Nos anos 90, depois da derrota do comunismo real, e com o fim da Guerra
Fria, parecia que a democracia e a liberdade iam vencer por todo o mundo.
Recorde-se que na década anterior se tinham desmoronado as ditaduras
militares na américa latina e o apartheid na África do Sul.
Era o “fim da história” de Fukuyama.
Também por essa altura estudava-se afincadamente o fascismo, chegando a
maior parte dos investigadores à conclusão que este regime estava datado
histórica e geograficamente.
O fascismo puro só tinha existido em Itália.
Estabeleciam-se as diferenças entre os vários regimes que até aí tinham
sido “misturados” sob a designação de “fascistas”: o Estado Novo português, o
governo de Vichy em França e o franquismo espanhol, entre outros, não
encaixavam no modelo fascista dos investigadores .
Mesmo o nazismo era uma excrescência totalitária do fascismo.
Já em artigo anterior abordámos algumas das características do fascismo
apontadas por esses estudos.
Não deixa de ser, contudo, curioso, que, encontrando-se tantas
diferenças entre esses regimes, nunca ninguém tenha feito o mesmo exercício para distinguir os regimes
e os movimentos comunistas, quer do ponto de vista cronológico, quer do ponto
de vista sincrónico.
É que, na realidade, existem tantas diferenças, em termos práticos, em
termos de violência ou em termos económicos e sociais, entre o Estado Novo português, o nazismo
alemão ou o fascismo italiano, como entre a União Soviética de Lenin, de Stalin
ou Gorbachev, ou entre Cuba e a Coreia do Norte, ou entre o chamado
eurocomunismo e o Partido Comunista Português…
Mas a preocupação em fazer esta distinção não terá motivado da mesma
maneira os investigadores dessa altura.
Era mais importante retirar certos regimes e certos partidos da família
fascista, do que fazer o mesmo exercício em relação aos regimes ditos
comunistas.
Não questiono a seriedade desses estudos. Apenas noto a diferença de
prioridades.
Claro que pode haver uma situação que explica essas opções.
A maior parte dos regimes que se inspiraram, com maior ou menos
convicção, no modelo do fascismo italiano, raramente se designaram ou
classificaram como fascistas, ao contrário do que aconteceu com os regimes
comunistas ou com os vários movimentos comunistas, mesmo quando se combatiam
entre si.
A maior parte dos regimes autoritários de direita e os futuros partidos
de extrema-direita, principalmente depois da 2ª Guerra, não se gabavam, pelo
menos publicamente, de admirarem Mussolini ou Hitler, a não ser em casos muito
marginais.
Pelo contrário, apesar de todas as suas diferenças, tão grandes ou
maiores do que as que existiram ou existem entre regimes e partidos da direita
autoritária e antiliberal, os regimes do “comunismo real” e os partidos assim
designados, todos invocavam a mesma origem comum, mesmo que aplicada ou
interpretada de forma diferente, como mínimo denominador comum, em Engels, Marx
e Lenine.
Nos anos 90 o fascismo era considerado assunto histórico encerrado e irrepetível,
ao contrário do “comunismo real” que continuou a sobreviver até hoje na China,
no Vietname, na Coreia do Norte e em Cuba, e em Partidos Comunistas que
continuam a ter um peso significativo em muitos países democráticos.
Contudo, houve um autor que remou contra a maré.
Esse autor foi Umberto Eco que em 1997 publicou um ensaio intitulado “O
fascismo eterno”, publicado e traduzido em Portugal com o título “Como
reconhecer o fascismo”.
Para Umberto o fascismo não estava morto e enterrado, ao contrário do
nazismo.
Começava por desmentir que o fascismo, ao contrário do nazismo, tivesse
uma filosofia própria, mas apenas “retórica”.
Demonstrou que o fascismo italiano não era fácil de classificar ou de
caracterizar, pois, ao contrário do modelo coerente em que muito o tentavam encaixar,
era um movimento pragmático, muitas vezes contraditório e incoerente.
Ora, essa capacidade camaleónica do fascismo, permitiu a sua
sobrevivência e a capacidade de reaparecer em qualquer outro lado ou época sob
outras “vestes”.
A partir destas premissas, Umberto Eco identifica um conjunto de características
do “novo fascismo”, que ele apelida de “Ur-fascismo”, avisando, contudo, que
essas “características não poderão ser ordenadas num único sistema: muitas
contradizem-se reciprocamente, e são típicas de outras formas de despotismo ou
fanatismo. Mas basta que esteja presente uma delas para fazer coagular uma
nebulosa fascista”.
Hoje, esse ensaio, com mais de vinte anos, veio revelar-se mais actual
do que nunca, quando assistimos ao renascimento de regimes, partidos e
retóricas de extrema direita, pondo em causa a existência das democracias
liberais que se julgavam eternas e em expansão naquela década.
Aliás, o próprio termo de “democracia liberal” é defensivo, como se a
democracia não fosse liberal.
O que é um facto é que a maioria desses movimentos substituíram a rua e
os golpes militares pela campanha em redes socias e pela participação democrática e, onde
chegam ao poder, como na Hungria, por exemplo, criaram um novo conceito, o de “democracia
ileberal”, ou seja, manipulam as regras democráticas, mantendo a fachada de actos eleitorais para se legitimarem
e legitimarem o controle sobre a justiça e a comunicação social.
Vemos isso também na Turquia, na Russia, na Polónia, nas Filipinas…
Quais as são características do “Ur-fascismo” apontadas por Umberto
Eco?
Fica para próximo artigo.
Sem comentários:
Enviar um comentário