"Aclare-se o regime
por João Miguel Tavares
In Público de 05/06/2014
“Portugal é o país das tretas. Eu não quero parecer demasiado negativo,
porque Portugal também é um país agradável, de gente boa, comida apetitosa e um
excelente sol. Mas a quantidade de tretas, de jogos de cintura, de pequenos
teatrinhos, de uma no cravo e outra na ferradura, de dar com a mão esquerda
para tirar com a direita, de costas que servem alternadamente para a pancadinha
e para a facadinha, de encenações parolas com o único objectivo de não ter de
enfrentar os “cornos do destino”, como escreveu Natália Correia, é
absolutamente impressionante. Mais: são artimanhas e simulações transversais a
toda a sociedade, que culminam nas decisões do Tribunal Constitucional.
“Paremos um pouco neste dia 5 de Junho de 2014 e olhemos à nossa volta.
Temos um governo que fingiu que a troika se tinha ido embora a 17 de Maio, só
para poder festejar o acontecimento antes das eleições europeias, quando ainda
nem sequer conseguiu fechar a 12.ª avaliação, e não se sabe quando o fará.
Tretas e mentiras. Temos um líder da oposição que inventou umas eleições
primárias à pressa, com um formato do qual discordava abertamente há três anos,
só para conseguir arrastar-se mais uns meses à frente do PS. Mentiras e tretas.
E temos um acórdão do Tribunal Constitucional que, pela segunda vez em três
anos, decreta uma inconstitucionalidade em suspensão: o Orçamento de 2014 é
inconstitucional, mas só de Julho a Dezembro. O Palácio Ratton entrou em saldos
– vende inconstitucionalidades com 50% de desconto. Seria interessante
averiguar se meia-inconstitucionalidade não é, ela própria, inconstitucional,
mas se calhar é melhor esquecer isso, que já temos problemas que cheguem.
“Mas, esperem, que as tretas não acabaram. O Governo, depois de fingir
que achava mesmo que pudesse ser considerado constitucional um Orçamento em que
os cortes na função pública começavam nuns obscenos 675 euros brutos, agora
inventou uma “aclaração” sobre o acórdão do TC, que – tentem acompanhar-me –
não é bem uma aclaração, pois vai com uma sugestão de nulidade lá pelo meio,
sendo que ao mesmo tempo o Governo não tem competência para requerer aclarações
ao TC, porque só os autores do pedido de fiscalização o podem fazer. Em resumo:
tretas, tretas e mais tretas.
“E tudo isto porquê? Porque Pedro Passos Coelho, muito em particular,
que tanto gosta de falar em mudar de vida, foi mais um daqueles que fizeram uma
limpeza no disco rígido mal chegou ao Governo. Nos seus tempos de oposição,
considerava a revisão constitucional uma prioridade, mas assim que chegou a São
Bento iniciou o seu Governo de costureirinha da Sé, sempre de agulha e dedal
nas mãos, corta aqui, cose ali, vê a bainha, faz uns remendos, tudo muito
improvisado, tudo muito mal cosido, tudo com a cabeça muito baixa e o olhar
fixo a um palmo do nariz, enquanto o país emagrecia dentro do mesmo fato, cada
vez mais coçado e esgarçado.
“Na verdade, não é só o acórdão do TC que tem de ser aclarado. É este
regime de infinitas tretas em que demasiada gente – ministros, juízes,
secretários-gerais – não têm coragem de fazer aquilo que se impõe. Uns
agarram-se a princípios abstractos de igualdade, proporcionalidade, protecção
de confiança ou razoabilidade, ignorando olimpicamente o estado do país. Outros
só fazem orçamentos de desenrasca, sem um vislumbre de reformas sistemáticas ou
de medidas estruturais. Seria caso para dizer “estão bem uns para os outros”,
não fosse no meio de uns e de outros estarmos nós”.
Sem comentários:
Enviar um comentário