalações da Legião Portuguesa, no edifício onde veio a funcionar a Creche do Povo (ao lado do Teatro-Cine), prender o “chefe” local da PIDE e desarmar a GNR.
A 28 de Abril realizou-se na sede do CAC uma reunião aberta à população onde foi escolhida uma comissão para dirigir provisoriamente os destinos do município.
A 29 de Abril eu e os meus colegas do “Impulso” redigimos um manifesto intitulado “Por uma nova Banda Desenhada” enviado a toda a imprensa nacional, que o publicou.
Com a data de 26 de Abril foi cedida ao Cine-clube, pela Fundação Gulbenkian, uma máquina de projectar de 16 mm que permitiu a esta associação conhecer então uma intensa actividade nas zonas rurais do concelho.
Politicamente, aderi em Junho ao Partido Socialista, tendo sido fundador local da Juventude desse partido, sendo também eleito para a primeira associação de estudantes do Liceu.
Cedo me desiludi com a vida partidária, tendo passado a apoiar esporadicamente candidaturas e projectos políticos, sem nunca me comprometer como militante, acreditando mais na acção fora dos partidos e no direito à diferença.
Foi nesse espírito que me envolvi nas candidaturas presidenciais de Otelo Saraiva de Carvalho, Lurdes Pintasilgo e Jorge Sampaio, que me candidatei em eleições municipais pelos GDUP’s e pela CDU, ou que votei recentemente em Manuel Alegre, ou voto, desde que surgiu, no Bloco de Esquerda, nas eleições nacionais e europeias, e na CDU, nas autárquicas.
Mais do que na vida política, tenho-me envolvido com mais entusiasmo na vida cultural, recordando aqui projectos como o “Área”, que esteve na origem da Cooperativa de Comunicação e Cultura, as rádios locais, tendo participado nalgumas das primeiras emissões piratas, na Rádio Estremadura e na Rádio Oeste, e fazendo parte de algumas associações culturais, como a Associação de Defesa do Património.
Participei activamente em vários projectos jornalisticos, tendo começado pelo “Oeste Democrático”, continuado no já mencionado “Área”, e acabando no “Zona Oeste”. Tenho além disso colaborado activamente em muitos jornais e revistas, com destaque para o “Badaladas” e “Frente Oeste”.
Os meus interesses actuais estão mais virados para a investigação histórica, nomeadamente sobre o concelho de Torres Vedras, sendo autor e co-autor de alguns livros publicados sobre a sua história.
Sem a liberdade trazida pelo 25 de Abril estou convencido que muitos daqueles projectos não teriam sido possíveis, e toda a vida das pessoas da minha geração teria sido bem mais difícil, pois, a prolongar-se o regime por muito mais tempo, não nos teríamos escapado ao envolvimento na guerra colonial, com as consequências conhecidas.
Não deixa contudo de ser paradoxal que, quando se comemora o 35º aniversário dessa data, Portugal esteja envolvido numa grave crise internacional, e seja governado pelo mais retrógrados, autoritário e anti-social governo do pós-25 de Abril.
Para se completar o espírito do 25 de Abril falta ainda caminhar muito na via da educação, da cultura, da defesa do ambiente e do aprofundamento da participação cívica da população, que não se pode esgotar nos partidos políticos e no dia das eleições.
Pesem todos os erros, abusos e dificuldades, o 25 de Abril valeu a pena, e ficará na minha memória como um grande dia da minha vida, só comparável com o dia do nascimento da minha filha.
5 comentários:
Profundamente solidário,
subscrevo as tuas preocupações, partilho as tuas recordações!
ABRAÇO FRATERNO!
25 de ABRIL SEMPRE!!!
J Moedas Duarte
excelente texto :)
faço minhas as palavras do Luís Filipe. um obrigado pela luta democrática.
Bonito texto, Venerando. Como foi bonita a festa, pá. Mas cá continuamos com o mesmo espírito. O que esses anos nos deram, ninguém nos pode tirar. Abraço,
Antero
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