Este é um dos casos mais tristes dos últimos tempos e revelador do medo que o poder político actual pretende instalar entre os portugueses que ainda têm capacidade de se indignarem.
O julgamento de Myriam Zaluar que hoje decorre é um verdadeiro atentado à liberdade de informação e de manifestação.
Paradoxalmente, um caso com esta dimensão e gravidade pouca atenção tem mercido, quer por parte da classe política, quer por parte da comunicação social...porque será? O medo está instalado na imprensa portuguesa.
Pela nossa parte, divulgar este caso, é o nosso modo de apoiar de Myriam Zaluar, que não conhecemos pessoalmente, filha de um meu saudoso professor do curso de história, Zaluar Basílio.
Aproveitamos também para recordar aqui uma célebre carta, enviada por aquela jornalista free-lancer a Passos Coelho, há cerca de um ano atrás. Provávelmente está aqui a chave para perceber o absurdo julgamento que tem hoje lugar.
Hoje somos todos Myriam Zaluar.
Carta aberta ao Sr. Primeiro Ministro | Por Myriam Zaluar
"Exmo Senhor Primeiro Ministro
"Começo por me apresentar, uma vez que estou certa que nunca
ouviu falar de mim. Chamo-me Myriam. Myriam Zaluar é o meu nome “de guerra”.
Basilio é o apelido pelo qual me conhecem os meus amigos mais antigos e também
os que, não sendo amigos, se lembram de mim em anos mais recuados.
"Nasci em França, porque o meu pai teve de deixar o seu país
aos 20 e poucos anos. Fê-lo porque se recusou a combater numa guerra contra a
qual se erguia. Fê-lo porque se recusou a continuar num país onde não havia
liberdade de dizer, de fazer, de pensar, de crescer. Estou feliz por o meu pai
ter emigrado, porque se não o tivesse feito, eu não estaria aqui. Nasci em França,
porque a minha mãe teve de deixar o seu país aos 19 anos. Fê-lo porque não
tinha hipóteses de estudar e desenvolver o seu potencial no país onde nasceu.
Foi para França estudar e trabalhar e estou feliz por tê-lo feito, pois se
assim não fosse eu não estaria aqui. Estou feliz por os meus pais terem
emigrado, caso contrário nunca se teriam conhecido e eu não estaria aqui. Não
tenho porém a ingenuidade de pensar que foi fácil para eles sair do país onde
nasceram. Durante anos o meu pai não pôde entrar no seu país, pois se o fizesse
seria preso. A minha mãe não pôde despedir-se de pessoas que amava porque viveu
sempre longe delas. Mais tarde, o 25 de Abril abriu as portas ao regresso do
meu pai e viemos todos para o país que era o dele e que passou a ser o nosso.
Viemos para viver, sonhar e crescer.
"Cresci. Na escola, distingui-me dos demais. Fui rebelde e
nem sempre uma menina exemplar mas entrei na faculdade com 17 anos e com a
melhor média daquele ano: 17,6. Naquela altura, só havia três cursos em
Portugal onde era mais dificil entrar do que no meu. Não quero com isto dizer
que era uma super-estudante, longe disso. Baldei-me a algumas aulas, deixei
cadeiras para trás, saí, curti, namorei, vivi intensamente, mas mesmo assim
licenciei-me com 23 anos. Durante a licenciatura dei explicações, fiz
traduções, escrevi textos para rádio, coleccionei estágios, desperdicei algumas
oportunidades, aproveitei outras, aprendi muito, esqueci-me de muito do que
tinha aprendido.
"Cresci. Conquistei o meu primeiro emprego sozinha.
Trabalhei. Ganhei a vida. Despedi-me. Conquistei outro emprego, mais uma vez
sem ajudas. Trabalhei mais. Saí de casa dos meus pais. Paguei o meu primeiro
carro, a minha primeira viagem, a minha primeira renda. Fiquei efectiva.
Tornei-me personna non grata no meu local de trabalho. “És provavelmente aquela
que melhor escreve e que mais produz aqui dentro.” – disseram-me – “Mas tenho
de te mandar embora porque te ris demasiado alto na redacção”. Fiquei.
"Aos 27 anos conheci a prateleira. Tive o meu primeiro filho.
Aos 28 anos conheci o desemprego. “Não há-de ser nada, pensei. Sou jovem, tenho
um bom curriculo, arranjarei trabalho num instante”. Não arranjei. Aos 29 anos
conheci a precariedade. Desde então nunca deixei de trabalhar mas nunca mais
conheci outra coisa que não fosse a precariedade. Aos 37 anos, idade com que o
senhor se licenciou, tinha eu dois filhos, 15 anos de licenciatura, 15 de
carteira profissional de jornalista e carreira ‘congelada’. Tinha também 18
anos de experiência profissional como jornalista, tradutora e professora,
vários cursos, um CAP caducado, domínio total de três línguas, duas das quais
como “nativa”. Tinha como ordenado ‘fixo’ 485 euros x 7 meses por ano. Tinha
iniciado um mestrado que tive depois de suspender pois foi preciso escolher
entre trabalhar para pagar as contas ou para completar o curso. O meu dia,
senhor primeiro ministro, só tinha 24 horas…
"Cresci mais. Aos 38 anos conheci o mobbying. Conheci as
insónias noites a fio. Conheci o medo do amanhã. Conheci, pela vigésima vez, a
passagem de bestial a besta. Conheci o desespero. Conheci – felizmente! –
também outras pessoas que partilhavam comigo a revolta. Percebi que não estava
só. Percebi que a culpa não era minha. Cresci. Conheci-me melhor. Percebi que
tinha valor.
"Senhor primeiro-ministro, vou poupá-lo a mais pormenores
sobre a minha vida. Tenho a dizer-lhe o seguinte: faço hoje 42 anos. Sou
doutoranda e investigadora da Universidade do Minho. Os meus pais, que deviam
estar a reformar-se, depois de uma vida dedicada à investigação, ao ensino, ao
crescimento deste país e das suas filhas e netos, os meus pais, que deviam
estar a comprar uma casinha na praia para conhecerem algum descanso e
descontracção, continuam a trabalhar e estão a assegurar aos meus filhos aquilo
que eu não posso. Material escolar. Roupa. Sapatos. Dinheiro de bolso. Lazeres.
Actividades extra-escolares. Quanto a mim, tenho actualmente como ordenado fixo
405 euros X 7 meses por ano. Sim, leu bem, senhor primeiro-ministro. A
universidade na qual lecciono há 16 anos conseguiu mais uma vez reduzir-me o
ordenado. Todo o trabalho que arranjo é extra e a recibos verdes. Não sou
independente, senhor primeiro ministro. Sempre que tenho extras tenho de contar
com apoios familiares para que os meus filhos não fiquem sozinhos em casa.
Tenho uma dívida de mais de cinco anos à Segurança Social que, por sua vez,
deveria ter fornecido um dossier ao Tribunal de Família e Menores há mais de
três a fim que os meus filhos possam receber a pensão de alimentos a que têm direito
pois sou mãe solteira. Até hoje, não o fez.
"Tenho a dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro:
nunca fui administradora de coisa nenhuma e o salário mais elevado que auferi
até hoje não chegava aos mil euros. Isto foi ainda no tempo dos escudos, na
altura em que eu enchia o depósito do meu renault clio com cinco contos e ia
jantar fora e acampar todos os fins-de-semana. Talvez isso fosse viver acima
das minhas possibilidades. Talvez as duas viagens que fiz a Cabo-Verde e ao
Brasil e que paguei com o dinheiro que ganhei com o meu trabalho tivessem sido
luxos. Talvez o carro de 12 anos que conduzo e que me custou 2 mil euros a
pronto pagamento seja um excesso, mas sabe, senhor primeiro-ministro, por mais
que faça e refaça as contas, e por mais que a gasolina teime em aumentar,
continua a sair-me mais em conta andar neste carro do que de transportes
públicos. Talvez a casa que comprei e que devo ao banco tenha sido uma
inconsciência mas na altura saía mais barato do que arrendar uma, sabe, senhor
primeiro-ministro. Mesmo assim nunca me passou pela cabeça emigrar…
"Mas hoje, senhor primeiro-ministro, hoje passa. Hoje faço 42
anos e tenho a dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro: Tenho mais
habilitações literárias que o senhor. Tenho mais experiência profissional que o
senhor. Escrevo e falo português melhor do que o senhor. Falo inglês melhor que
o senhor. Francês então nem se fale. Não falo alemão mas duvido que o senhor
fale e também não vejo, sinceramente, a utilidade de saber tal língua. Em compensação
falo castelhano melhor do que o senhor. Mas como o senhor é o primeiro-ministro
e dá tão bons conselhos aos seus governados, quero pedir-lhe um conselho,
apesar de não ter votado em si. Agora que penso emigrar, que me aconselha a
fazer em relação aos meus dois filhos, que nasceram em Portugal e têm cá todas
as suas referências? Devo arrancá-los do seu país, separá-los da família, dos
amigos, de tudo aquilo que conhecem e amam? E, já agora, que lhes devo dizer?
Que devo responder ao meu filho de 14 anos quando me pergunta que caminho
seguir nos estudos? Que vale a pena seguir os seus interesses e aptidões, como
os meus pais me disseram a mim? Ou que mais vale enveredar já por outra via (já
agora diga-me qual, senhor primeiro-ministro) para que não se torne também ele
um excedentário no seu próprio país? Ou, ainda, que venha comigo para Angola ou
para o Brasil por que ali será com certeza muito mais valorizado e feliz do que
no seu país, um país que deveria dar-lhe as melhores condições para crescer pois
ele é um dos seus melhores – e cada vez mais raros – valores: um ser humano em
formação.
"Bom, esta carta que, estou praticamente certa, o senhor não
irá ler já vai longa. Quero apenas dizer-lhe o seguinte, senhor
primeiro-ministro: aos 42 anos já dei muito mais a este país do que o senhor.
Já trabalhei mais, esforcei-me mais, lutei mais e não tenho qualquer dúvida de
que sofri muito mais. Ganhei, claro, infinitamente menos. Para ser mais exacta
o meu IRS do ano passado foi de 4 mil euros. Sim, leu bem, senhor
primeiro-ministro. No ano passado ganhei 4 mil euros. Deve ser das minhas
baixas qualificações. Da minha preguiça. Da minha incapacidade. Do meu
excedentarismo. Portanto, é o seguinte, senhor primeiro-ministro: emigre você,
senhor primeiro-ministro. E leve consigo os seus ministros. O da mota. O da
fala lenta. O que veio do estrangeiro. E o resto da maralha. Leve-os, senhor
primeiro-ministro, para longe. Olhe, leve-os para o Deserto do Sahara. Pode ser
que os outros dois aprendam alguma coisa sobre acordos de pesca.
"Com o mais elevado desprezo e desconsideração, desejo-lhe,
ainda assim, feliz natal OU feliz ano novo à sua escolha, senhor
primeiro-ministro
"e como eu sou aqui sem dúvida o elo mais fraco, adeus"
Myriam Zaluar, 19/12/2011
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