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terça-feira, 17 de maio de 2011

Brincadeiras de outros tempos na nossa memória imaterial


No passado Sábado, Dia dos Museus, tive a oportunidade de revisitar algumas memórias de infância, num debate realizado pelo Museu Municipal Leonel Trindade.

O tema rodava à volta dos brinquedos e da sua relação com a nossa memória e até com a forma como eles nos moldaram a vida, a propósito de um protocolo que o museu fez com o maior coleccionador de brinquedos de Torres Vedras, o meu amigo e ex-colega de liceu Octávio.

Duas realidades vieram-me à memória: a rua como espaço e a invenção de brinquedos. Logo à partida duas realidades que já são memória e história. Nos dias de hoje já não se brinca na rua. Este foi um espaço ocupado pelos automóveis. Também já nenhuma criança inventa brinquedos; estes são-lhe oferecidos como consolas digitais, tudo pré-programado.

A rua era onde todos passávamos grande parte do tempo livre e, principalmente do tempo de férias, que eram, de facto, “férias grandes”. Aí aprendemos a relacionarmo-nos como os outros, a desenrascarmo-nos, a fazer, desfazer e refazer amizades, e,como se diz agora, a “competição” e o “empreendedorismo” (o meu primeiro “negócio” e o de muitos amigos da rua foi organizar e gerir a festa de Stº António que se realizava anualmente na nossa praceta).

Defendíamos o espaço da nossa rua como se fosse um país, muitas vezes à pedrada, ao pontapé e, por vezes, ao murro.

Bandos de crianças distribuíam-se por grupos de bairros e, muitas vezes colegas de escola e de outros sítios de culto de amizades, éramos inconciliáveis quando se tratava de defender a nossa “rua” dos bandos rivais das ruas vizinhas. Durante os dias de escola brincávamos juntos no recreio, sem rancores, nos tempos livres jogávamos à pedrada uns com os outros em lados diferentes da barricada. No dia seguinte retomávamos na escola a amizade questionada no dia anterior.

O nosso limite era a taberna do Venceslau a oeste, os quintais das casas a sul, a actual rua Henriques Nogueira (então umas vinhas e campos de trigo) a este e a “praceta Moura Guedes” a sul. No meio, o espaço mais importante, a nossa praceta, onde raramente entrava um carro.

A meio da tarde assolavam as mães às varandas chamando-nos pelos nomes para o lanche, devorado à pressa para regressarmos à rua, de onde só voltávamos quando, de novo, nos chamavam para jantar. Por vezes, no verão, ainda se voltava à rua antes de deitar.

Havia uma certa hierarquia de lealdades, estando à cabeça a miudagem do mesmo prédio, que, no meu caso, tinha o privilégio de usufruir de um quintal e das varandas unidas pela escadaria das traseiras que dava acesso a esse quintal, onde nos reuníamos frequentemente, eu, o meu irmão, o janeca, o Pedro e a São, o ruizinho, o mabê e o primo Nanan, a Guigui, o Luisinho…

Em segunda escala hierárquica, os amigos do prédio ao lado, o Emílio, o Alfredo, a Ana Maria, a Graça, A Nini e o irmão, o Zé carlinhos, o Chaves…

Depois , num terceiro degrau, todas as crianças dos prédios da praceta, e, por último, a criançada das ruas e dos bairros próximos, como o Joãozinho, o Carlos e o Marcos…o Zico amigo do Carlos… e muitos outros.

Em casa brincávamos principalmente com brinquedos inventados, as caricas das garrafas, os bonecos de papel, desenhados e recortados por nós, os carrinhos de caixas de fósforo e com rodas feitas de rodelas de cortiça das rolhas de garrafa, as pistolas desenhadas e recortadas em madeira pelo sr. Rosado…

Tínhamos países com reis e rainhas, fazíamos guerras para conquistar o espaço entre as varandas das traseiras, realizávamos jogos olímpicos com grandes sessões de abertura e chama olímpica, desfiles de “carros” de Carnaval e corridas de “bicicleta”, “idas” à Lua, tudo com as caricas, cada uma com nome próprio, “acontecimentos” registado em pequenas folhas de papel , rasgadas dos blocos “turista”,dobradas, jornais por mim inventados.

Brinquedos a sério eram coisa rara, prenda sonhada em cada aniversário e Natal.

Montras de brinquedos eram igualmente coisa rara, apenas vislumbradas por detrás de umas vidraças sujas do Raul Guilherme, ou, anualmente, nas bancadas envidraçadas na Feira de S. Pedro, cheios de brinquedos em madeira ou em lata.

Por vezes, em vésperas de Natal, deslocava-me com a minha mãe a Lisboa, uma viagem preparada como hoje se prepara uma viagem a Paris ou Londres, e que levava cerca de duas horas de viagem, em comboio. Chegados à capital, a minha mãe deslocava-se em primeiro lugar à Pallux, onde ela conhecia uma antiga empregada na papelaria do meu avô que aí trabalhava, que nos guiava por esses armazéns imensos, de vários andares, e com uma secção imensa de brinquedos “verdadeiros” de fazer água na boca. Depois dávamos uma volta pela Baixa, aí sim com montras imensas de brinquedos, carrinhos da Matchbox , pistas de carros, comboios eléctricos…

Em Natal de sorte recebi um pequeno comboio a corda e, em ano de muita sorte, recebia um carrinho da Matchbox e legos. Uma dos meus “livros de cabeceira” da infância era uma catálogo da Matchbox, desfolhado quase até se desfazer.

…tudo isto fui recordando nesse fim de tarde memorável no passado Sábado…

1 comentário:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Comovidamente li o teu texto...
"O tempo, esse grande escultor", tão minuciosamente descrito por ti, numa evocação ao país da infância, agora cada vez mais longínquo.

Obrigado, amigo Venerando!