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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O RESPIGO DA SEMANA : A Honra Perdida de Todos Nós, por José Vítor Malheiros


A HONRA PERDIDA DE TODOS NÓS

Por José Vítor Malheiros

"Enganados. Indignados. Desiludidos. Frustrados. Deprimidos. Impotentes. A proporção dos in­gredientes varia, mas o estado de espírito geral anda por aqui. Sentimo-nos enganados pelas falsas promessas que nos fizeram. Enganados por tudo aquilo que foi secretamente e indevidamente feito em nosso nome e com o nosso dinheiro. Enganados pelos políticos que juraram cumprir com lealdade as fun­ções que lhes foram confiadas mas preferiram servir os seus bolsos, os interesses dos partidos e dos donos dos partidos. Enganados pelas nossas próprias convicções, pelas nossas esperanças, pelas nossas certezas.

"Indignados com a apropriação privada daquilo que deve pertencer a todos, indignados com a desigualdade cres­cente, com a injustiça, com a acumulação de riquezas nas mãos de um grupo reduzido de pessoas que nem sequer contribui para o desenvolvimento e para o bem-estar, in­dignados com o sequestro da sociedade pelo poder finan­ceiro, com a subserviência da política perante o dinheiro, com o estrangulamento da democracia pelos “mercados financeiros”. Indignados com a destruição do Estado, com a demolição dos serviços públicos que o nosso trabalho construiu nas últimas décadas, indignados com o futuro de pobreza, de economia musculada e de democracia di­minuída que espreita os nossos filhos. Indignados também connosco, que parvos que fomos.

"Desiludidos com a democracia que nasceu em Abril e que regámos mal, que desleixámos. Com a Europa que nos parecia o farol da civilização e da cultura, o clube de todas as democracias, e que é afinal um Country Club de castas bem definidas, onde todos são iguais mas uns são mais iguais que outros.

"Desiludidos com uma Europa utópica que se transformou num viveiro de egoísmos, de nacionalismos e xenofobia. Desiludidos connosco. Frustrados por um presente e um futuro sem espaço, sem liberdade, sem criação, sem ideias, sem al­ternativas, sem sonhos, onde tudo está predeterminado, onde os menus onde fazemos as nossas escolhas políticas, económicas, profissionais, de vida, são cada vez mais pequenos, mais pequenininhos (“una piccola vita, una speranza piccola cosi, una liberta piccola cosi”), e que um dia só terão uma única linha para assinarmos de cruz algo que não conseguimos sequer ler.

"Deprimidos por tudo isto, pela tristeza, pela prisão em que esta vida se transformou, por nos dizerem que fomos nós que a construímos, esta prisão, que fomos nós que a escolhemos, que fomos nós que a desenhámos, que fomos nós que escolhemos os carcereiros e que isso foi viver acima das nossas possibilidades. Deprimidos por nos dizerem que as nossas possibilidades estavam por baixo das nossas vidas. Impotentes porque nem sabemos que alternativa queremos, nem onde está, nem quem com­batemos. Impotentes porque o nosso inimigo são coisas sem nome e sem cara e sem morada, que existem não sabemos onde, seres sem desejo mas que nos vencem a cada minuto que passa. Impotentes todos. Há algures um mecanismo que controla tudo mas ninguém sabe onde está e não se pode parar. Não é como um pesadelo. É um pesadelo. A pobreza persegue-nos e ganha terreno e estrangula-nos e nós fugimos mas as nossas pernas ficam presas no lodo, no ar pesado, na escuridão.

"Protestamos, mas depois do protesto tudo fica na mesma. Vamos a manifestações e assinamos petições na internet, mas fica tudo na mesma. Devemos esperar calmamente pelas próximas eleições para tentar mudar alguma coisa? Fazer a revolução? Já ninguém acredita nela. Mentiu-nos tanta vez que deixámos de a ouvir.

"E no entanto não podemos ficar de braços cruzados. O mínimo dos mínimos que devemos fazer é tentar saber o que nos esconderam, o que nos escondem, e discutir o que sabemos. No próximo fim-de-semana tem lugar em Lisboa uma convenção que dará o pontapé de saída para a realiza­ção de uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública, a exemplo do que já foi feito - e está a ser feito - noutros países.

"Não é muito e vem tarde, mas é mais do que temos feito até aqui. Há quem diga que as auditorias devem ser feitas pelas entidades oficiais, pelos organismos de regulação, pelos poderes políticos, mas a verdade é que todos eles nos têm falhado. Talvez tenha chegado o momento de explicar um pouco melhor aquilo que queremos, de defen­der aquilo a que temos direito, de propor algumas opções diferentes. Se temos de sacrificar os nossos primogénitos não teremos o direito de saber a que deus o fazemos?

"A auditoria visa responder a perguntas simples. Quanto é que devemos? Quem é que pediu o dinheiro emprestado? Por que razão se degradaram de tal forma as finanças públi­cas que só pudemos viver com dinheiro emprestado? Que decisões nos levaram a essa situação de fragilidade? Quem negociou os empréstimos? Quando? Em que condições? A quem pedimos? A quem devemos? Quem ganhou com os empréstimos? Que parte da dívida corresponde a capital? Quanto corresponde a juros? Quanto corresponde a comis­sões? Comissões devidas a quem? Porquê? Recebemos todo o dinheiro? O que fizemos com ele? Seguiram-se as regras de prudência, de transparência, de independência exigíveis no manuseamento de dinheiros públicos? A que fiscalizações, auditorias e avaliações foram submetidos estes processos? Quais foram as suas conclusões e recomendações?

"A auditoria cidadã à dívida pública deve ajudar-nos a encontrar respostas para algumas destas perguntas. E a ajuda de todos não é de mais. Não é tudo, mas vamos poder fazer alguma coisa. Talvez possamos recuperar um pouco da nossa honra e olhar os nossos filhos nos olhos quando nos fizerem perguntas daqui a vinte anos. Já não era mau.”

In Público,13 de Dezembro de 2011

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