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terça-feira, 5 de maio de 2020

A VERDADEIRA "QUARENTENA" (2 anos na prisão de Peniche nos anos 50)


Para quem se queixa de dois meses de confinamento, fechado em casa, aqui recordamos outros tempos de “confinamento”, neste caso com duração de dois anos nas “instalações” de Peniche.

Pessoalmente, quando começo a desesperar, recorro a essas memórias, e logo me passa o “desespero”.

(excerto de “Em Sentido Contrário – Venerando Ferreira de Matos – um oposicionista na Província”, ed. Ephemera,  2019):


“Na prisão de Peniche (1952-1954) (3ª parte)

“Venerando Ferreira de Matos deu entrada em Caxias no dia 3 de Julho para iniciar o cumprimento de dois anos de cadeia.
Pelo que se percebe do conteúdo de uma das suas cartas enviadas daquela prisão, desconhecia então se ía cumprir a pena em Caxias ou em Peniche.
 Foi em Caxias que iniciou uma longa troca de correspondência a partir da prisão com a sua futura esposa.
Aqui publicamos alguns excertos da correspondência enviada a partir de Caxias:

2/7/1952:
“Estou na sala 3 do Reduto Norte do Forte de Caxias. É uma sala já minha conhecida pois que, antes do julgamento, estive aqui durante algum tempo.
“Foi pena ter vindo agora. Uma pessoa desabitua-se da prisão, andando, como eu andei, 5 anos em liberdade.
“Não sei se fico aqui definitivamente a cumprir pena. Talvez me passem para Peniche, ou talvez não.
“A janela da sala dá para uma cerca, na qual passeiam galinhas e uns pintainhos, já crescidos.
“Uma árvore, um arbusto amarelecido pelo Sol e quatro grades. O céu muito azul e o silêncio na sala. Um aqui escreve para a mulher; ali outro, para os pais (…).
“Também há um gato, no refeitório.
“É preto e branco e já hoje saltou para o pé de mim a dar marradinhas.
“Enfim. Vai-se passando o tempo conforme é possível”.

7/7/1952:
“É uma e meia da tarde. “Hora da Saudade”, como nós lhe chamamos. Uns e outros escrevem. O assunto escasseia e todos se queixam do mesmo.
“O “carocho”  lá anda no refeitório. Hoje houve bacalhau e dei-lhe algumas espinhas.
“Não há andorinhas, mas em contrapartida os pardais fazem uma chilreada demoníaca em cima das árvores em frente da janela. Costumamos dar-lhe migalhas de pão e, os mais novatos, quase que veem comer à nossa mão.
“Também há um cão, mas esse anda lá por fora. E um burro também que trás o pão de manhã.
“Como vês, com um pouco de imaginação, também se pode viver em relativa alegria.
“(…) Ainda não sabemos se ficamos definitivamente nesta prisão”.

Finalmente no dia 8 de Julho de 1952 foi levado, juntamente com outros presos, para a prisão de Peniche.

(…)

[8/7/1952 (1º carta de Peniche)]
“Fui transferido para Peniche - caserna 4.
“Parti de Caxias às 6 da manhã e passei aí por Torres Vedras às 9 horas e tal. Ainda vi o teu pai, mas ele não me viu.
“Aqui em Peniche há um bocado mais de Liberdade. Temos recreio todos os dias e os guardas são bastante atenciosos
“Deram-nos os regulamentos para ler: há lá um artigo que diz: pode ser autorizada visita a pessoas estranhas à família se se comprovar exercerem influência benéfica sobre a moral do preso. Isto mais ou menos. Isto quer dizer que um dia, se cá vieres, poderás avisar com antecedência, para eu pedir autorização de visita.
“(…)
“De uma janela vê-se o mar, lindo e azul, grande e esperançoso. A vista espraia-se e bebe com sofreguidão aquele espaço de liberdade.
“(…)
“A minha primeira impressão do Forte é boa. Uma coisa me sensibilizou: tratam-nos como pessoas, e com respeito. Se assim continuar, o tempo passará depressa.
“Vou tentar estudar e cumprir o programa à risca. Quando sair hei de ver se faço o exame que me falta”.

(…)

No Forte, VFM  foi ocupar a Caserna 4, mudando-se meses depois para um quarto, o 7.
Apesar das condições prisionais, o período de prisão de VFM coincidiu com uma fase menos repressiva. A situação veio a agravar-se após a fuga de Dias Lourenço, mas esta aconteceu quando o nosso biografado já se encontrava a cumprir, em liberdade, o período de um ano de liberdade condicional.
Isso explica que alivio com que encarou o ambiente em Peniche, em comparação com aquele que tinha conhecido em Caxias.
No arquivo pessoal do nosso biografado, à guarda da sua esposa Maria Helena Aspra de Matos, encontra-se uma vasta correspondência dos tempos da prisão de Peniche, recebida por VFM, entre elas pouco mais de 200 cartas que, da prisão, o próprio VFM enviou para Maria Helena.
Esse raro e vasto espólio dava, só por si, para escrever um livro, pelo valioso conteúdo que nele podemos encontrar sobre os gostos pessoais, na literatura, na musica, no cinema, nas artes, e nas esperanças que depositava quando saísse da prisão, assim como referências mais pessoais sobre a sua relação com Maria Helena, mas são os aspectos sobre a vida na prisão que aqui iremos respigar.
Convém, contudo, ter a noção de que essas cartas eram submetias à censura interna da própria prisão e nelas não se podia dizer tudo, principalmente o que fosse menos agradável. Foi o que aconteceu nalgumas referências a presos que entraram em Peniche, vindos do Tarrafal, nome que ele não menciona, falando apenas nos companheiros que vieram de “Cabo Verde”. Mesmo assim é uma documentação muito rica e inédita, da qual aqui apresentamos alguns excertos:

1952

9/7/1952:
“Da caserna onde estou (…) vê-se o mar, um mar azul e grande com dunas de areia a ladeá-lo.
“(…)
“Esteve cá a visitar-me aquele meu amigo que me deu o lagarto de borracha. Uma visita inesperada autorizada superiormente que bastante satisfação me deu. Sim, porque conto durante os próximos dois anos e tal receber poucas visitas. Meus pais, agora mais do que nunca, impossibilitado economicamente de o fazer; e tu também não o poderás fazer, limitada como está a tua acção em casa (…).
“O amigo a que faço referência, chama-se Eurico Serra. Velho companheiro de escola, confiei-lhe um pedido: que fosse aí pela livraria e te dissesse pessoalmente que tinha estado comigo.
“(…).
“Aqui deixaram entrar imediatamente os meus velhos amigos: os livros de estudo. Logo que tenha assente o espírito começarei a trabalhar no inglês e em contabilidade”.

11/7/1952:
“Estou todo queimado, nas costas e nos braços. Andei ontem, 5ª feira, todo o dia na cerca. Pusemos as camas cá fora. Almoçámos e jantámos na cerca. Somos quarenta, todos do mesmo processo. Conhecidos antigos, portanto.
“(…)
“A alvorada é às 7 da manhã. A essa hora mais ou menos, da janela da caserna vêem-se sair as traineiras para a pesca. Recolhem à noitinha. Não é nada disso. As traineiras saem à noitinha e regressam às 7 da manhã. Assim é que é.
“Está um circo em Peniche. Por volta das dez horas da noite, ouve-se nitidamente a musica do altifalante.
“Também temos um gato todo preto, lindo e luzidio, que vem cá de quando em quando. Nós fazemos um arco com os braços e o “sujeito” salta todo olímpico e desdenhoso…
“Como o correio sai só ás 9 da manhã, as cartas têm de ser escritas na véspera”.

13/7/1952:
“Comprámos um tanque e alguma roupa é lavada por nós.
“(…).
“Não te conhecia a “inclinação” para a botânica. Aqui no Forte há uma biblioteca com mil e trezentos volumes e vou procurar algum livro que verse o assunto, para ir fazendo pergunta sobre folhas e arbustos”.

16/7/1952:
“Ontem recebi uma carta do meu patrão, do sr. Proença. Entre outras coisas transcrevo uma parte que me trouxe certa satisfação: “…caso curioso : nem só os seus amigos ou simplesmente aquelas pessoas que vinham ao armazém me perguntam por si. É toda a gente. E com que interesse o fazem!
“Nunca imaginei que houvesse tanta gente em Torres, que quisesse desta maneira mostrar a sua simpatia pelo meu amigo. E sem interesse algum, como sabe. Todos lamentam e lhe tecem os maiores elogios. Prova isto que sempre merece a pena ser-se delicado, correcto e honesto.
“Como vês, querida Lena, este é o melhor atestado que o gerente de uma Empresa de tanta importância como é a U.V.A poderia passar”.

31/7/1952:
“Pusemos as camas cá fora, como é costume às 5ªs feiras. Uns leem, outros estudam, um outro lava a roupa (eu, de quando em quando, também a lavo – pois não!)
“O Sol está prestes a descobrir, e um galo de crista flamejante repete o seu cântico monótono a que outro responde.
“São 10 da manhã. Os muros que nos circundam têem úlceras que o salitre abriu; plantação rasteira num deles: Uma brecha, em um pedaço azul  de mar. O motor de um arrastão ouve-se ao longe. A “História da Civilização” em cima da minha cama, é desfolhada ao acaso por um golpe de vento, e fica numa folha que representa um camelo e as dunas de um deserto. Árabes sentados, de longas túnicas, olham, abstractos, um longe imaginário. Entre mim e eles existe uma certa correlacção : não é o camelo cansado nem as dunas onduladas. É o oásis…Eles, caminheiros perdidos, sabem da sua existência, e porfiam na sua procura; eu sei que ao sair, te tenho também! Oásis deste deserto sem carinhos que vislumbro para lá dos muros, que salta na crista das marolas e se repercute nas ondas do ar.
“(…)
“Fui informado que os Regulamentos não permitem troca de correspondência em  língua estrangeira, pelo que nos é vedado continuar com as nossas lições de inglês.
“Tal proibição é lógica. Sabido que todas as cartas são censuradas e se cada um lhe desse para escrever numa língua estrangeira não haveria possibilidade de controlar –pelos serviços de censura- toda a correspondência que é remetida”.
4/8/1952:
“Estamos tentando sincronizar o recebimento de jornais e revistas, pois dá-se o caso de receber em triplicado e duplicado diversos jornais. Por isso, se quiseres, só deves mandar o “Átomo”.
“Quanto ao “Janeiro” eu continuo a ter aqui o jornal que compramos diariamente (…). Não deves comprar o Diário de Lisboa”.

7/8/1952:
“Nem sempre o espírito está calmo, outras vezes vamos lendo um livro, um jornal, uma revista. Agora estou a acabar de ler “Maria Antonieta” de Stefan Zwieg e a seguir, uma enormidade de livros. Sem contar com o “Ler” e o “Boletim da Língua Portuguesa”, que tenho normalmente, ainda há a Página Literária do “Janeiro”, o “Átomo”, a “Vida Mundial Ilustrada”, “O Século”  e etc..E eu não descanso enquanto não “mastigo” esse noticiário todo”.

14/8/1952:
“Já está tudo deitado. E eu aproveito os últimos minutos antes do toque do silêncio para acabar a carta.
“Um já ressona! Dentro em pouco houve-se o toque do clarim e depois…silêncio. De quarto em quarto de hora o “alerta” dos guardas irrompe pelas grades…mais um dia que está prestes a passar na longa caminhada dos oitocentos que faltam”.

18/8/1952:
“Na caserna, aos domingos, fazemos uma hora de variedades. Já esgotei os poemas todos…canta-se (baixinho) canções regionais, contam-se anedotas, fazem-se adivinhas, etc. Voltámos à infância”.

28/8/1952:
“Sobre visitas, os horários são os seguintes:
“Sábados e Domingos: das 13 às 16 ½
“Outros dias : das 13 às 15.
“Avisar com antecedência o dia da visita bem como os nomes das pessoas que vêem. A autorização pode ser ou não ser dada”.

4/9/1952:
“O Sol hoje queima! A palerma da galinha comeu as pevides que estavam a secar, e o amigo que as queria mandar para a terra fartou-se de protestar. As pevides eram de melão – dum melão de Almeirim que tínhamos comido. Só ficaram meia dúzia para amostra. Fartei-me de rir, e a galinha também – certamente!
“E o tempo vai assim passando com estes pequenos incidentes, comentados com mais ou menos humor.
“Ao lado dois parceiros jogam damas, e outro lê “a Bola”.
“Aprendi a jogar xadrez, mas sou muito fraquinho. O meu primeiro jogo foi perdido com xeque-mate à 3ª jogada…
“Cá vou estudando inglês com mais ou menos vontade. Vai indo aos poucos”.

2/10/1952:
“Há, no meio da parada um poço. Por baixo, o mar atira-se de encontro às pedras inúteis e viscosas. Alguém se lembrou de experimentar pôr uma seira velha sobre a boca do poço. A corrente de ar que se forma eleva o seirão bastante alto. E…é o suficiente para que todos se ponham a vê-lo fazendo comentários  e rindo e dando – ahs!- de admiração (crianças grandes a tentar distrair o espírito das preocupações e problemas em que todos estamos mergulhados)”.

18/11/1952:
“Mudei de “morada”. Por razões que para o caso não interessam sai com outros amigos da Caserna 4. Incompatibilidades, aborrecimentos, tudo isso teve influência. Encontro-me num quarto – o nº7.
“Está visto que isto são questões  meramente particulares, o que equivale a dizer que não permito, qualquer conversa sobre o assunto. Entendido? Daqui a dois anos conversamos sobre ele
“(…)
“ O Felisberto e o pai da Graça Maria também se encontram ao pé de mim”.

26/11/1952:
“Escrevo-te de novo da Caserna 4. Por conveniência de serviço fui transferido. O Felisberto e o pai da Graça Maria também.
“Diversos motivos originaram a suspensão de regalias. Eis porque devolvi o jogo de xadrez. (…) Visitas estranhas à família e géneros alimentares (para confecionar) não entrarão por estes tempos mais próximos.(…). Creio que isto se irá consertando pouco a pouco, e tornaremos a possuir num futuro breve as regalias agora suprimidas”.

4/12/1952:
“Ontem saiu um companheiro da caserna em liberdade, após ter cumprido quatro anos! Manteve até ao fim a mesma calma e confiança. Tinha uma filha da tua idade que estava para casar. Não o fazia enquanto o pai não saísse. Agora, por certo, o fará”.

8/12/1952:
“Agora uma notícia: desisti do alemão! Pensando melhor acho que me bastante difícil continuar. Aquilo é bastante difícil. Já fiquei com umas luzes sobre o assunto, não tendo portanto perdido o tempo. Acho que devo dedicar-me mais ao inglês e ao francês, pois o que interessa são os resultados práticos”.

15/12/1952:
“Aqui tenho a tua carta de 6ª feira bem como a encomenda que mandaste (…). Vinha a “Imagem” e um jornal francês. A Imagem recebi-a, mas o jornal ficou retido na Secretaria, pois em consequência de uma “ordem de serviço” está proibida a entrada de jornais estrangeiros”.

1953

1/1/1953:
“Ontem foi-nos permitido ter a luz acesa até à 1 hora da manhã. Fizemos uma ceia que constou de cozido à portuguesa (muito bem feito, por sinal) pão, vinho e fruta.
“Fez-se uma festa (reveillon!) a que não faltou um acto de variedades. Lá fizemos uns versos com o perfil de cada um dos presentes. Intitulamo-los de “concurso aonde está o gato?”. No meio da versalhada havia uma quadra dedicada ao gato, nosso “companheiro” já indispensável.
“Quem adivinhou ganhou um riquíssimo prémio: o gato embrulhado e metido num cesto…
“Como vês também passámos a nossa noite de fim de ano. O gato é que não gostou!”.

18/1/1953:
“Pedi, de novo, transferência para os quartos.
“Motivos? – perguntarás. Olha Lena! Nervos, aborrecimentos, fadiga também. Isto aqui é mais calmo, melhor portanto para se estudar, para quem, como eu, está firmemente disposto a cumprir integralmente a pena em que fui condenado. A minha passagem para aqui não altera em nada o meu comportamento moral em relação ao pedido de liberdade condicional feito há tempos.
“(…)
“Ás vezes refugio-me a ler e a construir com meia dúzia de palavras “poemas” grandiloquentes. Leio-os  e depois rasgo-os.
“Eu sei que não gostas que eu rasgue essas “obras primas”. Mas eu prometo juntá-los futuramente, Sim?”.

5/2/1953:
“Temos um novo “hóspede”! desengonçado, baixo e gingão parece um velho marinheiro de outras eras. Cuá, cuá, cuácuá e ei-lo atrás das galinhas, a refilar com os galos, a alvoraçar o galinheiro inteiro. Hoje fizemos-lhe uma represa para ele tomar banho. Lá andou a chapinhar”.

28/3/1953:
“Contráriamente o que julgas as cartas que vêm com as encomendas não são entregues logo, mas sim no dia seguinte, pois elas têm de ser censuradas.
“(…)
“Às vezes ouço um rádio, ao longe. Este mês, porém, tenho aqui no andar de cima a criada que trata dos miúdos ao Tenente da Guarda que está a par de toda as canções da voga. E por sinal, além de bom ouvido tem uma voz muito regular. Canta “a mala” (olha a mala, olha a malinha de mão) e que diz que não é dela é do “hidrobião”…O miudito mais pequeno, está a palrar à janela: blébléblé.
“Passa um gato e um companheiro com uma bilha na mão. A noite vem descendo aos poucos, e as estrelas já deviam ter feito a “toillete”. Vão aparecendo aos poucos também, aos ramos, formando figuras geométricas, cruzes, quadriláteros, reticências. As “ursas” lá vêm (a grande e a pequena) fazer companhia a Vénus que, nem por não ser estrela, deixa de ter um brilho tão lindo como os olhos de uma “saloia” torreense dos nossos conhecimentos”.

5/4/1953:
“Aqui, a vida, como deves calcular, é comer, dormir, estudar, ler e escrever…e sonhar. Passo a vida deitado em cima da cama a devorar livro sobre livro e até os suplementos infantis do Século O “Pim-Pam-Pum”, marcham na falta de melhor”.
8/4/1953:
“Tenho, agora, por vizinha uma garota de cerca de oito anos, muito engraçada. Como não me pode falar (eu sou preso e ela é uma menina livre) faz-me caretas e foge muito envergonhada. É uma simpatia de miúda”.

12/4/1953:
“Cá vou entretendo os lazeres cortando os jornais e páginas literárias. Vou fazer um ficheiro literário e outro sobre Arte.
“Há quem coleccione selos, caixas de fósforos, programas de cinema, etc. eu colecciono bio-bibliografias e críticas.
“É um passatempo barato e instrutivo”.

15/4/1953:
“De vez em quando, ouço música. Há pouco ouvi a “Lagoa Adormecida” pela Orquestra de Filadélfia. Andava eu na parada. Um barquito a remos cansava-se contra as ondas; outro, de velas vermelhas, passava ao largo; uma pomba branca passou a rasar o mar –tão azul, que gostava que visses! De sombrio, no meio de tanta beleza, só as muralhas, altas e grossas e uma sentinela a passear. Doidejando, dois pardalitos briguentos e, alagando o quadro descoloridamente pintado, as ondas em “crescendo” arrancadas aos oitenta violinos da orquestra.
“Depois – e isto é quase sempre assim- a voz estúpida do locutor a anunciar pasta dentífrica “Pepsodente”! Como remate…não fica nada mal!”.

20/4/1953:
“O meu companheiro de quarto vai-se embora. Ficou tonto de todo quando lho disseram. Uma pessoa que esteja de lado a apreciar farta-se de rir. E eu ri-me com certa saudade. O meu dia também há-de chegar um dia e outro se rirá também”.

29/4/1953:
“Hoje está um dia de sol. As moscas passeiam nas paredes e por cima de mim esfregam. É que amanhã vem gente nova ocupar o Forte. Vai-se embora a Maria de Lourdes –a tal miúda que me fazia cartas. Atirou-me uma pedrita (diz que tem muitas e de muitas cores) redonda e acastanhada.
“É uma recordação! É uma catita morena e bonita com duas tranças e dois laços na ponta. Enfim. Enquanto houver sol, crianças e flores, “isto” custa menos a passar! O pior é quando chove. Dá cabo da vontade, enerva, o tempo arrasta-se penosamente, e a saudade de ti e de tudo quanto aí ficou fora é maior.
“Vamos lá ver se com os dias mais claros e quentes, vou reorganizar a minha vida de estudo e…trabalhos manuais, Com o resto da lã tentei remendar as meias, mas o tecido está todo “comido” e só arranjei a picar os dedos. Uma lâmpada de 25 W (se Edison fosse vivo encorajava-me!) serve de ovo”.

17/5/1953:
“Estive hoje com um pardalito na mão. É dos novos. Os pais andam a ensiná-los a voar e eles –catrapus!- caiem cá em baixo. O resultado das evoluções  é quase sempre desastroso. Quando não caiem e morrem da queda (hoje morreram dois) a meia dúzia dos gatos existentes por aqui papam-nos. Outros mais espertos fogem para os quartos. Foi o que aconteceu ao herói deste relato. Dei-lhe pão, não quis. Amuou (…). Deitei-o para cima do telhado e ele lá foi contar a aventura, certamente, aos irmãos que o esperavam. Alguns amigos mais antigos aqui contam que, muitas vezes, os habituavam e ficavam domesticados. Se apanhar um que queira compartilhar as migalhas comigo, “educo-o” e mando-te, sim?”.

20/5/1953:
“Embora os minutos pareçam anos, o tempo rola. Já hoje são 20; dentro de dias verga-se mais uma folha ao calendário. Outro mês, outro arranco e a meta tão desejada aproxima-se tal como de um navio ronceiro que primeiro avista entre brumas a linha negra da terra; depois, amontoado de casas, o cais, e entre centenas de pessoas uma cara desejada e grito de satisfação há tanto reprimido evola-se do peito, sobe e explode num abraço sem fim. Mais de metade da “viagem” está feita.
“(…)
“Hoje o dia tem estado maravilhoso. Os pardais numa azafama doida vão e vêm trazendo a “bicada” para os filhotes. A bicada é ora uma lagarta, ora uma mosca ou um grão qualquer apanhado no chão e, quantas vezes, disputado às comadres galinhas que ficam olhando estupidamente a rapidez da “manobra”. Também um casal de melros fez na parte de fora da muralha o ninho. Lá andam eles lançando de  quando em quando o seu assobio característico para depois mergulharem à cata de bicharocos com que sustentam os filhos. Invejo-os! Voam livres de todas estas misérias humanas, de todas as dores e arrelias e mostram vaidosos e felizes as asas aos presos que cá em baixo, marcham silenciosos. E recordo Junqueiro. …Ó Natureza! A Bíblia verdadeira és tu! Quantas lições – de concórdia, paz e justiça – no são dadas por ela?”.

24/5/1953:
“os livros que mandaste aqui os tenho. Os três de Romain Rolland fazem parte de uma colecção que deve continuar (…). Não mandes outros livros até eu pedir. As revistas e os jornais agradece-os à Dª. Judith. As flores também chegaram, mas, coitadinhas, secas. No entanto, com um pouco de água reanimaram-se e aqui estão a dar um ar primaveril ao quarto (…).
“Ando, como já te disse a fazer um “ficheiro” com os recortes das páginas literárias. Cada 50 fichas corresponde a um tubo de cola Cisne. Já gastei um e agora preciso de mais alguns.
“(…)
“Isto aqui é uma espécie de Jardim Zoológico.
“Tinha numa caixa um ultimo e derradeiro queijo, daqueles pequenos, e há dias, preparado o pão e a disposição fui por ele e…vi uma casca apenas.
“Mistério, prestidigitação, bruxaria? Mais uma volta e salta um rato de dentro da caixa.z.z.z.z…e lá foi ele para um buraco. “Deixa entrar –monologuei- que vais pagá-las, bandido! Fui buscar um alguidar, uma chave da lata de sardinhas, um cordel e um pedaço de pão. Armei a ratoeira e esperei que de noite o “sujeito” fosse ao pão. E foi. Foi, comeu o pão e saiu como se nada houvesse acontecido. Que mariola. Hoje vou repetir a armadilha. Se não cair, e para evitar a “sociedade” com tão falido sujeito dou-lhe todos os dias uma ração de miolo de pão com a condição de não tornar a comer queijo”.

31/5/1953:
“Os jornais…os livros…tabaco, etc. Chegou tudo bem. Também vinha um embrulho com assucar e café da parte do Sr. Proença. Peço-te o seguinte: que previnas o Sr. Proença que o café já há bastante tempo está proibido de entrar”.

29/6/1953:
“Sabes o que são os “dois patinhos”? Os “dois patinhos” na gíria da rapaziada é o dia 22. Com vês parecem esses simpáticos bicudinhos a deslizar…e assim chegado ao dia 22 consideramos o mês passado!
“O querer tem muita força; e os dia parecem passar assim mais depressa com estas infantilidades e tolices que têm um fundo [de] superstição.
“Portanto, já sabes! Chegado aos “dois patinhos” risca um mês ao calendário, valeu?”.

1/7/1953:
“Agora já estamos na descida. O alto da “montanha” foi atingido, finalmente! Já falta menos de um ano. Eis a grande realidade: Isto é uma espécie de Everest em miniatura. Também a subida foi penosa e quantas vezes, foi preciso levar à boca “tubos de oxigénio” para poder sobreviver à falta de ar…agora é a descer. E como para baixo “todos os santos ajudam” o resto da “viagem” custará menos”.

12/7/1953:
“Quando estava na caserna (…) tudo quanto viesse era para um monte comum. (…) Aqui, o caso é diferente. Cada um tem o seu próprio conceito de vida e de uma maneira geral, talvez até por uma questão de orgulho, não quer sobrecarregar o companheiro”.

15/7/1953:
“Já sai algumas vezes para tratar dos dentes. Amanhã, 5ª feira, é o ultimo tratamento. Da ultima vez que sai vi na varanda de um colégio ou escola comercial o professor de contabilidade que esteve aí em Torres durante muito tempo. Conhece-lo por certo. Olhou para mim, muito admirado, e eu, na falta de melhor, sorrir. Sorri e continuei. No retorno, ainda mal refeito da primeira surpresa, dei de caras com o irmão da Celsa, chefe ou sub-chefe da secção de Finanças aí de Torres. Ia com a Esposa e deu-me as boas tardes gentilmente. (…) O mundo é pequeno. Toda a gente se conhece  e se encontra.
“x
“Na sala de espera muitas pessoas. Ao canto uma rapariga nova fazendo tricot. Um casaquinho amarelo, muito pequenino, tomando forma à espera do miúdo prestes  nascer. Um camponês queixando-se da vida; e um pescador a relatar os dias que ficou sem dormir por causa duns dentes cariados. Eu a um canto, guardado à vista, a servir de pasto aos olhos curiosos duma miúda muito esperta que, de vez em quando, me lançava uns olhares medrosos. Regresso. E de novo a sensação dos portões que se fecham, da vida que ficou lá fora, dos dias que passam e jamais se podem recuperar. Estou desejoso de acabar estas saídas que só trazem tristeza, pensamentos lúgubres, e uma dolorosa saudade de ti, do emprego, desse movimento de vila de primeira classe a fingir de cidade, do meu quarto modesto e da minha vida toda destroçada”.

22/7/1953:
“Já há dias me perguntavas se eu estava zangado com o Raimundo [Porta]. Tenho que dizer-te o seguinte: Quando o Raimundo veio de Caxias foi, como sabes, para a Caserna 4. Fomos, durante o tempo que ali estivemos, amigos, companheiros ligados por idênticos percalços e ainda mais por conhecermos e vivermos o ambiente torriense. Dele tenho uma óptima impressão e creio que ele de mim não as tem piores. Um dia surgiu, porém um facto que ia modificar estruturalmente o “ambiente” da nossa prisão. Foi preciso concordar ou discordar de uma determinada proposta que envolvia a subordinação a uma directriz politica da qual eu, desde 1947, me tinha afastado. Fui para um lado e ele foi para outro. A primeira conclusão tirada foi esta: em politica não há amigos. E assim, quebrou-se essa corrente de simpatia que nos ligava. Ele hoje está na caserna 2 e eu no quarto 7. Quer dizer: não nos falamos. Só seria possível um reatamento de amizade se eu passasse para a caserna ou ele viesse para os quartos. Como nenhum de nós quer recuar (eu por minha parte mesmo que cá estivesse perpetuamente não o faria voluntariamente) mantemo-nos à distância sem nos hostilizarmos mas também sem mendigarmos uma amizade que afinal nunca existiu verdadeiramente (…). Politicamente deixei de existir quer para o Raimundo quer para os outros. Eu já não tenho lugar no seu mundo. Passei à “reforma” voluntaria e conscientemente”.

13/9/1953:
“Ando a ler as obras completas de Eça de Queiroz: Já li o “Primo Bazílio”, “A Relíquia” e, prosseguindo, estou quase a findar a “Correspondência de Fradique Mendes”. Depois irão “Os Maias” e outras se seguirão.
“À espera de vez estão duas, obras monumentais, : “A Riqueza e a Conquista da Terra” que é quasi um compêndio de Económico-Geográfico e a “Fanga”de Alves Redol. Assim se vai passando o tempo de “papo” para o ar enquanto os dias como dromedários neste deserto avançarem vagarosamente…”.

20/9/1953:
“Aqui já começou a “invernar” com força. Tem chovido muito e as nuvens baixas dão um tom acinzentado às pessoas, aos pensamentos e às coisas.
“Ontem, no entanto, o dia conservou-se bom tendo começado as festas  da vila com foguetório, gaiteiros e circo, barracas de tiro, etc. À noite houve a procissão no mar. Fomos autorizados a assistir no fim da rua ao cortejo. Trepou-se a bancos e dali assistimos ao espectáculo bastante interessante. Os barcos todos iluminados dos quais era lançado fogo de artifício como se abrisse sobre a agua um chuveiro de estrelas – brancas, vermelhas, azuis, verdes- que a água reflectia a cintilar. Por alti-falante era transmitida musica […?] por um coral masculino. As traineiras no momento da partida fizeram ouvir as sereias que um rebocador com voz de “baixo” acompanhava de quando em quando. Um navio de guerra lançava “very light’s” verdes. Pela muralha do forte e nas paredes do porto agitavam-se archotes. A procissão saiu acompanhada por uma litania apropriada, largou o porto, deu uma volta o mar e retornou em fila indiana com o andor iluminado por um fogacho encarnado. Mais um “bouquet” [?] de lágrimas, novos apitos e os pescadores tendo dado forma ao misticismo que há em cada homem saltaram em terra e foram acabar a noite nos carrosséis, tabernas e barracas de tiro para, no  pino do inverno, rogarem pragas ao mar, às tempestade e à fome que se avizinha. É isto a vida: fogacho breve e luminoso, misto de fé e de raiva, esperança, esperança e muita esperança.
“Mas, confesso francamente: gostei!”.

27/9/1953:
“Estas malditas não me largam! Metem-se pelos ouvidos, aos pares, dançam no dedos minuetes fantásticos, cruzam-se no ar moles e pegajosas, caiem, tornam a subir, passeiam serenamente no pescoço e, às vezes até entram! Irra! Untamo-las com gasolina, polvilhamos D.D.T., sacudimo-las, rogamos-lhes pragas e damos-lhes assucar. Ficam sempre a torturar-nos de manhã até à noite. Já adivinhaste, certamente, o nome de tão antipático bichinho: Sua Excelência a D. Mosca”.

30/9/1953:
“O horário das visitas, aos sábados, domingo e dias feriados voltou ao antigo: das 13 às 16”.

20/12/1953:
“Estou cá fora, ao sol, em mangas de camisa. Este volte-face meteorológico vem-nos dizer que à tempestade sempre a bonança se segue. Máxima tão antiga como o mundo, mas sempre actual.
“As traineiras vêm carregadas de peixe e as gaivotas que durante estes dias andaram aí quase malucas de fome já se não vêem. Minto! Está ali a coxa.
“Acidente de trabalho, talvez! Por isso vive de esmolas, e disputa os restos às galinhas”.

23/12/1953:
“A “azáfama” aqui é imensa…logo de manhã transcendente discussão sobre se havia de pôr ou amanhã o bacalhau de molho! Ultimam-se os preparativos para a compra dos grelos e couve-flor. E afiam-se os dentes à espera do dia vinte e quatro com um fervor só comparado ao dos nazarenos nesta mesma data há mil e tantos anos.
“Entretanto comprou-se uma cautela. Comprou-se o “Século” também hoje. E …saiu a terminação.
“A garrafa que tu mandaste no dia dos meus anos vai ser aberta, e com um pouco de “boa vontade”, há de fazer-se “animada” a festa neste dia de Natal que há de ser o último em tais condições”.

26/12/1953:
“Lá passámos o Natal o melhor que se pôde. Fez-se a “ceia” que foi constituída de bacalhau, peixe, batatas, grelos, couve flor, rabanetes, ovos, etc.,etc. Puz a mesa que enfeitei com o azevinho que mandaste, a garrafa de vinho, a compota, fruta, doces, etc. E, a não ser a profunda saudade da tua ausência e a dos meus, a noite decorreu “alegremente” num atordoamento a fingir de alegria…”.

31/12/1953:
“(…) o meu “reveillon” foi na cama. Havia autorização para deitar à meia-noite, mas muito antes, acordado, já estava deitado. Ouvi as doze badaladas lá fora, foguetes e nada mais. Nem as traineiras silvaram, nem se trocaram sorrisos, nem as habituais saudações. Cada um fechado nos seus problemas, fazia talvez um balanço do passado. Pesava o ambiente que na prisão é sempre mais denso”.

1954

3/1/1954:
“Cada vez está mais frio. Esta noite acordei quase gelado. Calcei dois pares de meias, enverguei o “switter” (…) e estava quase para vestir…a camisola verde! Se isto assim continua, transformo-me em urso branco e peço a minha transferência par o Pólo Norte. Isto aqui é frigido. Safa!!
“É caso para perguntar como aquele miudito curioso: ó mãmã! Por que é que os peixes não têm reumático?! Realmente, mergulhados sempre em água…
“Pois, eu tenho-o! Sobretudo no maldito ombro direito e nos pés. Mas uma fricções a linimento, o cachecol dentro da camisola e a esperançada Primavera que este ano vem…em 14 de Fevº, dá-me ânimo para resistir ”.

6/1/1954:
“Sabes o que tenho ali numa caixa de fósforos? (…) Um “bicho doirado”! Uns companheiros que vieram de Cabo Verde traziam na bagagem, sem saber, alguns destes insectos. São lindíssimos. Têm o feitio dos cágados. Mas do tamanho das “joanhinhas”, e doirados. Por cima da carapaça usam uma casca transparente absolutamente redonda. Parecem um alfinete de gravata, em oiro. Pois meti um numa caixa de fósforos, mas fiquei indeciso: que diabo de comida lhes havia de dar? Como é um insecto e, de uma maneira geral, se sustentam de comida, à base de associar dei-lhe uma folha de laranjeira, uma casca de maçã e (não digas nada à tua tia) um bocadito de pera cristalizada!...
“Mas o sujeito, ou porque vinha cansado da viagem, ou porque estranhou o clima, está ali há já bastantes dias…a dormir. Encolhido, não se mexe; Parece morto. Hibernará? Aguentar-se-á até 14 de Fevereiro? Incógnita tremenda, esta, a da vida! Todos os dias de manhã vou vê-lo. Sei que está vivo pelo brilho do “vestuário”. Quando morrer, fica branco , segundo disse o companheiro que o trouxe. Mais uma vez se prova que os “doirados” são só possíveis entre as vaidades da vida. A morte…é branca. Tudo nivela!”.

17/1/1954:
“O dia hoje tem custado a passar. Está frio. Acabou agora num rádio distante o relato do jogo Sporting-Benfica. Há uma marcha militar que aos poucos desapareceu – e o silêncio reaparece. Que vida estúpida esta!
“Fui buscar o sobretudo. Daqui a pouco é jantar – e ainda são cinco horas. Passou o homem do vinho. E lembro-me daqueles que vão buscar-lhe ao “espírito” o esquecimento das suas agruras. Não é solução para nada…esta de beber. Mas quando à nossa frente há muralhas de incompreensão e tristeza (nos espíritos fracos) a bebida age como soporífero.
“E com este “filosofar” o homem foi-se embora e eu, que tencionava comprar dez tostões daquela “zurrapa” para acompanhar o arroz fiquei a ver navios. Lucrei dez tostões!
“Bem, vou jantar. És servida?”.

31/1/1954:
“O temporal continua. Tem trovejado imenso e agora o vento apareceu, também para a orquestração ser completa.
“As pobres das galinhas andam com as “saias” levantadas. Algumas até voam! O “bicho doirado” hiberna na caixa de fósforos. Quietinho, parece um faquir num número de alta habilidade. E eu embrulhado no sobretudo, com quatro camisolas vestidas e o cachecol no pescoço, cá me vou aguentando também para a etapa final, numa saturação progressiva e constante. Ah! se eu me apanho aí fora –até Torres Vedras me parece um paraíso mesmo com futebol todos os dias – de manhã, ao almoço e ao jantar”.

3/2/1954:
“No céu apareceram alguns bicharocos negros parecidos com gaivotas, mas mais compridos e de maior envergadura. Grande e acalorada discussão se levantou. Uns diziam que eram patos gansos (?); outros patos bravos (!!). Ao fim e ao cabo, parece que se chamam alcatrozes. Mergulham lá do alto em voo picado e agarram o peixe para o engolirem num ápice. São uma espécie de “bussola” dos pescadores. Isto é: local onde eles estejam, é certo e sabido que podem largar redes. É cardume pela certa. Lá estivemos, de boca aberta, a olhar a evolução dos bichos. Depois passaram “em formação” patos bravos. Estes sim! eram mesmo patos”.

14/2/1954:
“Dizer-te o quanto a tua visita me alegrou e animou para o resto dos dias que no faltam (agora já se pode falar em dias, 134 salvo erro…) era cair no lugar comum que já se vai tornando eterno nos termos das minhas cartas.
“(…)
“Com o ruido das mandíbulas do João e dos restantes companheiros a trinchar o “desgraçado” do coelho faço, por este meio, o elogio e respectivo agradecimento a tua mãe pelo trabalho que teve na sua confecção. Está delicioso e só é pena (no dizer dos [?]“canibais”) que ele não tivesse tido um irmão gémeo…”.

21/2/1954:
“O livro que me ofereceste ainda está embrulhado à espera de portador para voltar para trás. É o caso de, por determinação superior, estra interdita a entrada, de futuro, a quaisquer livros, desde que não sejam estrictamente  de estudo”.

1/3/1954:
“Não foi somente aí que os dias começaram a ser maiores. Aqui idêntico “fenómeno” se registou, embora a temperatura se mantenha instável. É a Primavera que se aproxima e já acordo de manhã com o barulho que os pardais, malcriados e madrugadores, fazem na beira dos telhados. Há uns rechonchudos e cheios de “sex- appeal” que passam a vida a catar as penas (devem ser as pardocas, pelos vistos…); outros, esgalgadinhos, azafamados, magros e macilentos transportam penugens. São os chefes de família, os eternos afatigados mantenedores do “orçamento” e do luxo das pardocas. Os restantes são mais novos, não querem saber da vida, perdem-se em cantorias irritantes e desesperadas: estes são os que me acordam!”.

7/3/1954:
“Como novidades, a maior de todas, o nascimento de cinco pintainhos cuja mãe, honestamente, lhes vai ensinando a lutar pela vidinha. Imagina que eu, esquecido das rivalidades ancestrais, entre nós, os bichos,  - os homens por um lado, e eles por outro – me aproximei para lhes dar migalhas. Fui recebido à bicada e tive de bater em retirada. O “armistício” foi feito algum tempo depois graças a um pouco de persuasão da minha parte e ao bom coração da “mamã” galinha. Os filhotes é que, alheios a tudo, quase que vinham comer-me à mão. A eterna pureza das “crianças”…”.

10/3/1954:
“Arrumação geral do “estabelecimento”. (cartas, livros, recortes) jazem ali em três grandes embrulhos para no caso de se verificar a vinda do Idalécio, ele levar dois (revistas e recortes) para o Armazém, e o terceiro (livros e as cartas) para tu aí os guardares (…).
“A azáfama foi grande e até serviu para arejar aqui os “aposentos”. O João com ar de chalaça foi chamar alguns companheiros dizendo-lhes que eu tinha recebido ordem de soltura! Realmente até parecia!”.

14/3/1954:
“Tenho sobre a “secretária” (peça tosca feita de tábuas de caixa de sabão) a tua carta, a página literária do Janeiro e um recorte com um artigo de Sousa Costa sobre a 9ª Sinfonia de Beethoven. São estes os “materiais” que servirão (mal ou bem) à construção desta carta (…).
“(…).
“Os pintainhos continuam alegres e felizes. A mãe não os larga e já me não liga. Há na parada um traço para cá das muralhas, paralelo proibitivo de atravessar. Pois aquela safada anda sempre do lado de lá! Eu finjo que não percebo a  “desconsideração”.
“(…).
“Desta manhã um rádio aqui em frente. Um “passo dobles” cheio de salero e castanholas, abre o ar com as notas castiças e ardentes que o enformam. Com um “olé” final a artista (ora bolas, era uma cantadeira de fado!) termina”.

15/3/1954:
“Está aqui ao lado, um companheiro a contar diversas peripécias da sua longa vida de prisão.
Uma: No Cabo Verde há tartarugas. Um companheiro escreveu aos irmãos a dizer, visto eles terem interesse em conhecer a conformação e textura dos ovos, que já tinha um na mala para esse efeito. (Só lhe faltava oito anos para cumprir…). Quando um dia foi à mala, por acaso tinha lá uma tartaruga com três anos!
Outra: a carta de uma mãe para um companheiro: Meu filho: mando-te oito selos. Vão no forro da carta escondidos para que tos não roubem…”.

7/4/1954:
“Grassa em Peniche uma grande epidemia de tifo. Ontem esteve cá uma inspecção sanitária e tivemos todos de levar uma injecção. Esta que é um poucachito dolorosa, foi-nos dada por três simpáticas enfermeiras que no fim desse serviço num gesto altamente simpático também ofereceram maços de tabaco a todos os presos”.

18/4/1954 [Páscoa]:
“Hoje temos “tolerância de ponto”, isto é, estamos autorizados a ir para a cama à meia noite. Também nos concederam fazer o jantar e assim o “menú” consta de :  batatas cozidas (novas) com grelos, bacalhau e ovos. Já está quase pronto. Eu ajudei a escolher os grelos o que equivale a dizer que durante o período de “aprendizagem” fui escolhendo o piorzinho até que o “mestre de cerimónias” me deu um berro: eh! ah! estás a pôr o melhor fora! E estava mesmo. Demitido das funções vim para o quarto (…).Que culpa tenho eu de não saber distinguir um talo duro de um tenro? Ora esta! O pior é se me calha no prato os que escolhi”.

23/5/1954:
“Não arranjas por aí uns jornalinhos e umas revistecas para entreter a debilidade? Este “jejum” de livros é torturante. Andamos atrás dos jornais como os coelhos atrás de cenoura”.

2/6/1954:
“Chove!  Tudo cinzento à volta. Apetece dormir e só acordar daqui a três semanas… Acendo mais um cigarro (para o diabo o cancro do pulmão e os cientistas!...) e ponho  coberta sobre os pés nus e cheios de calos das tairocas de madeira. Cá por cima a criada do Tenente da Guarda maravilha-nos com um fadinho daqueles puxados à “sustância”. É aquele que diz “Talvez por amar muito a verdade/ invejo a vida livre dos pardais/ mas aperta-me em teus braços sem piedade/ que eu juro da prisão não fugir mais…Realmente, desse modo, não me importaria de cumprir (se os braços fossem os teus) três anos de medidas de segurança prorrogáveis por outro tanto tempo…”.

13/6/1954:
“Já só somos três no quarto. O meu parceiro de xadrez foi posto em liberdade. Faltavam-lhe quatro dias para acabar o tempo. (…) faltam-me, na pior das hipóteses, quinze dias (…)”.
“A miudagem acendeu perto da muralha uma fogueira para comemorar o Santo António. Como já estava deitado só via o clarão e ouvia, a par do crepitar dos ramos. Estoirar algumas bombas. E na vila havia foguetes também.  Enfim! Um Santo António muito barulhento e pouco convidativo. Estava frio e vento”.
“(…)
“São perto de 4 horas. Já vim do recreio. Estou esfolado num braço pois cai…a jogar o oquei! Não percebo nada daquilo e do lado em que jogo sabem logo quem perde!
“(…)
“Lá fora está o circo! Ouve-se daqui a musica sempre igual dos discos gastos e regastos. Mas é uma companhia. E alegra-se a gente de a ouvir. É sinal de vida. É alegria”.

23/6/1954 (última da prisão):
“Pode ser que sai [até Sábado], mas também pode ser que não saia. Por isso te peço para continuares a escrever até se verificar o facto.
“O Sr. Proença escreveu-me a confirmar a oferta de me vir buscar. Devo sair à tarde (à 1 ou às 3 ou às 4). Por isso a qualquer destas horas telefonarei ao sr. Proença e, para ti, envio um telegrama, Como já te disse não há que fazer projectos antecipados. Se uns saíram com vinte dias, outros com quinze, outros com oito e, ainda, com quatro dias, pode bem ser que eu saia no próprio dia. Questão de sorte!
“E pronto. Até Sábado…ou Domingo”.

30/6/1954:
[escrita em liberdade a partir de Coimbra]
“Aqui estou, horas passadas sobre a minha chegada a Coimbra, a escrever-te.
“Livre das “censuras” e do esmagamento mental a que estávamos sujeitos
“(…)
“Estou ansioso para ir embora e abandonar esta terra que tão gratas recordações me deixou, mas em que agora sou uma espécie de estrangeiro. Não fui visitar ninguém, salvo a mulher do João e a Mãe. Andavam aflitos pois, ele ainda não tinha saído, mas já andam mais felizes dado que ontem souberam da sua libertação”.

(…)

Para passar o tempo dedicou-se a dar aulas e frequentou aulas de inglês, consultando e usando regularmente a biblioteca organizada pelos presos, ocupando ainda parte do tempo a aperfeiçoar a aprendizagem do Xadrez.
Ocupava também parte do seu tempo na leitura de jornais que solicitava. Entre eles estavam a revista “Vida Mundial”, o jornal torriense “Badaladas” e, algo surpreendentemente, os jornais “República” e “Diário de Lisboa”, para além de “O Primeiro de Janeiro” e “O Século” e das revistas “Ler”, “Átomo” e “Ridículos” (títulos, uns existentes no seu arquivo pessoal, outros referidos na correspondência com Maria Helena). Apesar de os próprios jornais estarem sujeitos à censura na origem, chegados a Peniche eram sujeitos a nova censura, como se pode ver no exemplo em cima. Só depois de carimbados com “Cadeia do Forte de Peniche – Censura” é que eram entregues ao preso.
Uma das situações que ele contava foi a de ele e outos colegas de cela, também como forma de passar o tempo, tratarem de gaivotas feridas que apareciam no forte.
Uma das suas ocupações era ler as muitas cartas que recebia de familiares e amigos e responder-lhes.

(…)

Durante a prisão escreveu poemas e chegou mesmo a editar um livro de poemas, manuscrito, que ilustrou e encadernou, para oferecer àquela que era então sua namorada e que se tornou sua esposa.

(…)
Finalmente, foi restituído à liberdade por oficio de 23 de Junho de 1954, saindo da prisão no dia 26, mas sujeito a liberdade condicional por três anos”.






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