Se existe alguma figura que, para o bem e para o mal ( e para o “assim-assim”)
marcou uma época, Mário Soares foi uma delas.
Toda a minha geração foi marcada por Mário Soares, e todos concordámos
ou discordámos dele muitas vezes, em momentos importantes da nossa vida cívica.
Contudo nada justifica o ódio cobarde contra ele manifestado nas redes socias
por estes dias, muitas vezes com base em mentiras justamente e factualmente
desmentidas nas páginas do jornal Público (leiam o artigo de Pedro Guerreiro
intitulado “Nas Redes Sociais, ódio e boatos em copy-paste”, in Público de 9 de Janeiro de 2016)
Pessoalmente cruzei-me com Mário Soares algumas vezes, embora só tenha
trocado com ele algumas breves palavras de circunstância.
Assisti, em 1974, enquanto militante do PS, a vários comícios onde ele
estava presente, tendo-me marcado um grande comício, realizado no então chamado
Pavilhão dos Desportos, no Parque Eduardo VII, onde estiveram presentes
Altamirano, líder do PS do Chile, que sucedeu a Allende e vivia então na
clandestinidade, lutando contra a ditadura de Pinochet, e François Mitterrand,
líder do PS francês, anos antes de
chegar à presidência da França.
Por essa época cruzei-me ainda algumas vezes com Soares na sede do PS,
então em S. Pedro de Alcântara.
Tendo-me afastado do PS no inicio de 1975, ainda me cruzei com ele uma
ou duas vezes na década de 70, na rua onde fica a sua casa, pois por ela tinha
de passar todos os dias, várias vezes, durante uns cinco anos, para me deslocar
do metro, que então ía apenas até Entre Campos, para a Faculdade de Letras
Voltei a cruzar-me com ele na década de 80, em colóquios e congressos
de História promovidos pela Fundação Mário Soares.
Numa destas ocasiões houve outro momento que me marcou, que foi num
encontro de História Contemporânea dedicado a Humberto Delgado, era Soares
presidente da República.
No final da manhã Mário Soares, que tinha sido um dos oradores , era esperado no hall de saída da sala por um enxame de jornalistas que procuravam obter um comentário sobre um tema político (não me lembro qual) que marcava a época [o
interesse não era, como devia ser, o tema do congresso!!!].
Por sua vez, eu, com mais dois amigos (um era o José Travanca, o outro,
não tenho a certeza, mas penso que era o Nozes Pires) juntámo-nos num outro canto do hall
para falarmos doutros temas. Entretanto, depois de obterem o que que queriam,
os jornalistas abandonaram o local e o ambiente no hall acalmou.
Para surpresa nossa, quando olhámos para o lado, vimos que só lá
estávamos nós e, a uma pequena distância... Mário Soares em amena cavaqueira
com uma outra figura pública (não me lembro quem), sem se avistar à volta um segurança ou um polícia. Recordo, Soares era
então “apenas” Presidente de Portugal.
Já depois disso voltei a cruzar-me com Soares, em Torres Vedras, por
ocasião de um colóquio (que contou com outras duas sessões onde estiveram
presentes, em datas diferentes, Álvaro Cunhal e Marcelo Rebelo de Sousa). Data
desse colóquio a única vez que troquei breves palavras com Soares par pedir que
me autografasse uma primeira edição do seu Portugal Amordaçado.
Mas mesmo nunca estando muito próximo dele, a não ser nas circunstâncias
descritas, a sua personalidades, as suas ideias e a sua atitude estiveram
sempre presente nalgumas das minhas decisões políticas.
Tudo começou ainda antes do 25 de Abril, quando vi nele uma alternativa
à oposição comunista. Embora tenha colaborado com o PCP a partir de 1973, em
reuniões clandestinas de carácter unitário ( no seio do MDP/CDE) não aceitei
uma proposta para aderir ao PCP com o argumento de eu ser “social-democrata” . A “social-democracia”
em que então me revia era aquela representada por Mário Soares.
A seguir ao 25 de Abril, depois de uma breve continuação junto do
MDP/CDE, aderi em Junho ao PS quando este partido deixou aquela plataforma
política.
Entretanto, na voragem revolucionária que se seguiu, afastei-me
progressivamente do liberalismo de Soares e, juntamente com outros membros da
Juventude Socialista local, iniciei um processo de ruptura, que teve um
primeiro episódio nos finais de 1974, quando tomámos praticamente de ”assalto”
a sede local do PS, que ficava na A. 5 de Outubro, encostada ao restaurante “Pacar”
e “fundámos” uma “tendência” “revolucionária”, a que chamámos de “MRJS” (“Movimento
Revolucionário da Juventude Socialista”). A aventura durou umas horas, pois
logo fomos retidos na sede pelos mais velhos e ficámos a aguardar a chegada de
um representante da JS de Lisboa para tomarem uma decisão sobre nós. Ouvimos um
raspanete, fomos ameaçados de expulsão e mantivemo-nos ainda por mais algumas
semanas no PS.
Alguns saíram entretanto. Eu aguardei pelo resultado do Congresso de
Janeiro de 1975, apostando na figura de Manuel Serra, que disputava a liderança
contra Mário Soares. Saindo Soares vencedor, escrevi e enviei o meu pedido de demissão
(que foi aceite só em Abril, dias depois das eleições para a Assembleia
Constituinte).
Tendo saído do PS empenhei-me depois na luta política pela Associação
de Estudantes do Liceu de Torres Vedras, numa coligação de várias tendências
esquerdistas que concorreu contra a UEC (organização estudantil do PCP) e que
vencemos com grande maioria.
Os meus companheiros da JS aderiram às mais variadas tendências (MRPP,
PRP, LCI, o embrião da UDP, Anarquistas). Eu e um pequeno grupo aderimos à
LUAR.
Voltaria a estar contra Mário Soares durante o 1º Governo
Constitucional e na adesão à CEE. Á distância reconheço que a adesão à CEE
salvou a frágil democracia portuguesa e permitiu
ao país fugir à miséria social e económica. Infelizmente, o modelo de prosperidade
que essa desão podia garantir foi desbaratada durante os anos do “cavaquismo” e, já neste século,
com a apressada adesão ao “euro”. Mas isto é outra história.
Voltei a divergir de Mário Soares nas eleições presidenciais de 1986,
apoiando activamente a candidatura de Maria de Lurdes Pintasilgo. Contudo,
acabaria por votar pela primeira vez em Soares, na segunda volta dessas
eleições.
A partir de aí , embora nem sempre concordando com ele, como no seu
apoio a Sócrates, ganhei um grande respeito a Mário Soares e voltei a estar com
ele recentemente nas criticas às políticas de austeridade da troika e à deriva “austeritária”
de Bruxelas, bem como no apoio a Sampaio da Nóvoa.
Foi tudo isso que me levou ontem a Lisboa para um último adeus a essa grande
figura que marcou a evolução do país nos últimos 50 anos.
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