(Fotografia tirada por Joaquim Esteves em 11 de Outubro de 2011, na manifestação dos "indignados")
Miguel Gaspar era uma dos mais lúcidos e certeiros jornalistas e comentadores portugueses.
No meio de tanto lixo mediático era sempre um momento de frescura e revelação a leitura atenta das suas crónicas do jornal Público.
Apenas com 54 anos este jornalista deixou-nos demasiado cedo, quando vozes informadas e ponderadas como a sua se tornam mais urgentes.
Na página on -line do público o jornalista apresentava-se assim:
"Aterrei no jornalismo em 1986 vindo directamente do curso de Filosofia. Troquei Platão pela secção de polícias do Correio da Manhã e de idealista passei a tarimbeiro. Não me dei mal: comecei a sonhar em ser jornalista quando vi A Primeira Página, do Billy Wilder. Continua a ser uma fonte privilegiada da minha semiótica jornalística. Como animal de hábitos que sou, passei quase toda a minha vida nos diários. Muitos anos no DN e desde 2007 no PÚBLICO. Um dia escrevo uma tese sobre os dois. Fui crítico de televisão durante dez anos (no DN, no Independente e na Renascença) e hoje não consigo ver televisão. Olhos do ofício. Também fundei e dirigi o site da TSF, em 2000, no auge da bolha da Internet. Gostava de saber onde é que o jornalismo vai aterrar no futuro. Mas isso é outro filme".
Miguel Gaspar vai deixar um grande vazio no jornalismo português.
Em baixo publicamos duas das suas mais lúcidas crónicas sobre a grave situação política portuguesa, a primeira publicada quando do inicio da actual governação e a segunda, há poucos meses, quando se anunciava, com a pompa e a falsidade do costume, a saida da troika de Portugal.
O Governo oculto
Por MIGUEL GASPAR
In Público de 10/11/2009
“Desapareceram a exigência ética
e a convicção de que a corrupção possa ser o extraordinário e não o banal.
“A atmosfera continua carregada. Afinal de contas, as eleições foram
apenas um intervalo no ciclo, já quase banal, de casos judiciais envolvendo
actores políticos, negócios pouco claros, jogos de influência e acusações de
corrupção. Parece mesmo que existem ao mesmo tempo dois governos. Um público,
que aparece à vista de todos no Parlamento ou na televisão, a discutir com a
oposição ou a anunciar medidas. Outro oculto, que longe dos olhares públicos
intervém no mundo dos negócios, capta financiamentos, influencia decisões
empresariais. Qual dos dois é o verdadeiro? Um e outro não estão distantes
quanto parecem. Não só a influência do Governo oculto se estende aos negócios
dos media como a propaganda do Governo público se tornou num formidável
instrumento de ocultação.
“O problema de fundo é político - e ético. Começa na complacência
instalada no regime em relação a problemas como o financiamento partidário, a
promiscuidade entre o universo da política e o universo dos negócios e a
corrupção. Questões que minam a credibilidade pública da democracia. E permitem
questionar em que é que o Governo público é mais do que uma camuflagem por
detrás da qual se tomam as decisões que contam.
“Pacheco Pereira tem razão quando diz que não é possível separar a
justiça da política. A cada novo caso, os partidos encolhem os ombros e repetem
declarações de conveniência sobre como é importante confiar na justiça.
Compreende-se que casos concretos não sejam usados para o combate partidário
quotidiano - em teoria, é até mesmo uma boa prática. Mas na ausência de um
discurso sério contra a corrupção e de uma política que a combata eficazmente,
esses silêncios confundem-se facilmente com uma conivência. Como se cada um
estivesse a proteger os seus telhados de vidro.
“Sem leis efectivas contra a corrupção e sem um sistema jurídico capaz
de julgar com competência e celeridade, a democracia transforma-se num palco
vazio. A complacência que vem do topo contagia toda a sociedade. Os jogos de
influência, os favores, a corrupção, tudo isso flui através de um crivo
alargado que fecha os olhos aos jogos de bastidores. Desapareceram a exigência
ética e a convicção de que é possível viver num sistema político em que a
corrupção seja o extraordinário e não o banal.
“Não é apenas o problema de haver "Estado a mais" que torna
possível esta situação. Ela é também a consequência de uma perda de influência
do poder político perante o poder económico. A desideologização do político
conduziu a uma reificação do económico. Na ausência de valores ideológicos, a
economia tornou-se um valor em si. A desregulação da economia ou a influência
excessiva do Estado - que se verifica em Portugal - concorrem no mesmo sentido.
Um estado de coisas em que os negócios, os grandes negócios, se tornam o centro
da vida política e a política retira o seu poder da capacidade de os
influenciar.
“Uma nova legislatura começa e com ela o desenho de um novo jogo de
equilíbrios entre Governo e Parlamento, à sombra das próximas eleições
presidenciais. O caso dos submarinos primeiro, o Face Oculta depois, incluindo
as certidões extraídas do processo e relativas às conversas entre Armando Vara
e José Sócrates, vieram mostrar que o jogo de equilíbrios será outro. O poder
político está outra vez sob suspeita, a política propriamente dita volta a sair
para intervalo. Sem que fique claro em que medida os timings políticos
influenciam os tempos da justiça. As próprias razões pelas quais cada processo
se torna público num dado momento estão elas próprias sob suspeita. Como se
fossem também parte de um Governo oculto.
“Como se desfaz este nó? Tornou-se demasiado urgente fazê-lo - a
alternativa é deixar que a democracia fique reduzida a uma caricatura, a face
visível de um jogo de sombras. Há respostas possíveis, se mudarmos as regras.
No combate à corrupção, no financiamento partidário, na transparência do
sistema.
“Não é possível continuar assim - e não é a primeira vez que muitos
dizem que não é possível continuar assim. Os custos de olhar para o curto prazo
dos interesses imediatos e dos atalhos mais curtos para os satisfazer em vez de
privieligiar a estabilidade e a credibilidade do sistema político no longo
prazo são elevados. O Governo oculto não pode continuar a esconder-se atrás do
Governo público”.
"PÓS-TROIKA - Do insanável consenso
POR MIGUEL GASPAR
In Público 3 de Março de 2014
"Os beijos roubados já não são o que eram. Há alguns dias, surgiu
nas redes sociais uma série de fotografias em que estranhos beijavam estranhos.
Rapidamente, a coisa tornou-se viral, como agora se diz. Veio a saber-se que
era uma estratégia de marketing. Onde foi parar a espontaneidade? Em Portugal,
a ideia pegou, mas de outra maneira. Foi mais ou menos por essa altura que o
PÚBLICO divulgou, em primeira mão, o Manifesto dos 70 a favor da renegociação
da dívida. Entre os signatários, multiplicavam-se os nomes daqueles que,
assinando este documento, se beijavam pela primeira vez. Manuela Ferreira Leite
e Francisco Louçã, por exemplo, quem os teria imaginado alguma vez na mesma
trincheira? Sou adepto da teoria de que entre certos governantes e certos
deputados da oposição se estabelecem relações de amor/ódio. Era o que via
sempre que Ferreira Leite, quando ministra das Finanças, respondia, com elevado
respeito académico, a Francisco Louçã. Nos tempos que correm, sinto um clima
semelhante entre Passos Coelho e Catarina Martins. Mas não vejo estes dois a
assinarem um manifesto daqui a dez anos.
“O Manifesto dos 70 provou que afinal o consenso em Portugal existe,
mas no sentido oposto ao que o Governo pretende. Em vésperas da visita à sra.
Merkel, o primeiro-ministro não gostou nada da brincadeira. Ainda por cima, o
Presidente da República, enquanto vai, também ele, entoando a melodia do
consenso, ofereceu ao Governo um veto político. Passos Coelho percebeu que
estava na hora de, também ele, beijar um estranho. E convidou António José
Seguro para ir a São Bento, a tempo de a fotografia dos dois juntos ser
publicada nos jornais antes do encontro com a chanceler, em Berlim.
“Sem surpresa, o líder da oposição não deixou que lhe roubassem um
beijo. E acrescentou uma nova palavra-chave aos termos que compõem esta crise.
A “consenso” e a “irrevogável”, Seguro acrescentou um solene “insanável”.
Ficávamos sem entender para que foram precisas três horas para os dois ficarem
a saber o que já sabiam. Seguiu-se o pim-pam-pum dos inflamados amuos e
contra-amuos entre PSD e PS, uma conversa vazia que o país justamente despreza
e deixa correr em circuito fechado.
“Só em Berlim e nos beijos maternais de Angela Merkel, Passos encontrou
consolo. A chanceler precisa do bom aluno para não se ver grega perante os seus
eleitores e faz de conta que perdoa tudo. Portugal pode escolher o programa
cautelar se bem o entender. E desfez a tragédia do consenso perdido. Quase uma
carta de amor. Mas se há algo insanável nesta crise, é que o único consenso que
conta é o que a chanceler pensa. Só que ela, tal como a rapaziada cá de casa,
nem sempre diz aquilo que pensa. Há amores assim...”.
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