Esta carta foi publicada no jornal Público de 5ª feira, 10
de janeiro de 2013. A Profª Teresa Beleza é irmã de Leonor Beleza e Miguel
Beleza.
CARTA A MINHA MÃE SOBRE O SNS E OUTRAS COISAS EM PORTUGAL
por Teresa Pizarro Beleza*
“Longas são as estradas da Síria, curta é a piedade dos
homens. Vendo-me tão pobre e tão só, os cães viriam ladrar-me às portas dos
casais. Decerto Jesus morreu; e com ele morreu, uma vez mais, toda a esperança
dos tristes”.
Eça de Queiroz, O Suave Milagre (adaptado).
“Julgo que nos tornamos verdadeiramente adultas no dia em
que perdemos a nossa mãe. Ou talvez quando nos tornamos nós próprias mães, não
tenho bem a certeza. Uma coisa eu sei, ou julgo saber: a única coisa que verdadeiramente
não podemos deixar de ensinar aos nossos Filhos é a compaixão. E esse é o
sentimento que me parece mais notoriamente longínquo da vida pública portuguesa
e europeia neste tempo cinzento em que o homo homini lupus volta a ser o mote
declarado da economia, da política e, suponho que não tarda muito, do próprio
direito. A “mão invisível” de Adam Smith (A Riqueza das Nações) está cada vez
mais trôpega, ou mais ineficiente, ou se calhar cada vez mais escorregadia,
quem sabe se untada. A desigualdade social e a desigualdade económica aumentam
na razão directa da progressiva privatização do património público, seja este a
companhia aérea nacional, vulgo TAP, e a correspectiva prestadora de serviços
aeroportuários, dita ANA, o banco do Estado (Caixa Geral de Depósitos), os
transportes (depois da Rodoviária Nacional, a CP), ou seja, o fornecimento de
serviços e bens essenciais como a electricidade (EDP, REN), a água (Águas de
Portugal), a televisão (RTP), … ou a Saúde.
“Uma das maiores transformações sociais, demográficas e
económicas em Portugal depois da Revolução de Abril de 1974 decorreu da criação
do Serviço Nacional de Saúde (SNS), por Lei da Assembleia da República, em
Setembro de 1979 (Lei nº 56/79, de 15 de Setembro, sendo ministro da Saúde António
Arnault).
“O Art. 64º da Constituição da República, apesar de muito
alterado face à versão originária de 1976 – desde logo, o SNS passou a ser
apenas tendencialmente gratuito (“tendo em conta as condições económicas e
sociais dos cidadãos”), coisa que hoje talvez já nem se possa dizer que seja,
face à subida em flecha do valor das taxas moderadoras, cada vez mais
imoderadas -, continua a garantir a todos os cidadãos e cidadãs “o direito à
protecção da saúde”, “realizado através de um serviço nacional de saúde
universal e geral”.
“Muito recentemente, declarações de algumas pessoas com
responsabilidades políticas ou institucionais desencadearam a discussão em
torno da subsistência e orientação do SNS, designadamente no que respeita ao
controlo na utilização de recursos inevitavelmente escassos e finitos. As
despesas com a Saúde tornaram-se um peso incontrolável, claramente mal
distribuído e pior aproveitado. Portugal é um país muito pouco eficiente em
matéria de políticas públicas, em geral, e com muito baixa capacidade de
melhorar de forma significativa a performance nestes campos, em grande parte,
certamente, dada a ainda muito baixa qualificação da sua população que, apesar
de ter evoluído de um estado de analfabetismo bastante generalizado para uma
iliteracia selectiva e localizada, ainda está muito longe de ser um país
europeu avançado nesta matéria.
“Resolvi escrever a minha Mãe. Ela partiu há dois anos, em
Outubro de 2010. Mas talvez o seu espírito, que, como diria Jorge Luís Borges,
está sempre a meu lado (A Posse do Ontem, em Os Conjurados), me consiga
inspirar a pensar melhor sobre o assunto.
“Aqui vai o meu texto para ela:
"Mãe, sabes que agora em Portugal mandam uns senhores
que estão a dar cabo do Serviço Nacional de Saúde? E que dizem que é por causa
de uma tal de troika, que agora manda neles? Lembras-te da "Lei
Arnaut", que, segundo ele mesmo diz, tu redigiste, depois de muito
pensares e estudares sobre o assunto, com a seriedade e o empenho que punhas em
tudo o que fazias?
“Lembras-te das nossas conversas sobre a necessidade de toda
a gente em Portugal ter acesso a cuidados de saúde básicos de boa qualidade e
de como essa possibilidade fizera em poucos anos baixar drasticamente a
mortalidade materna e infantil, flagelos nacionais antigos, como uma das coisas
boas que se tornaram realidade depois de 1974 e com a restauração da
democracia?
“Lembras-te de quando eu te dizia que eras tão mais
socialista do que "eles", os do Partido Socialista, e tu te zangavas
porque não era essa a tua imagem e a tua crença?
“E quando eu te dizia que o ministro António Arnaut era
maçon e tu não acreditavas, porque ele era (e é) um homem bom - e para ti a
Maçonaria era a encarnação do Diabo...
“Mãe, tu, que te dizias e julgavas convictamente monárquica,
católica, miguelista, jurista cartesiana (isso era o que eu te dizia e que
penso que eras, também), que conhecias a Bíblia e Teilhard de Chardin como
ninguém e me ensinaste que Deus criara o homem e a mulher à Sua imagem, quando
pronunciou o fiat, porque assim se diz no Génesis...
“Tu que dizias que o problema dos economistas era que não
tinham aprendido latim... e me tiravas as dúvidas de português e outras coisas,
quando me não mandavas ir ao dicionário, como agora eu mando o meu Filho...
“Tu que foste o meu "Google", às vezes renitente,
quando este ainda não existia... Sabes que agora manda em Portugal gente
ignorante e pacóvia, que nem se lembra já de como se vivia na pobreza e na
doença, que julga que o Estado se deve retirar de tudo, incluindo da Saúde, e
confunde a absoluta e premente necessidade de controlar e conter o imenso
desperdício com a ideia de fechar portas, urgências claramente úteis social e
geograficamente...
“Sabes que fecharam o Serviço de Urgência e o excelente
Serviço de Cardiologia do Hospital Curry Cabral sem sequer prevenirem ou
consultarem o seu chefe? Onde irão agora todas aquelas pessoas tão claramente
pobres, vulneráveis e humildes que tantas vezes lá encontrei e que não pareciam
capazes de aprenderem outro caminho, outro destino, de encontrarem outros
dedicados e pacientes "ouvidores"?
“Sabes que um ministro qualquer disse que o edifício da
Maternidade Alfredo da Costa não tinha qualquer interesse urbanístico ou
arquitectónico, para além de condenar ao abate essa unidade de saúde, com
limitações já evidentes, mas que tão importante foi para tanta gente humilde
ter os seus filhos em segurança? Será mesmo que não a poderiam
"refundar", como agora se diz? Ou quererão construir um condomínio
fechado, luxuoso e kitsch, no meio de uma das minhas, das nossas cidades?
“Lembras-te de me ires buscar à MAC quando nasceu o meu
Filho e de como te contei da imensa dedicação do pessoal médico e de enfermagem
e da clara sobre-representação de parturientes de origem social modesta,
imigrantes, ciganas, ou simplesmente pobres?
“Sabes que há muita gente que pensa que a iniciativa
privada, incontrolada e à solta, é que vai salvar Portugal da bancarrota, e que
ignora o sentido das palavras solidariedade, justiça, igualdade, compaixão?
“Sabes, Mãe, eu lembro-me de ver pessoas que partiram de
Portugal para o mundo em busca de trabalho e rendimento a viver em
"casas" feitas de bocados de camioneta, de restos de madeira, de
cartão e outros improváveis e etéreos materiais, emigrantes portugueses que
foram parar ao bidonville em St Denis, nos arredores de Paris, num Inverno em
que a temperatura desceu a 20 graus Celsius abaixo de zero (1970). Nas
"paredes", havia toda a sorte de inscrições contra a guerra colonial
e contra o regime que então reinava em Portugal.
“O padre Zé, o nosso amigo da Mission Catholique Portugaise
que me acompanhava e me quis mostrar o bairro, proibiu-me de falar português e
de sair do carro enquanto ali passávamos... e aqui em Portugal eu vi tanta
miséria envergonhada, homens de chapéu na mão a pedir emprego, mulheres e
crianças a pedir esmola, apesar de todas as leis e medidas que o Estado Novo
produziu para as esconder, como já fizera a Primeira República.
“A pobreza e a vadiagem não se eliminam com Mitras e medidas
de segurança, mas com produção e distribuição de riqueza e de justiça social.
Com a promoção da igualdade e da solidariedade, como manda a Constituição.
“E a Saúde, Mãe, que vão fazer dela? Da saúde dos pobres,
dos velhos, das crianças, dos que não têm nem podem ter seguros de saúde de
luxo, porque não têm dinheiro, porque já não têm idade, ou porque não têm
saúde?
“E as crianças, Mãe? Vão de novo morrer antes do tempo
porque o parto foi solitário ou mal assistido, porque a saúde materno-infantil
passou a ser de novo um bem reservado a alguns privilegiados, ou porque a
"selecção natural" voltará a equilibrar a demografia em Portugal,
recolhidas as mulheres a suas casas, desempregadas e de novo domesticadas, e
perdida de novo a possibilidade de controlo sobre a sua própria fertilidade?
“O planeamento familiar, que tu tão bem explicaste que
deveria segundo a lei seguir a autonomia que o Código Civil reconhece na
capacidade natural dos adolescentes - tu, católica, jurista, supostamente
conservadora (assim te pensavas, às vezes?)...
“Sabes que aqui há tempos ouvi uma jurista ignorante dizer
em público que só aos 18 anos os jovens poderiam ir sozinhos a uma consulta de
planeamento familiar, quando atingissem a maioridade, sem autorização de pai ou
mãe? Ai, minha Mãe, como a ignorância é perigosa... Será que nos espera um
qualquer Ceausescu ou equivalente, dado o progressivo estrangulamento político
e social a que a necessidade económica e a cegueira política nos estão levando?
“Os traços fascizantes que são visíveis na repressão da
liberdade de expressão e de manifestação, em tudo tão contrários à Constituição
da República, serão só impressão de uns "maníacos de esquerda", como
dizem umas pessoas que há tão pouco tempo garantiam que essa coisa de esquerda
e direita era coisa do passado?
“Mas as crianças são o futuro, Mãe, que será deste país sem
elas, sem a sua saúde e sem a sua educação, sem o seu bem-estar, sem a sua
alegria? Eu lembro-me tão bem dos miúdos descalços e ranhosos nas ruas da minha
infância... e da luta legal, tão recente ainda, quem sabe se perdida, contra o
trabalho clandestino, ilegal e infame das crianças a coserem sapatos em casa, a
faltarem à escola, a ajudarem as famílias, ainda há tão pouco tempo, ou dos
miuditos com carregos e encargos maiores que eles, à semelhança das mulheres da
carqueja a subirem aquela rampa infame que Helder Pacheco, o poeta-guia do
nosso Porto, tão bem descreve...
"Que quem já é pecador sofra tormentos, enfim! Mas as
crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem
assim?!..."
“Mãe, se agora cá voltasses, ao mundo dos vivos, acho que
terias uma desilusão terrível. Melhor que não vejas o que estão fazendo do
nosso pobre país.
“Da tua Filha, com muita saudade,
Maria Teresa".
Ericeira, Portugal, Europa, dia 31 de Dezembro de 2012.
* Professora de Direito Penal, directora da Faculdade de
Direito da Universidade Nova de Lisboa. tpb@fd.unl.p
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