Anda muita gente a deixar esta vida e os que eu conheço não mereciam.
Desculpem, mas tenho andado um pouco a pensar nesse tema triste, pouco adequado para a quadra natalícia.
Há três anos que o tema não me sai da cabeça. Tive-a à frente de mim. Fui dos sortudos, até agora, mas passei a viver um dia de cada vez, como se fosse o primeiro. Deixei também de ter medo do futuro ou de dizer o que penso.
Há mais de um mês que investigo uns documentos que também não ajudam muito.
Tenho andado a consultar os livros de óbitos do concelho de Torres Vedras de 1918, para estudar os efeitos da pneumónica na sociedade torriense daquele tempo.
Os registos dos meses de Outubro e Novembro desse ano são aterradores. Morria-se às centenas, famílias inteiras, aldeias inteiras.
Pior que tudo eram as idades dos atingidos pela doença, a maior parte os jovens na flor da idade, entre os 15 e os 35 anos.
O terror e a dor deviam ser imensos, com a falta de informação, a ignorância e as condições de vida então existentes, e aquilo que não parava, dias e dias seguidos.
O alívio que senti quando, chegado aos registos de Dezembro, a pneumónica parou de repente. A mortalidade voltou quase ao “normal” ( um mortalidade infantil elevadíssima). Mas então, ao longo de 1919, deparei-me com uma realidade mais silenciosa, um surto de varíola que foi dizimando, lentamente, ao longo de todo o ano, os recém-nascidos, muitos deles órfãos dos mortos da pneumónica.
A morte era então uma presença bem mais avassaladora. A sua “naturalidade” deve ter levado muitos à beira do desespero, outros ao conformismo perante ela.
Não tenho medo da morte, mas comecei a ver a luz do sol, o frio da noite e os pingos de chuva com outra atenção e cheguei à conclusão que ainda quero viver muito tempo e que gostava que aqueles de quem eu gosto ou com quem simplesmente me cruzo, e que partilham comigo vários espaços , pudessem sentir o sol, o vento e a chuva até à exaustão.
1 comentário:
Este teu desabafo sensibilizou-me muito.
Tenho com a morte uma relação familiar que vem da infância. Meu pai, para prover ao sustento, fazia diversas coisas: cobrador de quotas, administrador do jornal paroquial, ajudante de guarda-livros numa estância de madeiras... E era também o sacristão lá da terra.
Desde miúdos que papei muitos funerais, de opa e caldeirinha de água benta ao lado do sr. prior. Aquelas covas causavam-me vertigens mas havia um certo ar mórbido em tudo aquilo que não me desagradava. Eram os rituais, as manifestações de dor, a sensação de que ali não havia fingimentos, tudo era brutalmente verdadeiro.
Ainda hoje não me custa entrar num cemitério. Faço-o agora naquela postura filosófica dos estóicos e epicuristas.
Sim, também quero muito viver. Mas tenho a consciência permanente da perenidade das coisas. Não vejo luzes no "além", não creio na vida eterna, acredito sim na eternidade da matéria, em constante transformação. Sei que todos os dias morre uma parte do meu corpo e outra se renova, em ciclos cada vez mais curtos, até ao apagar do pavio...
Obrigado, Venerando, pelo teu texto motivador, que me fez escrever estas palavras, enquanto olho a chuva e contemplo serenamente o crescimento dos meus netos, sabendo bem que os seus risos deixarão de existir um dia. Tal como tu... Tal como eu...
Abraço comovido, fraterno!
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