“Guerra ao ISIS? Talvez começar pelo namoro com a Arábia Saudita.
Por Alexandra Lucas Coelho, in Público de 29 de Novembro de 2015
George W. Bush com rei Abdullah em Abril de 2005 e François Hollande
com o príncipe Salman bin Abdulaziz no início de 2015( REUTERS).
“1. Se algum estado multiplicou embriões que contribuíram para o
“Estado Islâmico” foi a Arábia Saudita. E quem calou e consentiu estava no
Texas em 2005 como hoje está em Paris. Em 2005, George W. Bush a beijar o rei
Abdullah, de mãos dadas entre as flores. Em 2015, François Hollande e Manuel
Valls desdobrando-se em contratos de milhões com o sucessor de Abdullah, a tal
ponto que a imprensa francesa falou em “lua-de-mel”. O terror de estado saudita
fez bastante pelo estado de terror de 2015, enquanto boa parte do dito
“Ocidente” calava e consentia. Obama esfriou o namoro, estendeu a mão ao Irão?
Pois a Arábia Saudita achou que teria sempre Paris e sem deixar de cortar
cabeças. O poeta e artista palestiniano Ashraf Fayadh, que está preso pelos
sauditas há quase dois anos, é só o mais recente condenado à morte por
“insultar Deus”, “renunciar ao islão”. Nada disso impediu que os negócios
ocidentais com a Arábia Saudita prosperassem, entre armamento e fotos de
família. Uma cumplicidade a que nenhum atentado contra alvos ocidentais pôs
fim. Ao contrário, foi ver como no pós-11 de Setembro a Casa Branca protegeu o
ninho saudita e depois invadiu o Iraque, que não tinha nada a ver com o
assunto. Estive lá então, e voltei lá este ano, à “fronteira” que separa o
“Estado Islâmico” do Curdistão, agora que a Síria está em ruínas, e o Iraque
numa divisão fratricida: é esmagador ver como a força do “Estado Islâmico” veio
de todos os erros cometidos desde aí, todos os maus jogos de xadrez. Então,
para honrar os mortos e cuidar dos vivos, no luto do que aconteceu em Paris, o
pós-13 de Novembro podia começar por aí, acabar este namoro complacente,
exercer uma pressão real sobre a Arábia Saudita. Quem defende a vida em
liberdade não pode ganhar dinheiro incondicionalmente com estados que fazem do
extremismo o seu império, explorando centenas de milhões em África e no
Oriente, enquanto se declaram contra o “Estado Islâmico”.
“2. Da Bósnia ao Paquistão, o dinheiro do petróleo saudita foi-se
materializando em mesquitas, escolas corânicas, centros culturais, sites,
jornais, que assim se tornavam frentes avançadas do wahhabismo, a corrente
fundamentalista do sunismo imposta na Arábia Saudita. Uma colonização dos
espíritos em territórios ultravulneráveis, devastados pela guerra, pela
repressão ou pela miséria, prontos a ficar dependentes dessa protecção. Em
muitos lugares, a alternativa é estudar nas madrassas pró-sauditas ou não
estudar. Os cálculos de quanto foi gasto na exportação do wahhabismo variam
entre 100 biliões e o dobro, ou seja, nem se alcança. Paralelamente, acima da
arraia-miúda ou nos subterrâneos, passou todo o resto, petróleo, treino e arsenal.
Mas não era segredo para ninguém, começando pelo círculo íntimo de Bush, o
quanto a Arábia Saudita, através da família real ou de homens de negócios,
financiava terroristas. Tanto que a administração Obama alterou as relações com
Riad. Entre o material divulgado pela Wikileaks, a então secretária de Estado
Hillary Clinton é citada dizendo que “doadores na Arábia Saudita constituem a
mais importante fonte de financiamento de grupos terroristas sunitas no mundo”.
Ou: “Temos de tomar mais medidas, visto que a Arábia Saudita continua a ser uma
base financeira essencial para a Al-Qaeda, os taliban e outros grupos
terroristas.” Nesta comunicações, Qatar, Kuwait e Emirados Árabes Unidos também
são referidos como apoiando terroristas. Entretanto, rebentou a guerra na
Síria, e tanto a Arábia Saudita como aliados ocidentais armaram rebeldes ou
supostos rebeldes anti-Assad que se vieram a revelar jihadistas. Tudo isto são
embriões do “Estado Islâmico”. Há um ano, o vice-presidente americano Joe Biden
disse em Harvard: “Os nossos aliados na região eram o nosso maior problema na
Síria. Os turcos eram grandes amigos […] e os sauditas, os Emirados, etc. Que
estavam eles a fazer? A dar centenas de milhões de dólares e dezenas de
toneladas de armas a quem quer que combatesse Assad. Só que essa gente que
estava a ser equipada era da al-Nusra e da Al-Qaeda e de elementos extremistas
da jihad vindos de várias partes do mundo.”
“3. No relatório sobre o 11 de Setembro, 28 páginas continuam secretas,
enquanto ainda se arrasta o inquérito e os familiares das vítimas permanecem na
dúvida. Um dos advogados das famílias, Sean Carter, disse em Agosto que “a
natureza do apoio dos sauditas à Al-Qaeda continua a ser mantida em segredo,
quando é referida num conjunto de documentos classificados”. De acordo com o
antigo senador Bob Graham, essas 28 páginas “apontam um dedo muito forte à
Arábia Saudita como o principal financiador” do 11 de Setembro. Graham
acrescentou recentemente: “A Arábia Saudita não pôs fim ao seu interesse em
espalhar wahhabismo extremista. O ISIS é um produto dos ideais sauditas, do
dinheiro saudita e de apoio organizativo saudita, apesar de agora eles posarem
como sendo muito anti-ISIS.”
“4. Ensaf Haidar (mulher do blogger saudita Raif Badawi, refugiada no
Canadá porque a sua vida corria perigo) diz que “o Governo saudita se comporta
como o Daesh [outro termo para ISIS ou “Estado Islâmico”]”. O seu marido
continua preso por “apostasia”, ou seja, “renúncia ao islão”. Condenado a dez
anos e mil chicotadas, o blogger já foi alvo de 50. É hipertenso, e a mulher
teme que ele não sobreviva a nova série.
“5. O físico nuclear Yousaf Butt (consultor de segurança nacional, de
Harvard a Londres, e comentador frequente, da Reuters ao Huffington Post)
escreveu: “É razoável pensar que a Casa de Saud [família real saudita] é
simplesmente uma versão mais implantada e diplomática do ISIS. Partilha o mesmo
extremismo wahhabi teofascista, a falta de direitos humanos, a intolerância, as
decapitações violentas, etc., mas com melhor construção e melhores estradas. Se
o ISIS se tornar um verdadeiro estado, ao fim de décadas podemos imaginar que
se parecerá com a Arábia Saudita.”
“6. E, já depois dos últimos atentados em Paris, um escritor magrebino
fez-se ouvir com contundência, num artigo a 20 de Novembro no New York Times,
intitulado Saudi Arabia, an ISIS that has made it (Arábia Saudita, um ISIS
bem-sucedido). Chama-se Kamel Daoud e tem o peso de ter ganho este ano o Prémio
Goncourt/Primeiro Romance. Depois de equiparar Arábia Saudita e ISIS, Daoud
resume: “Na sua luta contra o terrorismo, o Ocidente declara guerra a um mas
aperta a mão ao outro.” Um “mecanismo de negação” que fecha os olhos às
consequências: “O wahhabismo, um radicalismo messiânico que surgiu no século
XVIII, espera restaurar um califado fantasioso centrado num deserto, um livro
sagrado e dois lugares santos, Meca e Medina. Fundado no massacre e no sangue,
manifesta-se numa relação surreal com as mulheres, a proibição de
não-muçulmanos atravessarem os territórios sagrados e leis religiosas ferozes.
Isso traduz-se num ódio obsessivo da imagem e da representação, e portanto da
arte, mas também do corpo, da nudez, da liberdade. A Arábia Saudita é um Daesh
bem-sucedido.” Daoud descreve em seguida os efeitos da wahhabização no mundo
muçulmano, de como isso distorce o islão e o “Ocidente”. E conclui: “Daesh tem
uma mãe: a invasão do Iraque. Mas também tem um pai: a Arábia Saudita e o seu
complexo religioso-industrial. Até que esse ponto seja percebido, batalhas
podem ser ganhas, mas a guerra estará perdida. Jihadistas serão mortos para
renascerem em gerações futuras e formados pelas mesmas cartilhas. Os ataques a
Paris expuseram estas contradições outra vez, mas, tal como aconteceu depois do
11 de Setembro, isso corre o risco de ser apagado das nossas análises e
consciências.”
“7. No mesmo dia, 20 de Novembro, Ben Norton escreveu na Salon que,
apesar de tudo isto e do esfriar do namoro, “a administração Obama fez mais de
100 bilhões em negócios de armas com a monarquia saudita em apenas cinco anos”.
E, “menos de três dias antes dos ataques de 13 de Novembro em Paris, os EUA
venderam 1,3 bilhões de bombas à Arábia Saudita. O regime tem usado estas armas
para grupos extremistas no Médio Oriente”. Ao mesmo tempo, os laços entre Paris
e a Arábia Saudita (mas também o Qatar) foram fortalecidos com vários negócios.
A França é um fornecedor de armas importante, e o petróleo do golfo é
importante para a França. A França já é o terceiro maior investidor na Arábia
Saudita e quer que os sauditas invistam em França. Há um mês, apenas, o
primeiro-ministro Valls foi a Riad com cerca de 200 empresários franceses.
“8. Por ter aberto a cena artística saudita ao mundo, a condenação à
morte de Ashraf Fayadh, decretada este mês por um “tribunal” saudita, gerou uma
indignação alargada, e não apenas no circuito Tate Modern-Bienal de Veneza. Há
uma petição de cem criadores árabes de vários países (Iémen, Omã, Egipto,
Emirados, Arábia Saudita, Palestina, Iraque, Kuwait, Síria, Argélia, Bahrein,
Marrocos, Líbano). Fayadh tem alguns dias para recorrer, mas não pode receber
visitas e dificultam-lhe acesso a uma defesa. E na sobreposição de acusações,
tanto pode ser morto pelo que alguém interpretou como renúncia ao islão num seu
livro de poemas, como por usar cabelo comprido, guardar fotos de mulheres no
telemóvel ou ter partilhado um vídeo em que a polícia religiosa saudita
chicoteia um homem em público. Claro que a vida dentro do “Estado Islâmico” é
ainda pior, e certamente o “Estado Islâmico” não obedece à Arábia Saudita, ao
contrário, edipianamente, fez dela mais um dos seus alvos. Mas uma das raízes
desta caixa de Pandora jihadista está em Riad, e era bom que a luta pela vida
passasse por aí”.
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