“DÍVIDAS
José Luís Peixoto
“Quanto devemos aos bombeiros voluntários? Enquanto estamos aqui,
preocupados com os nossos assuntos, a tratarmos daquilo que nos diz respeito,
eles estão disponíveis para serem arrancados da sua vida e colocados à frente
de chamas, incêndios que não foram ateados por eles, a arrasarem propriedades
que não lhes pertencem. É domingo à tarde, por exemplo, e, de repente, estão
num carro a alta velocidade, arrastam uma sirene desesperada ao longo do
caminho. Encontram aflição quando chegam, desenrolam uma mangueira áspera e
respiram golfadas de fumo que lhes mascarra as faces. Passam horas assim e, no
final de tudo, a sua recompensa será assistir à desolação de um campo negro e,
talvez, beber de um pacote de leite oferecido por alguém.
“Há bombeiros voluntários que
morrem durante esse trabalho. Quanto devemos à sua memória? Quanto devemos às
famílias desses bombeiros mortos? Agora, onde estiverem, sentem a sua ausência
em todos os dias. São pais, filhos, maridos, mulheres, irmãos que imaginam como
seria a vida daqueles que perderam, imaginam-nos com idades que nunca chegarão
a ter.
“Quanto devemos aos técnicos do
INEM? Quanto devemos aos enfermeiros? Quanto devemos às pessoas que recebem os
doentes nas urgências dos hospitais? São poucos os que têm paciência de
preencher os papéis, mas os papéis precisam de ser preenchidos.
“Quanto devemos aos professores?
Não sabem onde vão trabalhar para o ano, não sabem se terão trabalho. Quanto
devemos aos jovens em cubículos de call-centers? Quanto devemos aos estagiários
não remunerados? Quanto devemos aos vendedores com excesso de habilitações?
Quanto devemos aos desempregados?
“Quanto devemos aos músicos?
Depois de aprenderem a tocar, passam anos a fazê-lo de borla para nosso
divertimento e, garantem-lhes, para mostrar o seu trabalho. Ao fim da noite,
entre o público, poucos considerarão trabalho aquilo que eles fizeram. E quanto
devemos aos bailarinos? Quanto devemos às bailarinas? Quanto devemos às
atrizes? De repente, colocam-nas no centro de todos os olhares, de todos os
julgamentos, a troco de uma oportunidade. Uma oportunidade de quê? Uma
oportunidade de uma oportunidade. Serão velhas e terão a mesma maquilhagem.
Quanto devemos a todos os que trabalham para que exista teatro e cinema neste
país?
“Quanto devemos aos desportistas
das chamadas modalidades amadoras? Levam o equipamento na mochila, vão para o
treino depois do trabalho, chegam tarde a casa. Os fins-de-semana são pequenos,
acabam depressa. E quanto devemos aos atletas paralímpicos? Com muita
probabilidade, quando os jogos forem notícia, havemos de contar medalhas de
modalidades que desconhecemos e teremos moral para exigir; diremos cinco ou
seis, sem nos lembrarmos que, atrás de cada uma, está o esforço contínuo de
alguém durante anos.
“Já que falamos nisso, quanto
devemos àqueles que têm mobilidade reduzida e que não podem sair de casa? Não
há rampas, há carros estacionados em cima de passeios com buracos, não há
dinheiro para comprar a cadeira de rodas adequada. São prisioneiros sem culpa
formada, sem acusação, sem julgamento. Foram condenados a prisão domiciliária.
Não há data marcada para o fim da sua pena.
“Quanto devemos aos guardas
prisionais? Estão agora atrás de muros, rodeados de ameaças. Quanto devemos aos
homens do lixo? Queixamo-nos do barulho que fazem quando recolhem o nosso
próprio lixo. Não queremos ser incomodados, estamos a repousar. Quanto devemos
às mulheres-a-dias? Havemos de culpá-las se desaparecer alguma coisa. Quanto
devemos aos coveiros?
“E quanto devemos aos credores
internacionais? Definiram juros e emprestaram aquilo de que não precisavam a
outros que estavam aqui e que se retiraram na hora de pagar. Ficámos cá nós,
não temos para onde ir. A propósito, quanto devemos àqueles que emigraram?
Deixaram a família contra a sua vontade. Vimo-los partir. Sentimos a sua falta.
“Afinal, quanto devemos aos
bancos e às instituições económicas internacionais? Nunca lidámos com elas. Os
acordos foram feitos em nosso nome mas, tantas vezes, sem o nosso conhecimento.
Enquanto isso acontecia, estávamos a viver, acreditando que contribuíamos para
a construção, dignidade e prosperidade do país a que pertencemos. Quanto
devemos a nós próprios?
“Não se trata de não pagar as
nossas dívidas, trata-se de saber a quem devemos”.
José Luís Peixoto, in revista
Visão (23 Julho 2015)
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