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segunda-feira, 6 de julho de 2009

Há 80 anos - Primo de Rivera elabora uma Constituição para a sua ditadura

Notícia da instauração da ditadura por Primo de Rivera (Setembro de 1923)


Instaurada em Espanha a 13 de Setembro de 1923, a Constituição da Ditadura de Primo de Rivera foi elaborada pelo ditador espanhol em 6 de Julho de 1929, passam hoje 80 anos.
A propósito dessa efeméride divulgamos hoje um estudo, publicado por nós na revista História, em 1998, sobre as “Relações Luso-espanholas durante a Ditadura de Primo de Rivera”, que durou entre Setembro de 1923 e Janeiro de 1930.
É objectivo deste texto fazer um balanço do que se conhece àcerca das relações entre Portugal e Espanha durante o período em que durou essa ditadura .
Grande parte das obras que se têm escrito àcerca das relações entre Portugal e Espanha ao longo deste século, debruçam-se geralmente sobre o período que em Portugal corresponde ao regime do "Estado Novo" e principalmente à fase da guerra civil de Espanha.
Com raras excepções, as referências a essas relações no período em que vigorou a ditadura de Primo de Rivera (1923-1930), são analisadas ou de forma superficial, ou esbatendo-se no estudo mais geral dessas relações, ora centrando-se no período republicano, ora no período da ditadura militar portuguesa instaurada em 28 de Maio, dividindo quase sempre o relacionamento com a ditadura de Primo de Rivera em dois períodos descontínuos, "antes e depois" do 28 de Maio.Apenas no estudo de Hipólito de La Torre Goméz, citado na bibliografia anexa, o período referido é abordado em bloco.
Baseando-se exclusivamente em fontes secundárias, pretende-se aqui fazer um ponto da situação sobre as relações luso-espanhola no período referido, procurando relançar algumas questões em aberto para a sua compreensão e encontrar, numa época que correspondeu em Portugal ao final de um regime e ínicio de outro, o modo como a situação política interna portuguesa marcou ou não rupturas ou continuidades nesse relacionamento.


OS ANTECEDENTES - RELAÇÕES LUSO-ESPANHOLAS ENTRE O FINAL DA MONARQUIA PORTUGUESA E A INTAURAÇÃO DA DITADURA EM ESPANHA.

No início do século XX uma das principais preocupações da diplomacia portuguesa centrou-se na crescente aproximação entre a Espanha e a Inglaterra, revelada ao mais alto nível quando Afonso XIII e Eduardo VII se encontraram em Cartagena no ano de 1907.
Tal situação motivou a insistência do governo português junto do inglês para que este confirmasse os seus compromissos históricos com Portugal.
A Inglaterra confirmou a Portugal que o entendimento com Espanha visava apenas "manter o "statu quo" na região do Mediterrâneo ocidental - era Marrocos e a possível penetração alemã que estavam em causa- sem que se tivesse estabelecido entendimento algum entre a Espanha e a Grã-Bretanha que prejudicasse Portugal" (FERREIRA, Medeiros, ob.cit., p.24).
Contudo a preocupação portuguesa era fundamentada, pois hoje sabe-se que o almirantado britânico defendia que a aliança mais importante era com a Espanha : "As pretensões alemãs sobre Marrocos estavam então bem presentes e o Norte de África revelou-se bastrante mais importante para as potências europeias do que a África Negra" (FERREIRA, Medeiros, ob.cit., p.24).
Entre 1907 e 1913 a diplomacia espanhola desenvolveu uma série de iniciativas de aproximação aos países da "Entente", destacando-se o acordo hispano-francês de 1912 e, no ano seguinte, a visita triunfal de Afonso XIII a Paris.
Estabelecendo "as mesmas alianças extra-peninsulares " de Portugal, a Espanha contribuiu para a "desvalorização da posição estratégica e política de Lisboa", face a Paris e Londres.(FERREIRA, Medeiros, ob. cit., p.24).
A proclamação da República portuguesa em 1910 foi outro factor que contribuiu para a aproximação da Espanha e da Grã-Bretanha, tendo o monarca espanhol efectuado, entre 1910 e 1912 , "inúmeras viagens a Londres para discutir a possibilidade de uma intervenção espanhola em Portugal, com o pretexto da anarquia em Lisboa" (FERREIRA, Medeiros, ob.cit., p.27).
A partir daquela data o monarca espanhol vai passar a intervir, mesmo que de forma indirecta, na política interna portuguesa, apoiando e protegendo os monárquicos portugueses que, refugiados em território espanhol, prepararam as incursões monárquicas de Outubro de 1911 e Julho de 1912.
Contudo o fracasso das tentativas restauracionistas, as desavenças internas dos monárquicos portugueses e as próprias pressões inglesas junto do governo espanhol, terão contribuido para diminuir a hostilidade espanhola em relação à República portuguesa: "o reconhecimento da República por parte da Inglaterra, após as eleições para as constituintes republicanas, no verão de 1911, veio facilitar a melhoria nas relações entre Lisboa e Madrid, pois seria a partir do reconhecimento formal do regime britânico, a 11 de Setembro de 1911, que logo, e de imediato, "precipitaram" outros actos formais de reconhecimento por parte de uma série de potências europeias : Espanha, Alemanha, Áutria-Hungria, Itália" (OLIVEIRA, César, Cem Anos..., p.21).Londres temia principalmente a instabilidade política da península.
A acção do embaixador de Portugal em Madrid, José Relvas, terá sido igualmente determinante, tendo conseguido que o governo espanhol pusesse "termo às facilidades permitidas" aos "exilados monárquicos em Setembro de 1912, obrigando mesmo muitos a abandonar o território espanhol" (FERREIRA, ob.cit., p.28).
Tal melhoria no relacionamento entre os dois estados não obstou a que Afonso XIII espreitasse uma oportunidade para intervir em Portugal.
A entrada de Portugal na 1ª Guerra ao lado dos aliados permitiu uma aparente recuperação do peso de Portugal, face à Espanha, no relacionamento com a Grã-Bretanha.
Para tal situação não contribuiu apenas o intervencionismo português mas, talvez principalmente, o conjunto de condições impostas por Espanha para intervir na guerra ao lado dos aliados.Pedia este país, como compensação, Tânger, Gibraltar e "Mão livre em Portugal", de acordo com um documento datado de 1917 do Foreign Office inglês: "(...) as exigências de Afonso XIII, nomeadamente a de ter as mãos livres em relação a Portugal, terão levado o governo inglês a prescindir da colaboração espanhola durante a 1ª Guerra Mundial e a preferir a neutralidade de Madrid" (FERREIRA, Medeiros, ob. cit., p.33).
Contudo, a conferência de Paz, iniciada a 28 de Abril de 1919, depressa se revelou frustrante para Portugal.Começou logo quando o presidente dos Estados Unidos propôs a nomeação da Espanha como um dos quatro membros do Conselho Executivo da Sociedade das Nações, motivando os protestos do representante português a essa conferência, Afonso Costa.
Outra reivindicação portuguesa em relação à Espanha era a recuperação de Olivença, mas também esta pretensão nunca foi aceite."Portugal que fora beligerante não consegue readquirir Olivença à Espanha e não faz parte do Conselho Executivo da Sociedade das Nações!" (FERREIRA, Medeiros, ob.cit., p.38)
Mas não se ficou por aqui o "vexame" de Portugal.Os aliados revelaram igualmente preferência pela Espanha no domínio dos investimentos económicos, beneficiando a modernização do porto de Vigo com capitais norte-americanos, ameaçando os interesses portugueses neste domínio.
"O tratamento dado pelas grandes potências vencedoras (...) a Portugal e a Espanha foi favorável a este último país e pôs termo, quiçá de forma súbita e inesperada para os paladinos republicanos que advogaram as vantagens e benefícios da participação portuguesa na Guerra, às pretensões de hegemonia portuguesa na representação ibérica junto das potências vitoriosas"(OLIVEIRA, César, Cem Anos..., p.25).
Se aparentemente, no pós-guerra, a Espanha bateu Portugal no plano das relações internacionais, foi a partir de 1919 que o nosso vizinho ibérico abandonou definitivamente a vontade de intervir em Portugal, iniciando uma política de respeito, amizade e aproximação, iniciando-se, nas palavras de Torre Goméz, "um abrandamento positivo" no estado de tensão entre as nações ibéricas.(GÓMEZ,Torre,ob.cit., p.11)
Para tal situação muito terá contribuido a derrota definitiva do sonho de restauração monárquica, na "guerra civil", provocada pela instauração da chamada "Monarquia do Norte", entre 19 de Janeiro e 13 de Fevereiro de 1919.
Aliás, esses acontecimentos marcaram a última tentativa séria de intervenção espanhola na política interna portuguesa, tendo aquele país procurado aproveitar a sua posição privilegiada na Sociedade das Nações para obter luz verde numa acção dessas, "tendo em vista assegurar a estabilidade e, eventualmente, a restauração da Monarquia" (OLIVEIRA, César, Cem Anos...,p. 26).
Mas também as crescentes preocupações político-militares com que a Espanha se confrontava no Norte de África, cuja situação se agravou a partir de 1920, contribuiu para essa nova postura. Entre procurar salvar o que tinha nesse território e meter-se numa aventura em Portugal, de efeitos imprevisíveis, os espanhóis optaram pelo caminho mais seguro.
Não se pode igualmente pôr de lado, para explicar a mudança de atitude do nosso vizinho ibérico, o facto de a Espanha se sentir agora mais segura, face a Portugal, na esfera internacional, após as vitórias obtidas na conferência de paz.
Por sua vez a Espanha podia substituir as suas pretensões de domínio político-militar sobre Portugal por uma mais subtil tentativa de domínio económico, bem patente na entrevista concedida pelo monarca espanhol, em Setembro de 1922, ao "Diário de Notícias", onde, depois de sugerir vários temas para uma discussão entre as duas nações (vias férreas, pescas, problemas cambiais, tratado de comércio, melhoria das ligações ferroviáris), lançava a ideia de um grande empréstimo espanhol a Portugal (entrevista citada por Medeiros Ferreira, ob. cit, pp.34-35).

A DITADURA DE PRIMO DE RIVERA

Em 13 de Setembro de 1923, por golpe de Estado, o general Primo de Rivera instaurava em Espanha uma ditadura militar.
Filomeno da Câmara, um dos militares que mais se destacou no conjunto de iniciativas militares para instaurar uma ditadura militar em Portugal, que culminaram no 28 de Maio, explicava, do seguinte modo, a origem daquele regime, em prefácio datado de Agosto de 1926, para a obra de António Ferro "Viagem à Volta das Ditaduras" :
"A agitação comunista de Barcelona, as aspirações separatistas da Catalunha, o movimento republicano e o problema de Marrocos, tornavam um conjunto de graves problemas nacionais, para cuja resolução impertinentemente se revelavam incapazes os desacreditados partidos do constitucionalismo liberal e parlamentarista, a cuja sombra, senão por agência, medrava a corrupção administrativa" (Viagem à volta..., pp. 33 e 34).
Situação comum à que se passava na maior parte das nações europeias desse período, era o receio das classes médias perante o exemplo da revolução bolchevique de 1918 e a incapacidade das democracias parlamentares em enfrentar a crescente agitação social "que promovia o crescimento das forças operárias que viam na Revolução Russa vitoriosa e duradoira um exemplo a seguir" (OLIVEIRA, César, Cem Anos..., p.24).
As consequências da guerra sobre a economia de todas as nações europeias, mesmo entre as que se haviam mantido neutrais, explicam em parte as graves tensões sócio-económicas que então se registaram, tendo atigido um ponto alto em Espanha com a greve geral de 1917, que na Catalunha gerou um clima pré-insurreicional, unindo republicanos e nacionalistas catalães.Toda a Espanha, de 1917 a 1923, viveu num clima de instabilidade crescente.Em cerca de sete anos foram empossados 13 governos diferentes.
Mas uma outra causa terá tido um peso significativo: O conflito no Norte de África, no territótio do Rif, em Marrocos, onde, desde 1920, as populações resistiam militarmente, e de forma organizada, ao domínio espanhol, unidos à volta de Abd-el-Krim, que em 1921 conseguiu infligir ao exército espanhol uma pesada derrota em Annual (o chamado "Desastre de Annual").
"As tribos de Abd-el-Krim causaram mais de 12.00 baixas e apoderaram-se de 14.000 fusis. 1.000 metralhadoras e 115 peças de artilharia. Em poucos dias perderam-se 5.000 kilómetros quadrados e a própria Melilla esteve em perigo".(PANIAGUA,Javier, ob.cit., pp.66 e 67)
Essa tremenda derrota abalou o poder político de Madrid e dividiu os militares sobre a solução a seguir.
A historiadora espanhola Genoveva Queipo de Llano acentua o peso da questão marroquina como causa do golpe de Estado de Primo de Rivera, o qual, na sua opinião, não "foi produzido por medo da revolução, mas pela incapacidade do próprio sistema parlamentar, num momento em que a derrota de Marrocos dava uma especial relevancia ao Exército" (QUEIPO DE LLANO,Genoveva,ob.cit., p.4).
Quanto aos apoios do ditador, António Ferro, no seu modo peculiar, resumia-os do seguinte modo:
"Primo de Rivera tem a Espanha a seu lado, a Espanha disciplinada, a Espanha solarenga da província, a Espanha que não lamenta a ausência da liberdade porque nunca abusou dela...A Espanha que precisa de assunto para conversar nos cafés não gosta de Primo de Rivera(...)"(FERRO,António, Viagem à volta..., p.227).
O novo regime foi, no seu início, apoiado por vários sectores de Espanha:"Na imprensa madrilena dos dias imediatamente posteriores ao 13 de Setembro é bem perceptivel uma clara popularidade de Primo de Rivera, exceptuando na de tendência republicana, que mostra algumas reticencias. Nenhum político destituido pelo golpe o condenou de forma imediata. Os socialistas apareceram em posição expectante, e não mostraram qualquer apoio à classe política que havia sido afastada. Quanto ao restante movimento operário, os comunistas naquele momento tinham uma força muito reduzida, e os anarquistas por causa do terrorismo, tinham uma força escassa. Entre o mundo intelectual, que com o passar do tempo se converteria na mais clara oposição ao regime primorriverista, apenas Unamuno, Azaña e Pérez de Ayala se mostraram desde o principio de forma inequívoca contra o ditador"(QUEIPO DE LLANO,Genoveva, ob.cit., p.6).
Não é nosso propósito analisar a evolução da ditadura espanhola, mas apenas contribuir para perceber a sua origem e encontrar nela, não só algumas razões para o relacionamento que teve com Portugal, como o fascínio que exerceu sobre alguns sectores polítio-sociais e intelectuais portugueses.
Nesta perspectiva penso ser ainda de abordar uma última questão que o assunto suscita- a inevitável comparação entre o regime de Mussolini, que tinha chegado ao poder no ano anterior, e o de Primo de Rivera.
O ditador espanhol era admirador de Mussolini, mas desde logo se revelou diferente na sua acção e no seu estilo.
Mesmo os simpatizantes portugueses desses dois regime se aperceberam desde logo das diferenças.
Para Filomeno da Câmara, no texto acima citado, a ditadura de Primo de Rivera não era um "movimento popular contra-revolucionário como o da Itália, no qual o exército regular não tomou parte. Daí a falta de atmosfera, a indiferença duns e a hostilidade de outros, que o golpe de Estado encontrou no seu início.
"Primo de Rivera não é um homem espectaculoso nem foi em qualquer fase da sua vida jornalista incendiário ou orador subversivo como Mussolini"(ob.cit., p.34).
Para António Ferro "Primo de Rivera, amado pela Espanha, é uma figura popular que não tem popularidade...o ditador confunde-se demasiado com a turba, anda poucas vezes de automóvel, dança no Ritz, janta no Palace, frequenta os teatros baratos, os teatros do povo..." (FERRO, Viagem..., p228).
Nota a historiadora Genoveva Queipo de Llano que os verdadeiros fascistas espanhois consideravam a ditadura demasiado prosaica e pouco moderna (ob.cit., p.12).

AS RELAÇÕES DA DITADURA ESPANHOLA COM A REPÚBLICA PORTUGUESA(1923-1926)

Quando Primo de Rivera assumiu o poder, em Portugal era Presidente da República Manuel Teixeira Gomes, recentemente eleito pela câmara dos deputados, a 6 de Agosto de 1923, tendo derrotado Bernardino Machado, o candidato apoiado pelo recém criado (em Abril desse ano) Partido Nacionalista.
Manter-se-ia no cargo até renunciar em 11 de Dezembro de 1925, sendo substituido pelo seu rival Bernardino Machado, último presidente da Primeira República.
Teixeira Gomes era um diplomata experiente, tendo sido nomeado nosso representante junto do governo de Londres, logo em 1911, ainda pelo governo provisório, cargo que ocupou até ser demitido, e preso à sua chegada a Portugal, por Sidónio Pais , em Janeiro de 1918.
Após a derrota da "Monarquia do Norte" volta a ser nomeado para uma missão diplomática, desta vez como ministro português em Madrid, cargo que exerceu por pouco tempo, entre Fevereiro e Abril de 1919, sendo de novo transferido para Inglaterra e tendo feito parte da delegação portuguesa à Conferência de Paz e à Sociedade das Nações.
No meio da instabilidade geral em que o país viveu entre 1923 e 1926, tendo conhecido 9 governos nesse período, perante uma agitação social crescente, várias tentativas insurreccionais de tendências diversas, mas que davam aos militares uma influência cada vez maior na vida política, o facto de Teixeira Gomes ter permanecido no seu posto quase até ao fim deste período terá contribuido para alcançar um certo prestígio junto das autoridades espanholas, evidente no teor da correspondência diplomática transcrita por Torre Goméz na obra citada.
Não terá sido igualmente estranha a experiência diplomática do próprio presidente, que incluiu até uma estadia, mesmo que curta, em território espanhol, usando Teixeira Gomes um espanhol fluente nos encontros que mantinha com o representante de Madrid em Lisboa.
Por ocasião da visita que Teixeira Gomes realizou a Londres, no início do seu mandato, o embaixador espanhol na capital britânica, em correspondência enviada para Madrid, referia-se em termos elogiosos ao seu encontro com o presidente português: "Continuou o Presidente eleito observando que,embora pela sua formação política se opusesse a todo o acto de força, não pode pelo menos deixar de reconhecer que todos os povos se acham sedentos de ordem e autoridade no seu Governo e Administração, pelo que formula votos sinceros de êxito para o regime que em Espanha se acaba de instaurar, já que tudo o que sucede no nosso país é seguido com a maior atenção em Portugal, revestindo para esta Nação a maior importancia pela sua proximidade com a nossa e similaridade de raça e língua. De nenhum modo, declarou, se fixa na forma de governo, estimando que cada país é livre para escolher a que mais lhe convenha, seja Monarquia em Espanha ou República em Portugal, nem uma das Nações pode criticar o regime da outra simplesmente porque é diferente, nem deve influenciar na política que cada uma deve seguir em relação à outra. Como exemplo prático deste seu critério assegurou-me que sempre o manifestou em Portugal, inclusive aos emissários republicanos espanhois em Lisboa(...)" .(excerto da carta do embaixador de Espanha em Londres para o subsecretário de Estado espanhol, datada de Londres de 24 de Setembro de 1923, transcrita por Torre Gómez na obra citada,pp.215 e 216. e aqui traduzida de forma adaptada).
O próprio Primo de Rivera, em entrevista concedida a António Ferro reafirma o desejo de um relacionamento entre as duas nações baseado no respeito mútuo pelas suas diferenças políticas :
"Sou partidário duma política fraternal com Portugal. É bom, porém esclarecer este ponto. Eu sou um grande amigo de Portugal mas um inimigo, muito sincero, do Iberismo. Irmãos, sim, mas vivendo em casas diferentes...Nem desejo saber como Portugal se governa. A Espanha não tem que se meter onde não é chamada" .E logo na ocasião, em Fevereiro de 1924, revelava a vontade de visitar Portugal, "talvez ainda este ano..."(FERRO,Viagem...,pp.234 e 235).
Em Dezembro de 1924, provando a crescente aproximação entre os dois Estados, teve lugar em Madrid, nas instalações da Biblioteca Nacional, uma importante "exposição camoneana", para cuja inauguração o município dessa cidade convidou o governo português, a Câmara Municipal de Lisboa, as Universidades e outras agremiações a fazerem-se representar. A delegação portuguesa seria recebida pelo soberano espanhol que assistiu, na companhia de toda a família real, à inauguração dessa exposição ("As Festas de Camões em Madrid", in ABC, nº 232, de 25/12/1924).
Esta política de aproximação entre as duas nações durante o período da ditadura espanhola e a chamada "política de lealdade para com Portugal" é reafirmada pelos estudos de Torre Goméz sobre as relações peninsulares nesse período, concluindo que "a partir de 1923, existe um ditador em Espanha que, desde o princípio do seu mandato e portanto, muito antes de os portugueses caírem também sob um regime de "ordem", declara e demonstra com factos respeitar as instituições, a soberania e até a sensibilidade nacional do povo vizinho" ( GOMÉZ, Torre, ob. cit., p.12).
Mas se esta era a realidade no bastidores dos gabinetes diplomáticos e governamentais, o reflexo dos acontecimentos espanhois junto da opinião pública portuguesa evidenciava velhas desconfianças.
A opinião pública republicana tinha-se habituado durante treze anos a identificar o "perigo espanhol" com o "perigo da reacção monárquica", não sendo de estranhar "que quando a monarquia vizinha cai em poder de um Directório Militar, surjam certas apreensões que davam como iminente uma intervenção espanhola em Portugal" (GOMÉZ, Torre, ob.cit.,p.109).
Vai nesse sentido o teor da informação enviada a partir de Tuy pelo cônsul de Portugal para o Ministro dos Negócios Estrangeiros português que, baseando-se apenas em rumores e boatos alertava para o facto de " na Côrte de Madrid se pensar a sério n'uma intervenção armada em Portugal"(Documento transcrito por Torre Gómez, ob.cit., p.218).
Também houve quem visse nos conflitos pesqueiros dos verões de 1924 e 1925 uma prova das dificuldades de relacionamento entre as duas nações. Contudo, não só os dois Estados procuraram uma solução apaziguadora para a resolução desses casos, como as dificuldades pontuais de relacionamento entre dois estados não anularam, só por si, a vontade de melhorar o relacionamento entre eles.
Aponta-se ainda o facto, comprovado, de o governo espanhol ter tido conhecimento das conspirações militares contra a República portuguesa, nomeadamente em relação à intentona de 18 de Abril de 1925, para tentar provar a má fé do regime espanhol.
Mas o conhecimento desses factos não comprova o envolvimento desse Estado.A atitude da representação diplomática espanhola em Lisboa, em relação aos conspiradores que procuraram refúgio naquela delegação, revelou, pelo contrário, a vontade espanhola de não desagradar ao governo português. O representante espanhol em Lisboa, em carta enviada a Primo de Rivera, datada de 21 de Abril de 1925 escrevia que o facto de ter aceite o pedido de refugio (e não asilo) solicitado pelos militares envolvidos na falhada intentona, não significava que quisesse "intervir na vida política portuguesa", mas apenas defender esses oficiais de possíveis represálias que pusessem em causa a sua integridade física, frisando mesmo ter o governo português "agradecido sinceramente o meu procedimento no que respeita aos oficiais portugueses " (transcrito por Torre Gómez, ob.cit., p.225).
Para o historiador espanhol o "desenlace reaccionário" foi um processo próprio da política interna portuguesa, servindo o caso espanhol apenas de exemplo
E aqui reside a posição de outra parte da opinião pública portuguesa, a opinião conservadora, em crescimento, e que via na ditadura espanhola uma possível aliada para os seus intentos:"(...) o interesse da imprensa portuguesa pelos acontecimentos de Espanha, se não assumia frontalmente a necessidade de em Portugal se seguir o exemplo dado pela iniciativa de Primo de Rivera mostrava, contudo, a importância que a solução escontrada pelo Exército espanhol não poderia ser ignorado num Portugal envolvido num ciclo permanente de crises políticas, de instabilidade, de agitação social e de desentendimento partidário" (OLIVEIRA, César,Portugal e a II República...,p.45).
Grande parte das interpretações sobre o relacionamento entre o regime de Primo de Rivera e a República Portuguesa baseia-se quase sempre numa dessas duas visões : ora na desconfiança dos republicanos face a Espanha e ao regime ditatorial; ora na identificação dos sectores mais conservadores e reaccionários com esse regime, apontando-se até todo um conjunto de encontros ibéricos após o 28 de Maio para acentuar a diferença de tratamento que a ditadura espanhola teria dado aos dois regimes portugueses.
Contudo, e na opinião de Torre Gómez, o relacionamento com Portugal no pós 28 de Maio foi a continuidade das boas relações oficiais entre os dois estados anteriormente iniciadas.
Existe um outro factor, que geralmente é esquecido, para explicar porque é que o bom relacionamento só começa a ter marcas visiveis após o 28 de Maio. Referimo-nos à questão marroquina que só seria resolvida em 1926, mais precisamente com a rendição de Abd-el-Krim, ao exército francês, a 26 de Maio de 1926, isto é, dois dias antes do golpe militar em Portugal.
Até essa altura, toda a prioridade nas relações externas espanholas ía para a resolução da questão marroquina.
O facto de os guerrilheiros marroquinos, julgando o território espanhol controlado, terem, em 1925, atacado as posições francesas do norte de África, aproximou a Espanha da França, que procuraram coordenar esforços para combater o inimigo comum, situação que contribui para a solução do problema em 1926.
Só então o regime espanhol estava em condições para se virar a sério para a resolução dos diferendos que mantinha com Portugal, num momento em que neste país começava a vigorar um regime que, teóricamente, lhe era políticamente mais favorável.

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