O jornal Público pediu a várias personalidades que escrevessem uma reflexão sobre os valores para o ano que agora começa.
13 pensadores das mais variadas àreas responderam ao desafio, que se completou hoje com a edição do último depoimento, da autoria de Eduardo Lourenço. Em comum o facto da maioria daqueles que escreveram e reflectiram sobre esse tema remaram contra a maré do pensamento único dominante e de fugirem aos lugares comuns debitados pelos costumeiros comentadores de serviço na comunicação social que molda as opiniões (nomeadamente nas televisões).
Entre muitos outros, escolhemos aquele que, quanto a nós, melhor resume essa reflexão, o contributo do escritor Miguel Real para esse debate, num dos mais lúcidos textos que li nos últimos tempos:
O SENTIMENTO DO NADA, A
CONFIANÇA, E A ESPERANÇA
Por Miguel Real
(3º texto da série “Que valores
para 2013?”)
“O Sentimento do Nada
“Em nome da santidade do seu
orçamento, o Estado português é hoje uma aterrorizante máquina de roubo
colectivo: roubo de empregos e de lucro legítimo das empresas; roubo de
poupanças de anos; roubo de salários; roubo de pensões; roubo da vontade
empreendedora dos cidadãos e, sobretudo, roubo da alma dos portugueses. 0 maior
roubo que o Estado português tem cometido nos tempos recentes residiu num
espectacular e aparentemente impossível roubo do excedente de esperança que
todo o cidadão necessita para a existência diária como garantia de que o futuro
será, senão melhor, pelo menos não pior que o passado. Este foi o grande roubo
colectivo - absolutamente inqualificável - operado pelo Estado português,
assente na crença metafísica e obsessiva, até delirante, mesmo patológica, da
inexistência de alternativas financeiras e económicas para a sua política. Mal
o Governo caia e o Presidente da República diga que existe - pressupomos que
continua a existir uma entidade chamada Presidência da República -, ver-se-ão
as alternativas aparecerem, e não uma, mas várias.
“Com efeito, integrando o texto
no interior de uma teoria de valores, como foi solicitado, o Estado português
é, desde os primeiros anos do nosso século, uma máquina implacável e
aterrorizante de generalização de infelicidade, individual e colectiva. Uma
classe política tecnocrata culturalmente ignorante (como o prova a anulação de
feriados históricos, símbolos do passado de Portugal) e socialmente oportunista
(ocupação de cargos por apropriação carreirista, sem mérito próprio), com a
mente aprisionada por ditames éticos maximamente individualistas (quebrando o
ancestral sentimento comunitário presente na colectividade portuguesa),
dividindo americanamente os portugueses entre “vencedores” e “vencidos”, totalmente
desprovida do princípio moral cristão da solidariedade e do princípio humanista
da igualdade, assenhoreou-se do Estado português desde os primeiros anos do
século, depreciando a prática do bem comum e hipostasiando uma política fiscal
considerada “psico-pata” (Carlos César, ex-presidente do Governo Regional dos
Açores). Com as medidas propostas e activadas pelo Governo, nem sequer se
consegue atingir o primeiro e mais simples patamar da felicidade - a satisfação
de uma vida simples para todos, com a garantia de pão sobre a mesa, um ordenado
decente, uma escola para os filhos, uma cama no hospital e uma tumba no
cemitério - certamente em breve privatizado e de novo aberta a “vala comum”
para pobres e sem-abrigo, onde aliás foi Camões enterrado.
“Com este passado fantasmagoricamente
presente, o futuro, como um autêntico Adamastor, sugando a totalidade do corpo
e da mente dos portugueses, levanta-se como um poderoso Sentimento do Nada: o
Nada do desemprego, o Nada da falência, o Nada do empobrecimento, o Nada da
frustração familiar, profissional e social, que não só nos absorve a alma -
individual e colectiva - como nos bloqueia, senão anula, o Princípio da
Esperança. Lentamente, temo-nos tomado um povo sonâmbulo, sem alma nem
esperança, roídos pelo Sentimento do Nada. Nas suas intervenções públicas, José
Gil e Boaventura de Sousa Santos têm difundido - com razão - que vivemos numa
atmosfera impregnada de medo: medo no trabalho; medo nos transportes públicos;
medo nas ruas; medo da polícia, por sua vez medrosa de não atingir os
objectivos propostos pelo superior hierárquico; medo dos funcionários
bancários, que nos exigem a prestação do carro, da casa... Este medo fantasmático
nasce da suspeita de em breve a nossa existência ser atormentada pela
concretização real de um desses perigos, projectando o Nada na nossa vida,
subvertendo a existência suave que tínhamos atingido após dezenas de anos de
trabalho. 0 Nada - a não-esperança; a não-existência, contrária àquela que
tínhamos previsto e para a qual trabalhámos afanosamente; a não-importância ou
a desqualificação atribuída ao nosso trabalho; o não-futuro, impossibilitado
pelo arrastamento de situações constrangedoras do presente; o não-ser,
reduzidos a uma vida insignificante, sem possibilidade de realização - impregnou
a nossa vida, devorou a nossa auto-estima, assolou o papel que desempenhávamos
na família, no trabalho, na colectividade de recreio, somos agora vistos como
mais um, um daqueles que, inútil, deve emigrar, que falhou a vida por não ter
sido oportunista, carreirista, bajulador, serviçal, verdadeiramente por não ter
tido suficiente esperteza para se inscrever num partido político e se encontrar
agora imune ao assalto colectivo que o Estado faz à carteira e à alma do
cidadão.
“O Principio da Confiança
“Mais generosos que avaros, mais
comunitários que individualistas, mais emotivos que racionais, mais
espiritualistas que materialistas, mais supersticiosos (Fátima) que devotos,
mais líricos que prosaicos, mais soltos que disciplinados, mais improvisadores
que metódicos, historicamente desprezados pelos poderes públicos, os
portugueses constituem um povo que tradicionalmente, segundo a sua cultura,
defende ser a razão menos importante que a paixão, o calculismo menos
importante que a fruição lúdica da vida, um povo que, face aos interesses
económicos, tem pugnado pelos valores do sentimento e da comoção, os valores do
gregarismo e da generosidade, os valores da partilha e do companheirismo,
unidos e vinculados a um sentido transcendente orientador na busca da justiça,
que desespera por nunca chegar. Volta-se então para Nossa Senhora, esperando do
Céu o que a terra lhe nega.
“A fibra de lutador dos
portugueses advém da sua história e da sua cultura - uma história, primeiro, de
guerra contra o invasor mouro; depois, de guerra contra a natureza e os povos
“pagãos” que descobriram em África, no Oriente e no Brasil; finalmente,
arredado da fruição do Ouro do Brasil, restrito às elites políticas, a luta
pela sobrevivência numa vida em permanente miséria económica até à actualidade.
Todas estas situações históricas fizeram dos portugueses um povo menos votado a
uma vida certa e rotineira e mais votado a uma vida improvisada, na qual cada
um deveria “desenrascar-se” por si próprio ou no interior de um pequeno grupo
de companheiros.
“Alimentados por um sentido
transcendente da História e do Homem, os portugueses sempre defenderam um
punhado de valores clássicos (lealdade, amizade, honestidade, generosidade,
solidariedade vicinal...). Este espiritualismo nasceu de um conjunto de
constrangimentos histórico-sociais muito particulares: menos o privilégio ao
indivíduo e à liberdade e mais ao gregarismo comunitário; menos a autonomia e
independência da sociedade civil e mais o endeusamento do Estado (a Corte, o
Senhor, o Patrão...); menos a separação e distinção radical entre as esferas da
religião e do Estado e mais a prevalência dos modos profanos de socialização do
sagrado; menos a generalização da riqueza do todo distribuída entre as partes e
mais a concentração em pequenos grupos privilegiados; menos as medidas de
reforço da sociedade civil e mais a subordinação do todo da comunidade ao
Estado; menos o trabalho rigoroso e disciplinado, criando progressivamente
riqueza própria, e mais a especulação de terras e imóveis, ou seja, menos a
produção e mais a comercialização.
“Assim, hoje, sem transcendência
espiritual de valores ligados à beleza, ao bem e ao sagrado, os portugueses
viram-se, no princípio deste século, despojados e espoliados do fruto do seu
trabalho, assegurados pelo princípios morais que regulavam o bem comum - o
fundo de desemprego justo, o subsídio de auxílio aos mais carenciados, a pensão
para o idoso, a assistência hospitalar... - desde a entrada de Portugal na
Comunidade Europeia. No futuro, inacreditavelmente, sentem ser possível o
Estado em que confiavam esvaziar-lhe a conta bancária pessoal ou familiar,
cúmulo da sua poupança de décadas. Quebrou-se o Princípio da Confiança que
vinculava o cidadão ao Estado, instituição garantidora do bem comum. O Estado
alega em altos gritos compromissos com instituições financeiras e faz-se mudo e
surdo face aos compromissos que assinou com cada cidadão, garantindo-lhe uma
existência e uma cidadania “normais”. Doravante, algum português ousará
acreditar numa lei criada pelo Estado? Algum português atrever-se-á a acreditar
na palavra de um político dos partidos que se têm assenhoreado do Estado?
Quebrou-se o Princípio da Confiança, vínculo ético da representação política
entre o cidadão e o Estado. Instalou-se a regra da desconfiança de cada um
sobre todos, conduzindo a uma permanente mas surda guerra civil de todos contra
todos, vencendo sempre os oportunistas e os carreiristas, sem valores morais
sólidos.
“O Princípio da Esperança
“Com a plena adesão de Portugal à
Comunidade Económica Europeia em 1986, o ser de Portugal principiou
gradualmente a confundir-se e a identificar-se com o ser da Europa, existindo animado
dos mesmos fracassos, virtudes e desafios dos restantes países europeus. Nos
últimos vinte anos do século XX, os problemas da Europa tomaram-se os nossos
problemas - desaparecimento do sector primário da economia, absolutização do
sector terciário, absolutização de um sector informático-electrónico,
independência da mulher, fraquíssima taxa de natalidade, ensino de massas e
iliteracia, predomínio social do sector das novas tecnologias da comunicação,
crescente mediocrização da elite política, perda de competitividade
relativamente aos Estados Unidos da América e ao Japão, ameaça económica
galopante dos produtos provindos da China, do Brasil e da índia, crescente
especulação financeira... Assim, aos nossos antigos problemas de
desenvolvimento, herdados do século XIX e agravados ao longo da vigência do
Estado Novo, somaram-se os problemas europeus propriamente ditos. Porém, uma
diferença qualitativa emergiu: os velhos problemas eram agora integrados no
vasto horizonte político, económico, social e cultural europeu onde primavam a
democracia e a atitude científica inovadora. Era o Princípio da Esperança. Com
a Europa, resolveríamos os nossos princípios estruturais.
“Se, simbolicamente, datarmos de
1580 (perda da independência de Portugal e criação do mito sebástico) o momento
culminante do processo de anormalização da existência de Portugal, dataremos de
1980 (data de pré-adesão de Portugal à Comunidade Europeia) o momento inicial
de normalização da existência de Portugal, tomando-o um país exactamente igual
aos outros, com os defeitos, as virtudes, as deficiências e as qualidades dos
outros países, mais rico que uns, mais pobre que outros, singular como todos os
outros. Em 1980 reside a data que encerra 400 anos de história de Portugal, mas
também a data que lhe abre novo capítulo, o capítulo do futuro - expressão do
sonho de todos os pensadores portugueses que, desde o século XVI, nunca
separaram Portugal do corpo territorial da Europa. O Princípio da Esperança.
Finalmente, nos finais do século XX, tínhamos realizado o sonho português de
ser Europa.
“Hoje, doze anos entrados no novo
século, constatamos não ser a Europa a nossa tábua de salvação. Em nome do
sacrossanto “mercado”, Portugal vive hoje o mais feroz dos individualismos,
recalcando os valores gregários e comunitários que o definiram como nação,
entronizando o dinheiro e a posse da mercadoria como únicos valores soberanos,
face aos quais todos os restantes se inclinam. Opera-se hoje, em Portugal, uma
autêntica mutação de valores - da modéstia e da abnegação transitou-se para a
soberba e a arrogância; da solidariedade para o egoísmo narcisíaco; dos valores
da cooperação para os valores ligados à ganância, à avidez, à cobiça, ser
superior ao outro, humilhando-o pela ostentação do carro, da vivenda, da
piscina; da sobriedade para a luxúria, apregoada como valor benéfico pela
televisão; do bem espiritual como supremo valor gregário para o bem económico
como manifestação de poder e riqueza. O Princípio da Esperança, motor de
trabalho e iniciativa, motor de mobilidade e igualdade social, de equidade na
distribuição da riqueza colectiva, quebrou-se, deixando assim o português sentado
à porta de um país sonâmbulo, perscrutando um horizonte vazio de confiança e de
esperança, sentindo estalar no peito o aterrorizador Sentimento do Nada”.
(“Esta série tem o apoio de: Millennium
– BCP”)
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