(Foto de Nuno Ferreira Santos/Público)
Quem consultar hoje as primeiras páginas da imprensa
mundial, encontrará referências às manifestações do 1º de Maio, com destaque
para as grandes manifestações em Espanha, em França , na Grécia e em muitos
outros cantos da Europa, da América Latina à Ásia.
Contudo, quem fizer o mesmo exercício com a imprensa
nacional, com a única excepção do Público, a quem devemos a metafórica
fotografia que ilustra esta página, os títulos e as imagens em destaque referem
o degradante espectáculo de prateleiras vazias e gente a acotovelar-se em bichas intermináveis para entrar ou sair
dos supermercados da cadeia Pingo Doce.
Muita gente sujeitou-se a bichas que duraram o equivalente a
um dia de trabalho, primeiro para entrar, depois para pagar à saída, levando
muita gente a “saquear” as prateleiras de bolachas e iogurtes para matar a fome
dessa espera.
Muita gente que resolveu escolher os congelados, acabou por
ver esses produtos estragarem-se e a derreterem-se ainda antes de os pagar, tal
foi o tempo de espera.
A maioria acabou por comprar o que não necessitava para
perfazer o valor mínimo para beneficiar da promoção de 50% de desconto em
compras superiores a 100 euros.
As fotografias e vídeos do interior desses supermercados
mostravam aquilo que pareciam cenas de saque e assalto, como se viesse aí uma
guerra ou o fim do mundo, com lixo espalhado pelas prateleiras vazias e pelo
chão e lutas e discussões por um pacote de leite.
A empresa da Jerónimo Martins explorou o que existe de mais
primário no comportamento das pessoas, explorando a seu favor o medo provocado
pela crise económica a os fenómenos mais degradantes da psicologia de massas.
A escolha do dia para lançar essa promoção não foi inocente,
foi uma autêntica provocação, induzindo as pessoas a recorrerem ao mais degradante
espírito consumista, num dia que devia ser de afirmação cívica.
Já não bastava toda a chantagem que tem vindo a ser exercida
sobre os trabalhadores dessa cadeia de supermercados (…e de todas as outras)
para os obrigar a trabalhar num dia que devia ser de descanso, de convívio ou
manifestação cívica, para agora tornar a vida dessas pessoas num verdadeiro
inferno.
Ao que parece, contudo, a administração dessa empresa não
acompanhou os seus trabalhadores nessa obrigação, já que não responderam às perguntas
de alguns órgãos de comunicação social com a argumentação que estavam fechados
por “ser feriado”.
Não deixa de ser curioso o silêncio sobre este fenómeno por
parte de uma série de economistas e sociólogos que tanto gostam de perorar
contra o excesso consumista e a falta de atitude cívica do “povo” e sempre
prontos a defender a austeridade em nome da crise.
Mas o fenómeno é facilmente explicável, se olharmos para o
nome dos autores das edições e dos responsáveis pelas instituições e fundações
financiadas pela Jerónimo Martins. O silêncio é fácil de comprara por quem tem
dinheiro.
Desta triste situação ficam aqui duas ou três perguntas que
gostava que alguém me respondesse.
Uma primeira pergunta é para o sr. Presidente da República: o sr, sempre tão preocupado com a
imagem do país lá fora, não tem nada a dizer sobre a degradação das imagens que
marcaram este 1º de Maio em Portugal, que correram o mundo e que vão ser alvo
de chacota generalizada?
Outra pergunta para os responsáveis pela concorrência económica:
sei que já andam a investigar os acontecimentos, mas pergunto se, em caso de se
comprovar a existência de prática de dumping, que atitude vão tomar em relação
aos responsáveis por essa empresa?
E já agora o governo, tão preocupado com o deficit, não se
interroga se o apelo irracional ao consumo de campanhas com esta não é tão
responsável pela crise em que vivemos, como o são a irresponsabilidade do
crédito bancário ou a incompetência dos políticos?
A terceira pergunta é para os consumidores: já pensaram que,
se o Pingo Doce, uma das cadeias de supermercados com produtos mais caros, pode
oferecer 50% de desconto em quase todos os seus produtos e na quase totalidade
dos seus stocks, e se mesmo assim, tem lucro, porque é que não baixa os preços
em definitivo? Ou perguntando de outro modo: se conseguem vender produtos com
50% de desconto sem perderem dinheiro, já perceberam a escandalosa margem de
lucro dessas empresas em dias normais?
Por último, para aqueles que vêem neste acto um acto
benemérito da empresa, uma espécie de boda aos pobres, devem-se perguntar
porque é que essa empresa recorre a off-shores para fugir aos impostos pagos em
Portugal ou se foram de facto os mais pobres que beneficiaram com esta
campanha.
A maior parte dos pobres e todos aqueles que trabalham com
salários mínimos não podem dispor, de um dia para o outro, de um mínimo de cem
euros para beneficiarem deste tipo de campanhas, ou, se o fizeram, em breve vão
sentir no bolso o modo como responderam irracionalmente ao desejo consumista.
Este foi um dia de vergonha e infâmia…
1 comentário:
Subscrevo inteiramente o teu texto.
Ontem ( e hoje!), sinto-me deprimido, frustrado, revoltado. Percebo melhor o célebre desabafo de Alexandre Herculano perante o espetáculo de um país habitado por um povo de invertebrados: "Isto dá vontade de morrer!"
Porque a verdade é esta: que o capitalista insulte acintosamente o Dia dos Trabalhadores, eu até compreendo, está na sua natureza.
Agora, que os trabalhadores ( uma parte, enfim...)vão comer à mão de quem os explora... isso não entendo.
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