Luaty e a vergonha Angola-Portugal
Por Alexandra Lucas Coelho, in Público, 18 de Outubro de 2015
“1. Não sei como José Eduardo dos Santos dorme à noite. Não sei como
Isabel dos Santos dorme à noite. Não sei como milhares de homens e mulheres de
negócios dormem à noite. Não sei como o Governo português dorme à noite. E o
PCP podia arranjar melhor companhia do que o governo português nesta matéria, a
greve de fome de Luaty Beirão. Milhares de comunistas portugueses presos,
torturados e mortos em nome da liberdade merecem muito mais.
“2. Não há número que diga tanto sobre um país como a taxa de
mortalidade infantil. Angola tem a pior taxa de mortalidade infantil do mundo:
167 crianças em 1000, o que quer dizer que uma em cada seis crianças angolanas
morre antes dos cinco anos (Unicef). Quando a taxa de mortalidade infantil de
um país é alta, isso é uma urgência. Mas quando ela é a mais alta do mundo num
país dominado por uma oligarquia milionária isso é uma espécie de crime por
negligência na forma continuada. E não faltam dados contundentes sobre o statu
quo em que essa espécie de crime acontece, por exemplo, o Índice de
Desenvolvimento Humano da ONU (calculado a partir da esperança de vida, taxas
de escolaridade e rendimento nacional bruto). No último relatório, que abrange
187 países, Angola está em 149.º lugar. Ou seja: em Angola, segundo maior
produtor de petróleo da África subsariana, oficialmente uma democracia
presidencialista com a qual Portugal tem estreitíssimos laços económicos,
vive-se pior do que em quase todo o planeta, incluindo países em guerra,
ditaduras, catástrofes. E a estes três números (mortalidade infantil,
desenvolvimento humano, produção de petróleo) podemos acrescentar mais dois
para completar a mão: o Presidente e líder do MPLA, José Eduardo dos Santos,
está há 36 anos no poder; e a sua filha Isabel dos Santos é a mulher mais rica
de África, com 3,2 mil milhões de dólares.
“3. Foi neste país que, a 20 de Junho passado, a polícia do regime
deteve sem mandato 15 jovens que estavam numa casa de Luanda a discutir a
situação política. Tinham dois livros com eles, Da Ditadura à Democracia, de
Gene Shar, e Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura —
Filosofia política da libertação para Angola, do jornalista angolano Domingos
da Cruz. Os 15, incluindo Domingos, foram acusados de preparar um golpe de
Estado. Ao fim de quase quatro meses, continuam presos, sem culpa formada e sem
julgamento. Vários fizeram greves de fome, um deles, Luaty Beirão, não
desistiu. No dia em que escrevo, quinta-feira, 15 de Outubro, Luaty está sem
comer há 25 dias. Terá perdido cerca de 20 quilos, não consegue beber água, foi
posto a soro no hospital-prisão, tudo isto enquanto a polícia do regime
reprimia vigílias de solidariedade e protesto. Luaty é um activista com
experiência, foi preso logo a 7 de Março de 2011, dia-símbolo para o
levantamento dos jovens angolanos inspirados pela Primavera Árabe. Entre 2011 e
2015, viu o regime desdobrar-se em raptos, espancamentos, tentativas de
suborno, ameaças a familiares, perseguições políticas, tudo para tentar
combater activistas. A posição de Luaty é clara: manter-se em greve enquanto os
15 estiverem presos, contra a lei, mesmo a lei de Angola. Visto que Angola,
descontando censura, prisões arbitrárias, raptos, espancamentos, suborno,
ameaças, perseguições e repressão, é oficialmente uma democracia. Os
observadores internacionais nem têm achado prioritário observar as eleições
angolanas. Como Luaty diz, na entrevista que o PÚBLICO transcreveu e
disponibilizou em vídeo, primaram pela ausência.
“4. Foi bom ter visto, esta quarta-feira, em Lisboa, centenas de
pessoas que fizeram o contrário, estiveram lá, na vigília convocada pela
Amnistia Internacional, com a cara de Luaty, e dos outros 14 (Osvaldo Caholo,
Afonso Matias, Albano Bingobingo, Nelson Dibango, Sedrick de Carvalho, Domingos
da Cruz, Inocêncio António de Brito, Arante Kivuvu, José Gomes Hata, Manuel
Baptista Chivonde Nito Alves, Fernando Tomás, Nuno Álvaro Dala, Benedito
Jeremias e Chiconda ‘Samussuku’). Bom ter visto lá angolanos como Rafael
Marques de Morais, José Eduardo Agualusa, ou Kalaf, a cabo-verdiana Mayra Andrade,
e tantas dezenas tão jovens ou muito mais do que aqueles que estão presos. Era
uma pequena multidão com música, palavras e imagens. Mas não sei onde estavam,
nem o que pensam, angolanos que estiveram tanto tempo presos pelo que pensaram
e escreveram, como Luandino Vieira. Gostava de saber.
“5. Enquanto Luaty, cidadão angolano e português, pode morrer a
qualquer momento nestas circunstâncias, o Governo português tem, naturalmente,
questões a debater, equacionar e mesmo ponderar, na sua relação com o Estado
democrático de Angola, e portanto, até à hora de fecho desta crónica, que se
saiba, fez exactamente zero. “Considera o Governo de Portugal a possibilidade
de apresentar uma queixa junto do Conselho de Direitos Humanos das Nações
Unidas e de todas as demais instâncias internacionais competentes devido à
violação de direitos humanos essenciais por parte do Estado angolano neste caso
concreto afectando um cidadão português?”, foi a pergunta de Pedro Filipe
Soares, deputado do Bloco de Esquerda. Através do ministro dos Negócios
Estrangeiros, Rui Machete, a resposta do Governo português, até à hora de fecho
desta crónica, era: “Nós estamos a acompanhar a situação do ponto de vista
humanitário, visto tratar-se de uma matéria interna de Angola no que diz respeito
ao problema da averiguação se existe ou não existe uma infracção de carácter
penal, e nisso não nos imiscuímos.”
“6. A declaração de Machete foi feita segunda-feira. Terça, o Bloco de
Esquerda apresentou na Assembleia Municipal de Lisboa este voto: “1. Exprimir
solidariedade a Luaty Beirão, sua família e amigos; 2. Exprimir solidariedade
para com todas pessoas detidas no dia 20 de junho; 3. Recomendar a imediata
libertação das pessoas detidas no dia 20 de junho; 4. Remeter este voto aos
órgãos de soberania e aos grupos parlamentares representados na Assembleia da
República; 5. Remeter este voto à Embaixada de Angola em Portugal.” Pois, o PCP
votou contra. E não só votou contra, como resolveu contrapor um voto que diz
assim: “Apelar às autoridades angolanas, no quadro do respeito da sua soberania
e ordem jurídico-constitucional, a consideração da situação humanitária de
Luaty Beirão.” Ricardo Robles, do Bloco, argumentou: “Não é uma situação de
cariz humanitário. É uma questão política. Ele é um preso político e está em
risco de vida. Um preso político é um preso político. Em Angola, na China, em
Cuba, nos Estados Unidos, na Turquia ou na Palestina. É um preso político e
devemos respeitá-lo, porque houve tantos presos políticos no Partido Comunista
Português e tanto respeito que eles merecem.” Mas o efeito, no PCP, foi
exactamente zero, em consonância com a posição do Governo PSD-CDS. Para um
partido que tanto preza a coerência, que desonra à sua própria história, a
milhares e milhares de comunistas que deram tudo pela liberdade.
“7. Uma das coisas que Luaty diz no vídeo que o PÚBLICO pôs online esta
semana é que um filho não é responsável pelo pai. Ele, Luaty Beirão, é filho de
João Beirão (entretanto falecido), um próximo de José Eduardo dos Santos a ponto
de ter dirigido a poderosa Fundação Eduardo dos Santos. Luaty tomou outro
caminho; depois de estudar em França e Inglaterra, onde se tornou politicamente
activo em manifestações e ocupações, fez uma viagem a pé de Lisboa a Luanda,
com dois quilos de frutos secos e cem euros no bolso; conheceu parte de África,
lentamente e sem rede; e de volta a casa manteve uma intervenção constante como
rapper e activista. O extremo oposto do que aconteceu com a verdadeira filha do
regime que é Isabel dos Santos, dez anos mais velha. Não só Isabel parece
dormir bem com todos aqueles números sobre Angola, como a sua fortuna tem
crescido inversamente às estatísticas dos miseráveis. E, como a Forbes detalhou
numa investigação conjunta de Kerry A. Dolan, uma veterana da revista
americana, e o incansável jornalista e activista angolano Rafael Marques de
Morais, a presidência do pai favoreceu o império da filha. Isabel tem fama de
trabalhar sete dias por semana para não deixar em mãos alheias o património
conquistado, é um talentoso caso de estudo, alguém disse mesmo que Harvard
devia estudar o talento dela. Também está bem posicionada em Portugal: Galp,
BPI, NOS, BIC. Cada um faz da sua vida o que faz. O melhor que posso esperar é
que esta noite Isabel dos Santos não durma assim tão bem e José Eduardo dos
Santos menos ainda, e quando esta crónica sair Luaty esteja em liberdade, com
todos”.
Sem comentários:
Enviar um comentário