O jornalismo de sarjeta não pára de perseguir gregos em filas no multibanco, de tal maneira que já alguém escreveu numa parede junto duma dessas caixas : "agora preocupam-se com as filas nos bancos, mas preocuparam-se com as filas no centro de emprego ou na sopa dos pobres?".
Os mesmos que fecham os olhos aos atentados diários contra a democracia e a liberdade do governo húngaro, cuja actuação faz de Putin um "democrata dos sete custados", ou que fecharam os olhos à forma como o poder foi tomado na Ucrânia por arruaceiros neo-fascistas, andam agora preocupados com o "atentado aos direitos humanos" do referendo grego (veja-se a posição do Conselho Europeu).
É pena que não se tenham lembrado dos "direitos humanos" quando a austeridade lançou na miséria milhões de europeus.
Uma das virtudes da Europa do pós guerra foi saber fazer a fusão entre direitos democráticos formais e direitos sociais, o contrário do que faz a actual geração de líderes europeus.
Paulo Granjo, no artigo reproduzido em baixo, vem-nos recordar que o "governo da Grécia foi eleito com o mandato de renegociar a dívida, de acabar com a espiral austeritária sobre os mais fracos, com o indigno diktat dos mangas-de-alpaca da troika e com o estado de calamidade social, de implantar medidas de dinamização económica.
“Tal como, se quisermos, Pedro Passos Coelho foi eleito com o mandato de não aumentar os impostos e de não cortar pensões e salários.
“Só que o governo da Grécia não é feito de gente capaz de vir, no dia seguinte, dizer que afinal é tudo ao contrário do que se comprometeram e que até querem ir mais longe do que as exigências da troika.
“Para o governo grego, tal como supostamente para qualquer pessoa de bem, aceitar um acordo que põe em causa uma parte daquilo para que foram eleitos – mesmo sendo esse acordo muito menos mau do que lhes queriam inicialmente impor – requer que os eleitores se pronunciem explicitamente".
Não é assim de admirar que os tais defensores da "democracia e da liberdade" e dos "direitos humanos" já comecem a fazer cair a máscara, defendendo agora um "governo de tecnocratas" para por "ordem" na Grécia ( acabei de ouvir esta "opinião" na rádio...foi dita pelo presidente do Parlamento Europeu , o alemão "social-democrata" (!!!!) Schultz....um grande democrata!!!).
Percebe-se o "espírito democrático" dessa gente: democracia sim, mas desde que continue tudo na mesma.
Dá-lhes com democracia!
Por Paulo Granjo
In Público de 02/07/2015
“Depois de o FMI recusar o plano grego (por uma parte do equilíbrio
orçamental ser pago pelas maiores e mais lucrativas empresas e pelos salários
mais altos, em vez de por mais cortes aos reformados e aumentos de preços) e
depois de o Eurogrupo ter feito alegre coro com essas firmes exigências de mais
austeridade para quem está na miséria ou à beira dela, o governo grego anunciou
um referendo acerca do pacote de exigências que as instituições europeias
pretendem impor, para desbloquear o financiamento ao país.
“Em Bruxelas, caiu o Carmo e a Trindade – ou o que quer que seja que
por lá exista de equivalente.
“Não obstante, o recurso ao referendo como arma política e instrumento
legitimador nada tem de novidade.
“Para desespero das esquerdas francesas, Charles de Gaulle recorreu
extensivamente a ele quando as coisas lhe ficavam mais adversas.
“Mais perto de nós, em 2008, o presidente boliviano Evo Morales
enfrentou um ataque em regra às suas políticas progressistas, que incluía a
ameaça bem real (e com implícito beneplácito estado-unidense) de uma secessão
dos estados dominadas pela oposição, a par de apelos explícitos e continuados a
um golpe militar.
“Em vez de optar pelos anteriormente habituais endurecimentos de
posições e escaladas securitárias, fez referendar o seu lugar, o do
vice-presidente e os dos também eleitos governadores estaduais,
pró-governamentais e oposicionistas. Foi confirmado no cargo com mais 8% do que
tinha sido eleito, sendo também reconduzidos o vice-presidente e 6 dos 8 governadores
provinciais (seus apoiantes, ou da oposição); nos outros 2 casos, houve novas
eleições.
“A legitimidade democrática saiu reforçada, os Estados Unidos chamaram
de volta os seus especialistas e entusiastas insurreccionais, as forças mais
conservadoras submeteram-se ao jogo democrático e deixou de se falar de golpes
de estado, ou de partir o país em dois.
“Nada permite afirmar que as consequências da convocação deste
referendo na Grécia venham a ser tão positivas. E nada permite afirmar que o
não venham a ser.
“O que não lhe falta, certamente, é lógica, espírito democrático,
dignidade e oportunidade.
“O governo da Grécia foi eleito com o mandato de renegociar a dívida,
de acabar com a espiral austeritária sobre os mais fracos, com o indigno diktat
dos mangas-de-alpaca da troika e com o estado de calamidade social, de
implantar medidas de dinamização económica.
“Tal como, se quisermos, Pedro Passos Coelho foi eleito com o mandato
de não aumentar os impostos e de não cortar pensões e salários.
“Só que o governo da Grécia não é feito de gente capaz de vir, no dia
seguinte, dizer que afinal é tudo ao contrário do que se comprometeram e que
até querem ir mais longe do que as exigências da troika.
“Para o governo grego, tal como supostamente para qualquer pessoa de
bem, aceitar um acordo que põe em causa uma parte daquilo para que foram
eleitos – mesmo sendo esse acordo muito menos mau do que lhes queriam
inicialmente impor – requer que os eleitores se pronunciem explicitamente.
“A decisão de não aceitar esse acordo, num quadro que é já diferente do
das eleições, requer por seu lado um apoio popular maioritário que a legitime
democraticamente perante os cidadãos que dela discordem, perante os potenciais
entusiastas de pronunciamentos militares e perante os impositores de
inevitabilidades, ao mesmo tempo que reforça a posição governamental e
nacional, na busca de alternativas.
“Para além, se quisermos, dessa ideia caída em desuso numa Europa de
supremacias nacionais e financeiras: a de que, em estados democráticos, as
opções mais decisivas devem ser tomadas democraticamente.
“Um outro aspecto fulcral é que os impasses e tentativas de diktat a
que temos vindo a assistir, por parte das instituições europeias e do FMI,
pouco têm a ver com economia, mas antes com política.
“Têm em parte a ver – como o demonstra a justificação do FMI para
recusar a última proposta grega, até aí rotulada como "uma boa base de
trabalho" – com a continuidade de imposição, a países que estão
financeiramente fragilizados, de um quadro específico de políticas económicas e
sociais, independentemente daquilo que queiram os seus governos ou os seus
povos.
“(E aqui, é curioso verificar que, se Marx escreveu metafórica e
panfletariamente que os governos são "o conselho de administração delegado
da burguesia", temos hoje banqueiros a exigir mandar – e mandando – nos
governos.).
“Mas têm sobretudo a ver com a tentativa de tornar impossível a
existência de governos, países e povos que se recusem a acatar, submissos, a
destruição da sua economia e coesão social, em nome de ideologias e interesses
que não escolheram nem escolhem.
“Têm sobretudo a ver com tornar impossível a vida ao governo grego,
procurando criar uma lose-lose situation que o destrua e afaste veleidades
semelhantes noutros países: inviabilizar as condições para a prossecução mesmo
que parcial do seu programa (por sensato que ele seja), de forma a que ou se
submeta, perdendo a credibilidade popular, ou crie uma situação provisoriamente
caótica na tentativa de não se submeter, perdendo apoio para as soluções que
preconiza.
“Para além do topete de dar a palavra ao povo, aquilo em que a
convocação do referendo grego mais irrita chancelarias, ministérios das
finanças e eurocratas é o facto de, através dele, o governo grego sair da
armadilha.
“Uma eventual aceitação das agora mitigadas exigência euro-éfeémisticas
não seria uma traição, mas uma opção popular, tal como a sua recusa não seria
uma caturrice de radicais, mas uma decisão partilhada pelo país.
“Para além disso, o anúncio de referendo já não pode levar ao derrube
de governos a partir do exterior – ao contrário do que aconteceu, há anos atrás
e por exigência troikista, com o governo eleito do Pasok – e, pelo contrário,
reforça a posição negocial da Grécia a nível mundial, ao demonstrar que não se
pretende submeter e que está disposta a correr os riscos inerentes.
“Isto porque, ao contrário do que têm insistido em imaginar os governos
europeus e os comentadores encartados, a solução do problema da Grécia não está
restringida às fronteiras do Euro, ou mesmo da União Europeia.
“Mesmo com os cofres pouco cheios, seria para a Rússia uma pechincha
ajudar a Grécia, ganhando influência sobre um país fulcral da NATO que lhe pode
dar acesso ao Mediterrâneo, e sobre um país da União Europeia que pode, por
exemplo, vetar sanções da União sobre outros países.
“Os interesses dos Estados Unidos não permitem, por essas razões, que a
Grécia seja empurrada pela UE para o colo da Rússia.
“Para além disso, em termos económicos, também não permitem que
braços-de-ferro de supremacia política e ideológica abram uma brecha no Euro de
consequências imprevisíveis, mas que quase certamente incluiriam fortes
mudanças cambiais e efeitos recessivos na Europa, com impacto na própria
economia norte-americana e nos mercados financeiros mundiais.
“Só se estranha, então, que só agora Obama faça saber que insta Merkel
a assegurar as condições para que a Grécia não saia do Euro e para que a dívida
grega seja restruturada. Mas entre o anúncio do referendo e a divulgação desse
telefonema, a relação não será certamente casual.
“Também a China se não pode dar ao luxo de uma cotação do Euro
turbulenta, ou de recessão num continente fulcral para as suas exportações e,
consequentemente, para a sua economia.
“E também ela, sábado à noite, veio pedir uma solução estável que
viabilize a manutenção da Grécia no Euro, ao mesmo tempo que se oferecia para,
se necessário, sacar do livro de cheques.
“Se não tivesse (como tem) as virtudes da dignidade, democraticidade,
coerência e oportunidade, a convocação do referendo na Grécia teria pelo menos
uma outra virtude: a de tornar evidente a miopia política, a auto-negação
estratégica e o narcísico bruxelocentrismo com que todo este problema tem sido
tratado, desde o início".
Antropólogo
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