O esquema legal seguido no Luxemburgo para permitir a grandes empresas
multinacionais fugirem ao fisco noutros países da EU, e que foi conduzido
durante mais de uma década por Juncker, custou, por ano, cerca de um bilião de
euros a menos nos cofres de vários Estados europeus, sete vezes o orçamento da
União Europeia durante sete anos. Só Portugal, num único ano, 2009, perdeu com
esse esquema cerca de 12 mil milões de euros!!!
É sobre esse tema que se debruça a crónica de José Vítor Malheiros, ontem
publicada no jornal Público e que escolhemos com “respigo da semana”:
As fraudes legais, a oligarquia legal e o primado da lei
por JOSÉ VÍTOR MALHEIROS in Público de 12/11/2014
"A maior notícia dos últimos dias foi a revelação da existência de um
gigantesco esquema de evasão fiscal montado pelas autoridades fiscais do
Luxemburgo em benefício próprio e de centenas de grandes empresas
multinacionais. Este esquema permitiu poupar às empresas milhares de milhões de
euros em impostos e roubar a mesma quantidade de dinheiro ao erário público dos
países onde estes impostos deveriam ter sido pagos.
"Que o Luxemburgo é um paraíso fiscal é algo sobejamente conhecido. O
que é verdadeiramente espantoso neste esquema – revelado por um grupo de mais
de 80 jornalistas do International Consortium of Investigative Journalists
(ICIJ) – é a sua dimensão, a complexidade das transações realizadas e o grau de
organização e de rotina atingido pela operação.
"Entre as mais de 340 empresas cujas operações de evasão fiscal foram
reveladas por esta investigação, conta-se a IKEA, Pepsi, Federal Express, a
consultora Accenture, os laboratórios Abbott, a seguradora AIG, a Amazon,
Blackstone, Deutsche Bank, Heinz, Morgan Chase, Burberry, Procter & Gamble,
Carlyle Group e a Abu Dhabi Investment Authority, para mencionar apenas algumas
das mais conhecidas. As operações estão documentadas em 28.000 páginas de
documentos oficiais a que os jornalistas tiveram acesso.
"Uma das coisas mais relevantes nestas revelações é que elas envolvem um
total de transacções da ordem das centenas de milhares de milhões de dólares
(leu bem), realizadas entre 2002 e 2010, a que deveriam corresponder pagamentos
de impostos na ordem dos milhares de milhões de dólares. De facto, as empresas
chegavam a pagar taxas efectivas inferiores a um por cento sobre os lucros – um
valor que, apesar de irrisório, representava (representa) um prodigioso maná
para o Estado luxemburguês.
"Outro elemento que nos faz pensar é que todos estes casos descobertos
pelo ICIJ dizem respeito, exclusivamente, a clientes da empresa de consultoria
financeira PricewaterhouseCoopers. Como é provável que outras empresas de
contabilidade proporcionem este serviço luxemburguês aos seus clientes,
percebemos que, apesar de gigante, esta montanha representa apenas a ponta do
icebergue e que o total envolvido nestas evasões fiscais escapa à nossa
imaginação.
"Há inúmeras coisas chocantes nesta história. Uma delas é o facto de se
tratar de um esquema sancionado pelo Estado luxemburguês e não de uma falcatrua
perpetrada apenas pelas empresas. O Governo luxemburguês, liderado pelo actual
presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, assinava com as empresas
acordos secretos para ganhar um euro por cada dez ou vinte euros que as
empresas deixavam de pagar nos seus países, comportando-se como uma espécie de
receptador de bens roubados e violando assim a mais elementar lealdade entre
Estados-membros da UE.
"Estes acordos secretos com as empresas não eram feitos por uns
governantes corruptos, com o fim de meter uns cobres ao bolso, e que agora vão
ser atirados para a cadeia. Estes acordos eram legais. Secretos, para não
enfurecer os outros Estados-membros, mas legais. Legais à luz da lei
luxemburguesa e legais, juram os dirigentes luxemburgueses, à luz das normas
europeias. Porquê legais à luz das normas da UE, que (em teoria) proíbe todas
as ajudas a empresas que possam enviesar a concorrência? Porque, respondem os
luxemburgueses com ar seráfico, “todas as empresas eram tratadas da mesma
maneira”. Qualquer empresa que quisesse fugir aos impostos encontrava no
Luxemburgo uma mão amiga.
"A legalidade desta pouca-vergonha coloca-nos um problema. O problema é
que nos habituámos a definir a lei como o último refúgio da equidade e da
justiça e a considerar o primado da lei como uma característica essencial das
democracias. Mas o que acontece quando a lei apenas defende os mais fortes? O
que acontece quando a lei é não um instrumento para proteger os mais fracos dos
abusos dos mais fortes, como devia ser, mas um instrumento para proteger os
abusos dos mais fortes e para subjugar os mais fracos? O que acontece quando a
lei é iníqua, desumana?
"Vivemos no mundo um ataque aos direitos, à liberdade e à igualdade
também no plano legal. Não são apenas as leis (ou os acordos secretos) que
permitem que os ricos não paguem impostos. São as leis que reduzem os direitos
dos mais fracos, que reduzem os apoios sociais, que criminalizam os protestos,
que impedem as greves, que criminalizam os sem-abrigo.
"As leis tornaram-se demasiado complexas, a sua produção quase secreta e
a sua alteração quase impossível. É duvidoso que um milésimo da população da UE
soubesse em que consistia o Tratado Orçamental antes de ele ser assinado.
Vivemos, na UE, numa camisa-de-forças legal, composta por tratados que ninguém
discutiu nem aprovou, e que poucas pessoas sabem que consequências terão.
Podemos alterá-los? Em teoria, sim. Mas apenas em teoria. E se a lei se
estivesse a tornar um instrumento de ditadura?"
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