Para quem se queixa de dois meses de confinamento, fechado em
casa, aqui recordamos outros tempos de “confinamento”, neste caso com duração
de dois anos nas “instalações” de Peniche.
Pessoalmente, quando começo a desesperar, recorro a essas
memórias, e logo me passa o “desespero”.
(excerto de “Em Sentido Contrário – Venerando Ferreira de Matos –
um oposicionista na Província”, ed. Ephemera,
2019):
“Na prisão de Peniche (1952-1954) (3ª parte)
“Venerando
Ferreira de Matos deu entrada em Caxias no dia 3 de Julho para iniciar o
cumprimento de dois anos de cadeia.
Pelo
que se percebe do conteúdo de uma das suas cartas enviadas daquela prisão,
desconhecia então se ía cumprir a pena em Caxias ou em Peniche.
Foi em Caxias que iniciou uma longa troca de
correspondência a partir da prisão com a sua futura esposa.
Aqui
publicamos alguns excertos da correspondência enviada a partir de Caxias:
2/7/1952:
“Estou na sala 3 do Reduto Norte do
Forte de Caxias. É uma sala já minha conhecida pois que, antes do julgamento,
estive aqui durante algum tempo.
“Foi pena ter vindo agora. Uma pessoa
desabitua-se da prisão, andando, como eu andei, 5 anos em liberdade.
“Não sei se fico aqui definitivamente
a cumprir pena. Talvez me passem para Peniche, ou talvez não.
“A janela da sala dá para uma cerca,
na qual passeiam galinhas e uns pintainhos, já crescidos.
“Uma árvore, um arbusto amarelecido
pelo Sol e quatro grades. O céu muito azul e o silêncio na sala. Um aqui
escreve para a mulher; ali outro, para os pais (…).
“Também há um gato, no refeitório.
“É preto e branco e já hoje saltou
para o pé de mim a dar marradinhas.
“Enfim. Vai-se passando o tempo
conforme é possível”.
7/7/1952:
“É uma e meia da tarde. “Hora da
Saudade”, como nós lhe chamamos. Uns e outros escrevem. O assunto escasseia e
todos se queixam do mesmo.
“O “carocho” lá anda no refeitório. Hoje houve bacalhau e
dei-lhe algumas espinhas.
“Não há andorinhas, mas em
contrapartida os pardais fazem uma chilreada demoníaca em cima das árvores em
frente da janela. Costumamos dar-lhe migalhas de pão e, os mais novatos, quase
que veem comer à nossa mão.
“Também há um cão, mas esse anda lá
por fora. E um burro também que trás o pão de manhã.
“Como vês, com um pouco de imaginação,
também se pode viver em relativa alegria.
“(…) Ainda não sabemos se ficamos
definitivamente nesta prisão”.
Finalmente
no dia 8 de Julho de 1952 foi levado, juntamente com outros presos, para a
prisão de Peniche.
(…)
[8/7/1952
(1º carta de Peniche)]
“Fui
transferido para Peniche - caserna 4.
“Parti
de Caxias às 6 da manhã e passei aí por
Torres Vedras às 9 horas e tal. Ainda vi o teu pai, mas ele não me viu.
“Aqui em Peniche há um bocado mais de
Liberdade. Temos recreio todos os dias e os guardas são bastante atenciosos
“Deram-nos os regulamentos para ler:
há lá um artigo que diz: pode ser autorizada visita a pessoas estranhas
à família se se comprovar exercerem influência benéfica sobre a moral do
preso. Isto mais ou menos. Isto quer dizer que um dia, se cá vieres, poderás
avisar com antecedência, para eu pedir autorização de visita.
“(…)
“De uma janela vê-se o mar, lindo e
azul, grande e esperançoso. A vista espraia-se e bebe com sofreguidão aquele
espaço de liberdade.
“(…)
“A minha primeira impressão do Forte é
boa. Uma coisa me sensibilizou: tratam-nos como pessoas, e com respeito. Se
assim continuar, o tempo passará depressa.
“Vou tentar estudar e cumprir o
programa à risca. Quando sair hei de ver se faço o exame que me falta”.
(…)
No
Forte, VFM foi ocupar a Caserna 4,
mudando-se meses depois para um quarto, o 7.
Apesar
das condições prisionais, o período de prisão de VFM coincidiu com uma fase
menos repressiva. A situação veio a agravar-se após a fuga de Dias Lourenço,
mas esta aconteceu quando o nosso biografado já se encontrava a cumprir, em
liberdade, o período de um ano de liberdade condicional.
Isso
explica que alivio com que encarou o ambiente em Peniche, em comparação com
aquele que tinha conhecido em Caxias.
No
arquivo pessoal do nosso biografado, à guarda da sua esposa Maria Helena Aspra
de Matos, encontra-se uma vasta correspondência dos tempos da prisão de
Peniche, recebida por VFM, entre elas pouco mais de 200 cartas que, da prisão,
o próprio VFM enviou para Maria Helena.
Esse
raro e vasto espólio dava, só por si, para escrever um livro, pelo valioso
conteúdo que nele podemos encontrar sobre os gostos pessoais, na literatura, na
musica, no cinema, nas artes, e nas esperanças que depositava quando saísse da
prisão, assim como referências mais pessoais sobre a sua relação com Maria
Helena, mas são os aspectos sobre a vida na prisão que aqui iremos respigar.
Convém,
contudo, ter a noção de que essas cartas eram submetias à censura interna da
própria prisão e nelas não se podia dizer tudo, principalmente o que fosse
menos agradável. Foi o que aconteceu nalgumas referências a presos que entraram
em Peniche, vindos do Tarrafal, nome que ele não menciona, falando apenas nos
companheiros que vieram de “Cabo Verde”. Mesmo assim é uma documentação muito
rica e inédita, da qual aqui apresentamos alguns excertos:
1952
9/7/1952:
“Da caserna onde estou (…) vê-se o
mar, um mar azul e grande com dunas de areia a ladeá-lo.
“(…)
“Esteve cá a visitar-me aquele meu
amigo que me deu o lagarto de borracha. Uma visita inesperada autorizada
superiormente que bastante satisfação me deu. Sim, porque conto durante os
próximos dois anos e tal receber poucas visitas. Meus pais, agora mais do que
nunca, impossibilitado economicamente de o fazer; e tu também não o poderás
fazer, limitada como está a tua acção em casa (…).
“O amigo a que faço referência,
chama-se Eurico Serra. Velho companheiro de escola, confiei-lhe um pedido: que
fosse aí pela livraria e te dissesse pessoalmente que tinha estado comigo.
“(…).
“Aqui deixaram entrar imediatamente os
meus velhos amigos: os livros de estudo. Logo que tenha assente o espírito
começarei a trabalhar no inglês e em contabilidade”.
11/7/1952:
“Estou todo queimado, nas costas e nos
braços. Andei ontem, 5ª feira, todo o dia na cerca. Pusemos as camas cá fora.
Almoçámos e jantámos na cerca. Somos quarenta, todos do mesmo processo.
Conhecidos antigos, portanto.
“(…)
“A alvorada é às 7 da manhã. A essa
hora mais ou menos, da janela da caserna vêem-se sair as traineiras para a
pesca. Recolhem à noitinha. Não é nada disso. As traineiras saem à noitinha e
regressam às 7 da manhã. Assim é que é.
“Está um circo em Peniche. Por volta
das dez horas da noite, ouve-se nitidamente a musica do altifalante.
“Também temos um gato todo preto,
lindo e luzidio, que vem cá de quando em quando. Nós fazemos um arco com os
braços e o “sujeito” salta todo olímpico e desdenhoso…
“Como o correio sai só ás 9 da manhã,
as cartas têm de ser escritas na véspera”.
13/7/1952:
“Comprámos um tanque e alguma roupa é
lavada por nós.
“(…).
“Não te conhecia a “inclinação” para a
botânica. Aqui no Forte há uma biblioteca com mil e trezentos volumes e vou
procurar algum livro que verse o assunto, para ir fazendo pergunta sobre folhas
e arbustos”.
16/7/1952:
“Ontem recebi uma carta do meu patrão,
do sr. Proença. Entre outras coisas transcrevo uma parte que me trouxe certa
satisfação: “…caso curioso : nem só os seus amigos ou simplesmente aquelas pessoas
que vinham ao armazém me perguntam por si. É toda a gente. E com que interesse
o fazem!
“Nunca imaginei que houvesse tanta
gente em Torres, que quisesse desta maneira mostrar a sua simpatia pelo meu
amigo. E sem interesse algum, como sabe. Todos lamentam e lhe tecem os maiores
elogios. Prova isto que sempre merece a pena ser-se delicado, correcto e
honesto.
“Como vês, querida Lena, este é o
melhor atestado que o gerente de uma Empresa de tanta importância como é a
U.V.A poderia passar”.
31/7/1952:
“Pusemos as camas cá fora, como é
costume às 5ªs feiras. Uns leem, outros estudam, um outro lava a roupa (eu, de
quando em quando, também a lavo – pois não!)
“O Sol está prestes a descobrir, e um
galo de crista flamejante repete o seu cântico monótono a que outro responde.
“São 10 da manhã. Os muros que nos
circundam têem úlceras que o salitre abriu; plantação rasteira num deles: Uma
brecha, em um pedaço azul de mar. O
motor de um arrastão ouve-se ao longe. A “História da Civilização” em cima da
minha cama, é desfolhada ao acaso por um golpe de vento, e fica numa folha que
representa um camelo e as dunas de um deserto. Árabes sentados, de longas
túnicas, olham, abstractos, um longe imaginário. Entre mim e eles existe uma
certa correlacção : não é o camelo cansado nem as dunas onduladas. É o
oásis…Eles, caminheiros perdidos, sabem da sua existência, e porfiam na sua
procura; eu sei que ao sair, te tenho também! Oásis deste deserto sem carinhos
que vislumbro para lá dos muros, que salta na crista das marolas e se repercute
nas ondas do ar.
“(…)
“Fui informado que os Regulamentos não
permitem troca de correspondência em
língua estrangeira, pelo que nos é vedado continuar com as nossas lições
de inglês.
“Tal proibição é lógica. Sabido que
todas as cartas são censuradas e se cada um lhe desse para escrever numa língua
estrangeira não haveria possibilidade de controlar –pelos serviços de censura-
toda a correspondência que é remetida”.
4/8/1952:
“Estamos tentando sincronizar o
recebimento de jornais e revistas, pois dá-se o caso de receber em triplicado e
duplicado diversos jornais. Por isso, se quiseres, só deves mandar o “Átomo”.
“Quanto ao “Janeiro” eu continuo a ter
aqui o jornal que compramos diariamente (…). Não deves comprar o Diário de
Lisboa”.
7/8/1952:
“Nem sempre o espírito está calmo,
outras vezes vamos lendo um livro, um jornal, uma revista. Agora estou a acabar
de ler “Maria Antonieta” de Stefan Zwieg e a seguir, uma enormidade de livros.
Sem contar com o “Ler” e o “Boletim da Língua Portuguesa”, que tenho
normalmente, ainda há a Página Literária do “Janeiro”, o “Átomo”, a “Vida
Mundial Ilustrada”, “O Século” e etc..E
eu não descanso enquanto não “mastigo” esse noticiário todo”.
14/8/1952:
“Já está tudo deitado. E eu aproveito
os últimos minutos antes do toque do silêncio para acabar a carta.
“Um já ressona! Dentro em pouco
houve-se o toque do clarim e depois…silêncio. De quarto em quarto de hora o
“alerta” dos guardas irrompe pelas grades…mais um dia que está prestes a passar
na longa caminhada dos oitocentos que faltam”.
18/8/1952:
“Na caserna, aos domingos, fazemos uma
hora de variedades. Já esgotei os poemas todos…canta-se (baixinho) canções
regionais, contam-se anedotas, fazem-se adivinhas, etc. Voltámos à infância”.
28/8/1952:
“Sobre visitas, os horários são os
seguintes:
“Sábados e Domingos: das 13 às 16 ½
“Outros dias : das 13 às 15.
“Avisar com antecedência o dia da
visita bem como os nomes das pessoas que vêem. A autorização pode ser ou não
ser dada”.
4/9/1952:
“O Sol hoje queima! A palerma da
galinha comeu as pevides que estavam a secar, e o amigo que as queria mandar
para a terra fartou-se de protestar. As pevides eram de melão – dum melão de
Almeirim que tínhamos comido. Só ficaram meia dúzia para amostra. Fartei-me de
rir, e a galinha também – certamente!
“E o tempo vai assim passando com
estes pequenos incidentes, comentados com mais ou menos humor.
“Ao lado dois parceiros jogam damas, e
outro lê “a Bola”.
“Aprendi a jogar xadrez, mas sou muito
fraquinho. O meu primeiro jogo foi perdido com xeque-mate à 3ª jogada…
“Cá vou estudando inglês com mais ou
menos vontade. Vai indo aos poucos”.
2/10/1952:
“Há, no meio da parada um poço. Por
baixo, o mar atira-se de encontro às pedras inúteis e viscosas. Alguém se
lembrou de experimentar pôr uma seira velha sobre a boca do poço. A corrente de
ar que se forma eleva o seirão bastante alto. E…é o suficiente para que todos
se ponham a vê-lo fazendo comentários e
rindo e dando – ahs!- de admiração (crianças grandes a tentar distrair o
espírito das preocupações e problemas em que todos estamos mergulhados)”.
18/11/1952:
“Mudei de “morada”. Por razões que
para o caso não interessam sai com outros amigos da Caserna 4.
Incompatibilidades, aborrecimentos, tudo isso teve influência. Encontro-me num
quarto – o nº7.
“Está visto que isto são questões meramente particulares, o que equivale a
dizer que não permito, qualquer conversa sobre o assunto. Entendido?
Daqui a dois anos conversamos sobre ele
“(…)
“ O Felisberto e o pai da Graça Maria
também se encontram ao pé de mim”.
26/11/1952:
“Escrevo-te de novo da Caserna 4. Por
conveniência de serviço fui transferido. O Felisberto e o pai da Graça Maria
também.
“Diversos motivos originaram a
suspensão de regalias. Eis porque devolvi o jogo de xadrez. (…) Visitas
estranhas à família e géneros alimentares (para confecionar) não entrarão por
estes tempos mais próximos.(…). Creio que isto se irá consertando pouco a
pouco, e tornaremos a possuir num futuro breve as regalias agora suprimidas”.
4/12/1952:
“Ontem saiu um companheiro da caserna
em liberdade, após ter cumprido quatro anos! Manteve até ao fim a mesma calma e
confiança. Tinha uma filha da tua idade que estava para casar. Não o fazia
enquanto o pai não saísse. Agora, por certo, o fará”.
8/12/1952:
“Agora uma notícia: desisti do alemão!
Pensando melhor acho que me bastante difícil continuar. Aquilo é bastante
difícil. Já fiquei com umas luzes sobre o assunto, não tendo portanto perdido o
tempo. Acho que devo dedicar-me mais ao inglês e ao francês, pois o que
interessa são os resultados práticos”.
15/12/1952:
“Aqui tenho a tua carta de 6ª feira
bem como a encomenda que mandaste (…). Vinha a “Imagem” e um jornal francês. A
Imagem recebi-a, mas o jornal ficou retido na Secretaria, pois em consequência
de uma “ordem de serviço” está proibida a entrada de jornais estrangeiros”.
1953
1/1/1953:
“Ontem foi-nos permitido ter a luz
acesa até à 1 hora da manhã. Fizemos uma ceia que constou de cozido à
portuguesa (muito bem feito, por sinal) pão, vinho e fruta.
“Fez-se uma festa (reveillon!) a que
não faltou um acto de variedades. Lá fizemos uns versos com o perfil de cada um
dos presentes. Intitulamo-los de “concurso aonde está o gato?”. No meio da
versalhada havia uma quadra dedicada ao gato, nosso “companheiro” já
indispensável.
“Quem adivinhou ganhou um riquíssimo
prémio: o gato embrulhado e metido num cesto…
“Como vês também passámos a nossa
noite de fim de ano. O gato é que não gostou!”.
18/1/1953:
“Pedi, de novo, transferência para os
quartos.
“Motivos? – perguntarás. Olha Lena!
Nervos, aborrecimentos, fadiga também. Isto aqui é mais calmo, melhor portanto
para se estudar, para quem, como eu, está firmemente disposto a cumprir
integralmente a pena em que fui condenado. A minha passagem para aqui não altera
em nada o meu comportamento moral em relação ao pedido de liberdade condicional
feito há tempos.
“(…)
“Ás vezes refugio-me a ler e a
construir com meia dúzia de palavras “poemas” grandiloquentes. Leio-os e depois rasgo-os.
“Eu sei que não gostas que eu rasgue
essas “obras primas”. Mas eu prometo juntá-los futuramente, Sim?”.
5/2/1953:
“Temos um novo “hóspede”!
desengonçado, baixo e gingão parece um velho marinheiro de outras eras. Cuá,
cuá, cuácuá e ei-lo atrás das galinhas, a refilar com os galos, a alvoraçar o
galinheiro inteiro. Hoje fizemos-lhe uma represa para ele tomar banho. Lá andou
a chapinhar”.
28/3/1953:
“Contráriamente o que julgas as cartas
que vêm com as encomendas não são entregues logo, mas sim no dia seguinte, pois
elas têm de ser censuradas.
“(…)
“Às vezes ouço um rádio, ao longe.
Este mês, porém, tenho aqui no andar de cima a criada que trata dos miúdos ao
Tenente da Guarda que está a par de toda as canções da voga. E por sinal, além
de bom ouvido tem uma voz muito regular. Canta “a mala” (olha a mala, olha a
malinha de mão) e que diz que não é dela é do “hidrobião”…O miudito mais
pequeno, está a palrar à janela: blébléblé.
“Passa um gato e um companheiro com
uma bilha na mão. A noite vem descendo aos poucos, e as estrelas já deviam ter
feito a “toillete”. Vão aparecendo aos poucos também, aos ramos, formando
figuras geométricas, cruzes, quadriláteros, reticências. As “ursas” lá vêm (a
grande e a pequena) fazer companhia a Vénus que, nem por não ser estrela, deixa
de ter um brilho tão lindo como os olhos de uma “saloia” torreense dos nossos
conhecimentos”.
5/4/1953:
“Aqui, a vida, como deves calcular, é
comer, dormir, estudar, ler e escrever…e sonhar. Passo a vida deitado em cima
da cama a devorar livro sobre livro e até os suplementos infantis do Século O
“Pim-Pam-Pum”, marcham na falta de melhor”.
8/4/1953:
“Tenho, agora, por vizinha uma garota
de cerca de oito anos, muito engraçada. Como não me pode falar (eu sou preso e
ela é uma menina livre) faz-me caretas e foge muito envergonhada. É uma
simpatia de miúda”.
12/4/1953:
“Cá vou entretendo os lazeres cortando
os jornais e páginas literárias. Vou fazer um ficheiro literário e outro sobre
Arte.
“Há quem coleccione selos, caixas de
fósforos, programas de cinema, etc. eu colecciono bio-bibliografias e críticas.
“É um passatempo barato e instrutivo”.
15/4/1953:
“De vez em quando, ouço música. Há
pouco ouvi a “Lagoa Adormecida” pela Orquestra de Filadélfia. Andava eu na
parada. Um barquito a remos cansava-se contra as ondas; outro, de velas vermelhas,
passava ao largo; uma pomba branca passou a rasar o mar –tão azul, que gostava
que visses! De sombrio, no meio de tanta beleza, só as muralhas, altas e
grossas e uma sentinela a passear. Doidejando, dois pardalitos briguentos e,
alagando o quadro descoloridamente pintado, as ondas em “crescendo” arrancadas
aos oitenta violinos da orquestra.
“Depois – e isto é quase sempre assim-
a voz estúpida do locutor a anunciar pasta dentífrica “Pepsodente”! Como
remate…não fica nada mal!”.
20/4/1953:
“O meu companheiro de quarto vai-se
embora. Ficou tonto de todo quando lho disseram. Uma pessoa que esteja de lado
a apreciar farta-se de rir. E eu ri-me com certa saudade. O meu dia também
há-de chegar um dia e outro se rirá também”.
29/4/1953:
“Hoje está um dia de sol. As moscas
passeiam nas paredes e por cima de mim esfregam. É que amanhã vem gente nova
ocupar o Forte. Vai-se embora a Maria de Lourdes –a tal miúda que me fazia
cartas. Atirou-me uma pedrita (diz que tem muitas e de muitas cores) redonda e
acastanhada.
“É uma recordação! É uma catita morena
e bonita com duas tranças e dois laços na ponta. Enfim. Enquanto houver sol,
crianças e flores, “isto” custa menos a passar! O pior é quando chove. Dá cabo
da vontade, enerva, o tempo arrasta-se penosamente, e a saudade de ti e de tudo
quanto aí ficou fora é maior.
“Vamos lá ver se com os dias mais
claros e quentes, vou reorganizar a minha vida de estudo e…trabalhos manuais,
Com o resto da lã tentei remendar as meias, mas o tecido está todo “comido” e
só arranjei a picar os dedos. Uma lâmpada de 25 W (se Edison fosse vivo
encorajava-me!) serve de ovo”.
17/5/1953:
“Estive hoje com um pardalito na mão.
É dos novos. Os pais andam a ensiná-los a voar e eles –catrapus!- caiem cá em
baixo. O resultado das evoluções é quase
sempre desastroso. Quando não caiem e morrem da queda (hoje morreram dois) a
meia dúzia dos gatos existentes por aqui papam-nos. Outros mais espertos fogem
para os quartos. Foi o que aconteceu ao herói deste relato. Dei-lhe pão, não
quis. Amuou (…). Deitei-o para cima do telhado e ele lá foi contar a aventura,
certamente, aos irmãos que o esperavam. Alguns amigos mais antigos aqui contam
que, muitas vezes, os habituavam e ficavam domesticados. Se apanhar um que
queira compartilhar as migalhas comigo, “educo-o” e mando-te, sim?”.
20/5/1953:
“Embora os minutos pareçam anos, o
tempo rola. Já hoje são 20; dentro de dias verga-se mais uma folha ao
calendário. Outro mês, outro arranco e a meta tão desejada aproxima-se tal como
de um navio ronceiro que primeiro avista entre brumas a linha negra da terra;
depois, amontoado de casas, o cais, e entre centenas de pessoas uma cara
desejada e grito de satisfação há tanto reprimido evola-se do peito, sobe e
explode num abraço sem fim. Mais de metade da “viagem” está feita.
“(…)
“Hoje o dia tem estado maravilhoso. Os
pardais numa azafama doida vão e vêm trazendo a “bicada” para os filhotes. A
bicada é ora uma lagarta, ora uma mosca ou um grão qualquer apanhado no chão e,
quantas vezes, disputado às comadres galinhas que ficam olhando estupidamente a
rapidez da “manobra”. Também um casal de melros fez na parte de fora da muralha
o ninho. Lá andam eles lançando de
quando em quando o seu assobio característico para depois mergulharem à
cata de bicharocos com que sustentam os filhos. Invejo-os! Voam livres de todas
estas misérias humanas, de todas as dores e arrelias e mostram vaidosos e
felizes as asas aos presos que cá em baixo, marcham silenciosos. E recordo
Junqueiro. …Ó Natureza! A Bíblia verdadeira és tu! Quantas lições – de
concórdia, paz e justiça – no são dadas por ela?”.
24/5/1953:
“os livros que mandaste aqui os tenho.
Os três de Romain Rolland fazem parte de uma colecção que deve continuar (…).
Não mandes outros livros até eu pedir. As revistas e os jornais agradece-os à
Dª. Judith. As flores também chegaram, mas, coitadinhas, secas. No entanto, com
um pouco de água reanimaram-se e aqui estão a dar um ar primaveril ao quarto
(…).
“Ando, como já te disse a fazer um
“ficheiro” com os recortes das páginas literárias. Cada 50 fichas corresponde a
um tubo de cola Cisne. Já gastei um e agora preciso de mais alguns.
“(…)
“Isto aqui é uma espécie de Jardim
Zoológico.
“Tinha numa caixa um ultimo e
derradeiro queijo, daqueles pequenos, e há dias, preparado o pão e a disposição
fui por ele e…vi uma casca apenas.
“Mistério, prestidigitação, bruxaria?
Mais uma volta e salta um rato de dentro da caixa.z.z.z.z…e lá foi ele para um
buraco. “Deixa entrar –monologuei- que vais pagá-las, bandido! Fui buscar um
alguidar, uma chave da lata de sardinhas, um cordel e um pedaço de pão. Armei a
ratoeira e esperei que de noite o “sujeito” fosse ao pão. E foi. Foi, comeu o
pão e saiu como se nada houvesse acontecido. Que mariola. Hoje vou repetir a
armadilha. Se não cair, e para evitar a “sociedade” com tão falido sujeito
dou-lhe todos os dias uma ração de miolo de pão com a condição de não tornar a
comer queijo”.
31/5/1953:
“Os jornais…os livros…tabaco, etc.
Chegou tudo bem. Também vinha um embrulho com assucar e café da parte do Sr.
Proença. Peço-te o seguinte: que previnas o Sr. Proença que o café já há
bastante tempo está proibido de entrar”.
29/6/1953:
“Sabes o que são os “dois patinhos”?
Os “dois patinhos” na gíria da rapaziada é o dia 22. Com vês parecem
esses simpáticos bicudinhos a deslizar…e assim chegado ao dia 22 consideramos
o mês passado!
“O querer tem muita força; e os dia
parecem passar assim mais depressa com estas infantilidades e tolices que têm
um fundo [de] superstição.
“Portanto, já sabes! Chegado aos “dois
patinhos” risca um mês ao calendário, valeu?”.
1/7/1953:
“Agora já estamos na descida. O alto
da “montanha” foi atingido, finalmente! Já falta menos de um ano. Eis a
grande realidade: Isto é uma espécie de Everest em miniatura. Também a subida
foi penosa e quantas vezes, foi preciso levar à boca “tubos de oxigénio” para
poder sobreviver à falta de ar…agora é a descer. E como para baixo “todos os
santos ajudam” o resto da “viagem” custará menos”.
12/7/1953:
“Quando estava na caserna (…) tudo
quanto viesse era para um monte comum. (…) Aqui, o caso é diferente. Cada um
tem o seu próprio conceito de vida e de uma maneira geral, talvez até por uma
questão de orgulho, não quer sobrecarregar o companheiro”.
15/7/1953:
“Já sai algumas vezes para tratar dos
dentes. Amanhã, 5ª feira, é o ultimo tratamento. Da ultima vez que sai vi na
varanda de um colégio ou escola comercial o professor de contabilidade que
esteve aí em Torres durante muito tempo. Conhece-lo por certo. Olhou para mim,
muito admirado, e eu, na falta de melhor, sorrir. Sorri e continuei. No
retorno, ainda mal refeito da primeira surpresa, dei de caras com o irmão da
Celsa, chefe ou sub-chefe da secção de Finanças aí de Torres. Ia com a Esposa e
deu-me as boas tardes gentilmente. (…) O mundo é pequeno. Toda a gente se
conhece e se encontra.
“x
“Na sala de espera muitas pessoas. Ao
canto uma rapariga nova fazendo tricot. Um casaquinho amarelo, muito pequenino,
tomando forma à espera do miúdo prestes
nascer. Um camponês queixando-se da vida; e um pescador a relatar os
dias que ficou sem dormir por causa duns dentes cariados. Eu a um canto,
guardado à vista, a servir de pasto aos olhos curiosos duma miúda muito esperta
que, de vez em quando, me lançava uns olhares medrosos. Regresso. E de novo a
sensação dos portões que se fecham, da vida que ficou lá fora, dos dias que
passam e jamais se podem recuperar. Estou desejoso de acabar estas saídas que
só trazem tristeza, pensamentos lúgubres, e uma dolorosa saudade de ti, do emprego,
desse movimento de vila de primeira classe a fingir de cidade, do meu quarto
modesto e da minha vida toda destroçada”.
22/7/1953:
“Já há dias me perguntavas se eu
estava zangado com o Raimundo [Porta]. Tenho que dizer-te o seguinte: Quando o
Raimundo veio de Caxias foi, como sabes, para a Caserna 4. Fomos, durante o
tempo que ali estivemos, amigos, companheiros ligados por idênticos percalços e
ainda mais por conhecermos e vivermos o ambiente torriense. Dele tenho uma
óptima impressão e creio que ele de mim não as tem piores. Um dia surgiu, porém
um facto que ia modificar estruturalmente o “ambiente” da nossa prisão. Foi
preciso concordar ou discordar de uma determinada proposta que
envolvia a subordinação a uma directriz politica da qual eu, desde 1947, me
tinha afastado. Fui para um lado e ele foi para outro. A primeira conclusão
tirada foi esta: em politica não há amigos. E assim, quebrou-se essa
corrente de simpatia que nos ligava. Ele hoje está na caserna 2 e eu no quarto
7. Quer dizer: não nos falamos. Só seria possível um reatamento de amizade se
eu passasse para a caserna ou ele viesse para os quartos. Como nenhum de nós
quer recuar (eu por minha parte mesmo que cá estivesse perpetuamente não o
faria voluntariamente) mantemo-nos à distância sem nos hostilizarmos mas também
sem mendigarmos uma amizade que afinal nunca existiu verdadeiramente (…).
Politicamente deixei de existir quer para o Raimundo quer para os outros. Eu já
não tenho lugar no seu mundo. Passei à “reforma” voluntaria e conscientemente”.
13/9/1953:
“Ando a ler as obras completas de Eça
de Queiroz: Já li o “Primo Bazílio”, “A Relíquia” e, prosseguindo, estou quase
a findar a “Correspondência de Fradique Mendes”. Depois irão “Os Maias” e
outras se seguirão.
“À espera de vez estão duas, obras
monumentais, : “A Riqueza e a Conquista da Terra” que é quasi um compêndio de
Económico-Geográfico e a “Fanga”de Alves Redol. Assim se vai passando o tempo
de “papo” para o ar enquanto os dias como dromedários neste deserto avançarem
vagarosamente…”.
20/9/1953:
“Aqui já começou a “invernar” com
força. Tem chovido muito e as nuvens baixas dão um tom acinzentado às pessoas,
aos pensamentos e às coisas.
“Ontem, no entanto, o dia conservou-se
bom tendo começado as festas da vila com
foguetório, gaiteiros e circo, barracas de tiro, etc. À noite houve a procissão
no mar. Fomos autorizados a assistir no fim da rua ao cortejo. Trepou-se a
bancos e dali assistimos ao espectáculo bastante interessante. Os barcos todos
iluminados dos quais era lançado fogo de artifício como se abrisse sobre a agua
um chuveiro de estrelas – brancas, vermelhas, azuis, verdes- que a água
reflectia a cintilar. Por alti-falante era transmitida musica […?] por um coral
masculino. As traineiras no momento da partida fizeram ouvir as sereias que um
rebocador com voz de “baixo” acompanhava de quando em quando. Um navio de
guerra lançava “very light’s” verdes. Pela muralha do forte e nas paredes do
porto agitavam-se archotes. A procissão saiu acompanhada por uma litania
apropriada, largou o porto, deu uma volta o mar e retornou em fila indiana com
o andor iluminado por um fogacho encarnado. Mais um “bouquet” [?] de lágrimas,
novos apitos e os pescadores tendo dado forma ao misticismo que há em cada
homem saltaram em terra e foram acabar a noite nos carrosséis, tabernas e
barracas de tiro para, no pino do
inverno, rogarem pragas ao mar, às tempestade e à fome que se avizinha. É isto
a vida: fogacho breve e luminoso, misto de fé e de raiva, esperança, esperança
e muita esperança.
“Mas, confesso francamente: gostei!”.
27/9/1953:
“Estas malditas não me largam!
Metem-se pelos ouvidos, aos pares, dançam no dedos minuetes fantásticos,
cruzam-se no ar moles e pegajosas, caiem, tornam a subir, passeiam serenamente
no pescoço e, às vezes até entram! Irra! Untamo-las com gasolina, polvilhamos
D.D.T., sacudimo-las, rogamos-lhes pragas e damos-lhes assucar. Ficam sempre a
torturar-nos de manhã até à noite. Já adivinhaste, certamente, o nome de tão
antipático bichinho: Sua Excelência a D. Mosca”.
30/9/1953:
“O horário das visitas, aos sábados,
domingo e dias feriados voltou ao antigo: das 13 às 16”.
20/12/1953:
“Estou cá fora, ao sol, em mangas de
camisa. Este volte-face meteorológico vem-nos dizer que à tempestade sempre a
bonança se segue. Máxima tão antiga como o mundo, mas sempre actual.
“As traineiras vêm carregadas de peixe
e as gaivotas que durante estes dias andaram aí quase malucas de fome já se não
vêem. Minto! Está ali a coxa.
“Acidente de trabalho, talvez! Por
isso vive de esmolas, e disputa os restos às galinhas”.
23/12/1953:
“A “azáfama” aqui é imensa…logo de
manhã transcendente discussão sobre se havia de pôr já ou amanhã
o bacalhau de molho! Ultimam-se os preparativos para a compra dos grelos e
couve-flor. E afiam-se os dentes à espera do dia vinte e quatro com um fervor
só comparado ao dos nazarenos nesta mesma data há mil e tantos anos.
“Entretanto comprou-se uma cautela.
Comprou-se o “Século” também hoje. E …saiu a terminação.
“A garrafa que tu mandaste no dia dos
meus anos vai ser aberta, e com um pouco de “boa vontade”, há de fazer-se
“animada” a festa neste dia de Natal que há de ser o último em tais condições”.
26/12/1953:
“Lá passámos o Natal o melhor que se
pôde. Fez-se a “ceia” que foi constituída de bacalhau, peixe, batatas, grelos,
couve flor, rabanetes, ovos, etc.,etc. Puz a mesa que enfeitei com o azevinho
que mandaste, a garrafa de vinho, a compota, fruta, doces, etc. E, a não ser a
profunda saudade da tua ausência e a dos meus, a noite decorreu “alegremente”
num atordoamento a fingir de alegria…”.
31/12/1953:
“(…) o meu “reveillon” foi na cama.
Havia autorização para deitar à meia-noite, mas muito antes, acordado, já
estava deitado. Ouvi as doze badaladas lá fora, foguetes e nada mais. Nem as
traineiras silvaram, nem se trocaram sorrisos, nem as habituais saudações. Cada
um fechado nos seus problemas, fazia talvez um balanço do passado. Pesava o
ambiente que na prisão é sempre mais denso”.
1954
3/1/1954:
“Cada vez está mais frio. Esta noite
acordei quase gelado. Calcei dois pares de meias, enverguei o “switter” (…) e
estava quase para vestir…a camisola verde! Se isto assim continua,
transformo-me em urso branco e peço a minha transferência par o Pólo Norte.
Isto aqui é frigido. Safa!!
“É caso para perguntar como aquele
miudito curioso: ó mãmã! Por que é que os peixes não têm reumático?! Realmente,
mergulhados sempre em água…
“Pois, eu tenho-o! Sobretudo no
maldito ombro direito e nos pés. Mas uma fricções a linimento, o cachecol
dentro da camisola e a esperançada Primavera que este ano vem…em 14 de Fevº,
dá-me ânimo para resistir ”.
6/1/1954:
“Sabes o que tenho ali numa caixa de
fósforos? (…) Um “bicho doirado”! Uns companheiros que vieram de Cabo Verde
traziam na bagagem, sem saber, alguns destes insectos. São lindíssimos. Têm o
feitio dos cágados. Mas do tamanho das “joanhinhas”, e doirados. Por cima da
carapaça usam uma casca transparente absolutamente redonda. Parecem um alfinete
de gravata, em oiro. Pois meti um numa caixa de fósforos, mas fiquei indeciso:
que diabo de comida lhes havia de dar? Como é um insecto e, de uma maneira
geral, se sustentam de comida, à base de associar dei-lhe uma folha de
laranjeira, uma casca de maçã e (não digas nada à tua tia) um bocadito de pera
cristalizada!...
“Mas o sujeito, ou porque vinha
cansado da viagem, ou porque estranhou o clima, está ali há já bastantes dias…a
dormir. Encolhido, não se mexe; Parece morto. Hibernará? Aguentar-se-á até 14
de Fevereiro? Incógnita tremenda, esta, a da vida! Todos os dias de manhã vou
vê-lo. Sei que está vivo pelo brilho do “vestuário”. Quando morrer, fica branco
, segundo disse o companheiro que o trouxe. Mais uma vez se prova que os
“doirados” são só possíveis entre as vaidades da vida. A morte…é branca. Tudo
nivela!”.
17/1/1954:
“O dia hoje tem custado a passar. Está
frio. Acabou agora num rádio distante o relato do jogo Sporting-Benfica. Há uma
marcha militar que aos poucos desapareceu – e o silêncio reaparece. Que vida
estúpida esta!
“Fui buscar o sobretudo. Daqui a pouco
é jantar – e ainda são cinco horas. Passou o homem do vinho. E lembro-me
daqueles que vão buscar-lhe ao “espírito” o esquecimento das suas agruras. Não
é solução para nada…esta de beber. Mas quando à nossa frente há muralhas de
incompreensão e tristeza (nos espíritos fracos) a bebida age como soporífero.
“E com este “filosofar” o homem foi-se
embora e eu, que tencionava comprar dez tostões daquela “zurrapa” para
acompanhar o arroz fiquei a ver navios. Lucrei dez tostões!
“Bem, vou jantar. És servida?”.
31/1/1954:
“O temporal continua. Tem trovejado
imenso e agora o vento apareceu, também para a orquestração ser completa.
“As pobres das galinhas andam com as
“saias” levantadas. Algumas até voam! O “bicho doirado” hiberna na caixa de
fósforos. Quietinho, parece um faquir num número de alta habilidade. E eu
embrulhado no sobretudo, com quatro camisolas vestidas e o cachecol no pescoço,
cá me vou aguentando também para a etapa final, numa saturação progressiva e
constante. Ah! se eu me apanho aí fora –até Torres Vedras me parece um paraíso
mesmo com futebol todos os dias – de manhã, ao almoço e ao jantar”.
3/2/1954:
“No céu apareceram alguns bicharocos
negros parecidos com gaivotas, mas mais compridos e de maior envergadura.
Grande e acalorada discussão se levantou. Uns diziam que eram patos gansos (?);
outros patos bravos (!!). Ao fim e ao cabo, parece que se chamam alcatrozes.
Mergulham lá do alto em voo picado e agarram o peixe para o engolirem num
ápice. São uma espécie de “bussola” dos pescadores. Isto é: local onde eles
estejam, é certo e sabido que podem largar redes. É cardume pela certa. Lá
estivemos, de boca aberta, a olhar a evolução dos bichos. Depois passaram “em
formação” patos bravos. Estes sim! eram mesmo patos”.
14/2/1954:
“Dizer-te o quanto a tua visita me
alegrou e animou para o resto dos dias que no faltam (agora já se pode falar em
dias, 134 salvo erro…) era cair no lugar comum que já se vai tornando eterno
nos termos das minhas cartas.
“(…)
“Com o ruido das mandíbulas do João e
dos restantes companheiros a trinchar o “desgraçado” do coelho faço, por este
meio, o elogio e respectivo agradecimento a tua mãe pelo trabalho que teve na
sua confecção. Está delicioso e só é pena (no dizer dos [?]“canibais”) que ele
não tivesse tido um irmão gémeo…”.
21/2/1954:
“O livro que me ofereceste ainda está
embrulhado à espera de portador para voltar para trás. É o caso de, por
determinação superior, estra interdita a entrada, de futuro, a quaisquer
livros, desde que não sejam estrictamente
de estudo”.
1/3/1954:
“Não foi somente aí que os dias
começaram a ser maiores. Aqui idêntico “fenómeno” se registou, embora a
temperatura se mantenha instável. É a Primavera que se aproxima e já acordo de
manhã com o barulho que os pardais, malcriados e madrugadores, fazem na beira
dos telhados. Há uns rechonchudos e cheios de “sex- appeal” que passam a vida a
catar as penas (devem ser as pardocas, pelos vistos…); outros, esgalgadinhos,
azafamados, magros e macilentos transportam penugens. São os chefes de família,
os eternos afatigados mantenedores do “orçamento” e do luxo das pardocas. Os
restantes são mais novos, não querem saber da vida, perdem-se em cantorias
irritantes e desesperadas: estes são os que me acordam!”.
7/3/1954:
“Como novidades, a maior de todas, o
nascimento de cinco pintainhos cuja mãe, honestamente, lhes vai ensinando a
lutar pela vidinha. Imagina que eu, esquecido das rivalidades ancestrais, entre
nós, os bichos, - os homens por um lado,
e eles por outro – me aproximei para lhes dar migalhas. Fui recebido à bicada e
tive de bater em retirada. O “armistício” foi feito algum tempo depois graças a
um pouco de persuasão da minha parte e ao bom coração da “mamã” galinha. Os
filhotes é que, alheios a tudo, quase que vinham comer-me à mão. A eterna
pureza das “crianças”…”.
10/3/1954:
“Arrumação geral do “estabelecimento”.
(cartas, livros, recortes) jazem ali em três grandes embrulhos para no caso de
se verificar a vinda do Idalécio, ele levar dois (revistas e recortes) para o
Armazém, e o terceiro (livros e as cartas) para tu aí os guardares (…).
“A azáfama foi grande e até serviu
para arejar aqui os “aposentos”. O João com ar de chalaça foi chamar alguns
companheiros dizendo-lhes que eu tinha recebido ordem de soltura! Realmente até
parecia!”.
14/3/1954:
“Tenho sobre a “secretária” (peça
tosca feita de tábuas de caixa de sabão) a tua carta, a página literária do
Janeiro e um recorte com um artigo de Sousa Costa sobre a 9ª Sinfonia de
Beethoven. São estes os “materiais” que servirão (mal ou bem) à construção
desta carta (…).
“(…).
“Os pintainhos continuam alegres e felizes.
A mãe não os larga e já me não liga. Há na parada um traço para cá das
muralhas, paralelo proibitivo de atravessar. Pois aquela safada anda sempre do
lado de lá! Eu finjo que não percebo a
“desconsideração”.
“(…).
“Desta manhã um rádio aqui em frente.
Um “passo dobles” cheio de salero e castanholas, abre o ar com as notas
castiças e ardentes que o enformam. Com um “olé” final a artista (ora bolas,
era uma cantadeira de fado!) termina”.
15/3/1954:
“Está aqui ao lado, um companheiro a
contar diversas peripécias da sua longa vida de prisão.
“Uma: No Cabo Verde há
tartarugas. Um companheiro escreveu aos irmãos a dizer, visto eles terem
interesse em conhecer a conformação e textura dos ovos, que já tinha um
na mala para esse efeito. (Só lhe faltava oito anos para cumprir…). Quando um
dia foi à mala, por acaso tinha lá uma tartaruga com três anos!
“Outra: a carta de uma mãe para
um companheiro: Meu filho: mando-te oito selos. Vão no forro da carta
escondidos para que tos não roubem…”.
7/4/1954:
“Grassa em Peniche uma grande epidemia
de tifo. Ontem esteve cá uma inspecção sanitária e tivemos todos de levar uma
injecção. Esta que é um poucachito dolorosa, foi-nos dada por três simpáticas
enfermeiras que no fim desse serviço num gesto altamente simpático também
ofereceram maços de tabaco a todos os presos”.
18/4/1954
[Páscoa]:
“Hoje temos “tolerância de ponto”,
isto é, estamos autorizados a ir para a cama à meia noite. Também nos
concederam fazer o jantar e assim o “menú” consta de : batatas cozidas (novas) com grelos, bacalhau
e ovos. Já está quase pronto. Eu ajudei a escolher os grelos o que equivale a
dizer que durante o período de “aprendizagem” fui escolhendo o piorzinho até
que o “mestre de cerimónias” me deu um berro: eh! ah! estás a pôr o melhor fora!
E estava mesmo. Demitido das funções vim para o quarto (…).Que culpa tenho eu
de não saber distinguir um talo duro de um tenro? Ora esta! O pior é se me
calha no prato os que escolhi”.
23/5/1954:
“Não arranjas por aí uns jornalinhos e
umas revistecas para entreter a debilidade? Este “jejum” de livros é
torturante. Andamos atrás dos jornais como os coelhos atrás de cenoura”.
2/6/1954:
“Chove! Tudo cinzento à volta. Apetece dormir e só
acordar daqui a três semanas… Acendo mais um cigarro (para o diabo o cancro do
pulmão e os cientistas!...) e ponho
coberta sobre os pés nus e cheios de calos das tairocas de madeira. Cá
por cima a criada do Tenente da Guarda maravilha-nos com um fadinho daqueles
puxados à “sustância”. É aquele que diz “Talvez por amar muito a verdade/
invejo a vida livre dos pardais/ mas aperta-me em teus braços sem piedade/ que
eu juro da prisão não fugir mais…Realmente, desse modo, não me importaria de
cumprir (se os braços fossem os teus) três anos de medidas de segurança
prorrogáveis por outro tanto tempo…”.
13/6/1954:
“Já só somos três no quarto. O meu
parceiro de xadrez foi posto em liberdade. Faltavam-lhe quatro dias para acabar
o tempo. (…) faltam-me, na pior das hipóteses, quinze dias (…)”.
“A miudagem acendeu perto da muralha
uma fogueira para comemorar o Santo António. Como já estava deitado só via o
clarão e ouvia, a par do crepitar dos ramos. Estoirar algumas bombas. E na vila
havia foguetes também. Enfim! Um Santo
António muito barulhento e pouco convidativo. Estava frio e vento”.
“(…)
“São perto de 4 horas. Já vim do
recreio. Estou esfolado num braço pois cai…a jogar o oquei! Não percebo nada
daquilo e do lado em que jogo sabem logo quem perde!
“(…)
“Lá fora está o circo! Ouve-se daqui a
musica sempre igual dos discos gastos e regastos. Mas é uma companhia. E
alegra-se a gente de a ouvir. É sinal de vida. É alegria”.
23/6/1954
(última da prisão):
“Pode ser que sai [até Sábado], mas
também pode ser que não saia. Por isso te peço para continuares a escrever até
se verificar o facto.
“O Sr. Proença escreveu-me a confirmar
a oferta de me vir buscar. Devo sair à tarde (à 1 ou às 3 ou às 4). Por isso a
qualquer destas horas telefonarei ao sr. Proença e, para ti, envio um
telegrama, Como já te disse não há que fazer projectos antecipados. Se uns
saíram com vinte dias, outros com quinze, outros com oito e, ainda, com quatro
dias, pode bem ser que eu saia no próprio dia. Questão de sorte!
“E pronto. Até Sábado…ou Domingo”.
30/6/1954:
[escrita
em liberdade a partir de Coimbra]
“Aqui estou, horas passadas sobre a
minha chegada a Coimbra, a escrever-te.
“Livre das “censuras” e do esmagamento
mental a que estávamos sujeitos
“(…)
“Estou ansioso para ir embora e
abandonar esta terra que tão gratas recordações me deixou, mas em que agora sou
uma espécie de estrangeiro. Não fui visitar ninguém, salvo a mulher do João e a
Mãe. Andavam aflitos pois, ele ainda não tinha saído, mas já andam mais felizes
dado que ontem souberam da sua libertação”.
(…)
Para
passar o tempo dedicou-se a dar aulas e frequentou aulas de inglês, consultando e usando regularmente a
biblioteca organizada pelos presos, ocupando ainda parte do tempo a aperfeiçoar
a aprendizagem do Xadrez.
Ocupava também parte do seu tempo na leitura
de jornais que solicitava. Entre eles estavam a revista “Vida Mundial”, o
jornal torriense “Badaladas” e, algo surpreendentemente, os jornais “República”
e “Diário de Lisboa”, para além de “O Primeiro de Janeiro” e “O Século” e das
revistas “Ler”, “Átomo” e “Ridículos” (títulos, uns existentes no seu arquivo
pessoal, outros referidos na correspondência com Maria Helena). Apesar de os
próprios jornais estarem sujeitos à censura na origem, chegados a Peniche eram
sujeitos a nova censura, como se pode ver no exemplo em cima. Só depois de
carimbados com “Cadeia do Forte de Peniche – Censura” é que eram entregues ao
preso.
Uma das situações que ele contava foi a de
ele e outos colegas de cela, também como forma de passar o tempo, tratarem de
gaivotas feridas que apareciam no forte.
Uma
das suas ocupações era ler as muitas cartas que recebia de familiares e amigos
e responder-lhes.
(…)
Durante a prisão escreveu poemas e chegou
mesmo a editar um livro de poemas, manuscrito, que ilustrou e encadernou, para
oferecer àquela que era então sua namorada e que se tornou sua esposa.
(…)
Finalmente,
foi restituído à liberdade por oficio de 23 de Junho de 1954, saindo da prisão
no dia 26, mas sujeito a liberdade condicional por três anos”.
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