A primeira questão que se coloca é se existe ou não contradição entre as palavras ENTRUDO e CARNAVAL utilizadas para definir este período.
O termo ENTRUDO, para identificar a época que antecede a quaresma, parece ser o mais antigo usado em Portugal, derivando do latim INTROITU (acto de entrar, começo, introdução).No "Dicionário de Língua Portuguesa" coordenado por José Pedro Machado(1), ENTRUDO significa os três dias que precedem imediatamente a entrada na quaresma e o mesmo que CARNAVAL(2).Contudo, no "Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa",dirigido pelo mesmo José Pedro Machado, refere-se que a identificação daquele termo com o carnaval verificou-se apenas na Península Ibérica.(3).
Embora o autor anterior dê o mesmo significado aos dois termos, essa identificação não é totalmente pacífica. O mesmo autor, em obras e datas diferentes, aponta a origem da palavra CARNAVAL do italiano "carnevale"(4) e do francês "carnaval"(5). Seja como for , a palavra está relacionada com o uso e abuso do consumo de carne no período que antecede a quaresma e mesmo com o significado mais lascivo do termo.
Em Portugal, o seu uso é mais recente que o de "entrudo", para identificar essa época, começando a ser utilizado a partir do séc. XVI. Contudo, se o "entrudo"se identifica com os três dias antes da entrada na quaresma, o Dicionário editado pela Sociedade de Língua Portuguesa identifica o termo "Carnaval" com "os dias, semanas ou meses, conforme os usos dos países, que precedem a Quaresma"(6).
Parece-nos assim que utilizar os dois termos como sinónimos não será totalmente pacífico sendo uma questão que fica em aberto. Também, pelas várias referências que encontramos àqueles dois termos, parece-nos que a palavra "entrudo" se refere principalmente ao calendário litúrgico, enquanto o termo "carnaval" se identificará melhor com os festejos populares característicos da época.
Quanto à origem dos festejos carnavalescos, perde-se em remotas tradições populares pré-cristãs, relacionadas com a comemoração do fim do Inverno e do início da Primavera, ou com primitivos cultos de fertilidade, ligados a esta estação do ano, que podemos encontrar em quase todos os povos:
“(...) as características de transgressão e desordem dos festejos carnavalescos não podem ser desligadas do modo como estes se situam num ponto de passagem particularmente importante do calendário cerimonial anual:a transição entre o ciclo do Inverno e o ciclo da Primavera . Como sugerem numerosos estudos comparativos, em situações similares é generalizado o recurso a rituais que encenam uma momentânea subversão da ordem social, seguida da sua ulterior restauração. Esta última, caso da tradição popular europeia, é assegurada - uma vez passada a quaresma - por intermédio dos rituais ligados ao ciclo da Primavera.(...). O Carnaval antecipa simultaneamente ideias de regeneração da fertilidade e de retorno da abundância que se tornarão dominantes nos cerimoniais ligados ao ciclo da Primavera. É a essa luz que pode ser interpretada a sua marcação alimentar. E é igualmente nessa perspectiva que deve ser encarado o conteúdo erótico que caracteriza alguns dos rituais carnavalescos.” (7).
As mais antigas festas relacionadas com o carnaval ,de que há conhecimento, eram as dedicadas a Ísis e ao boi Ápis, no Egipto. Mas aquelas sobre as quais mais se conhece eram as consagradas pelos gregos a Dionísio, deus da vitalidade, a quem as bacantes, devotas do seu culto, dedicavam várias cerimónias, durante os três meses de Inverno, que se baseavam na realização de danças frenéticas, também chamadas de "festas de Bacanais". Atenas tentou controlar o frenesim desorganizado dessas festas, instituindo quatro grandiosos festivais anuais intitulados “dionisíacos”. Desses quatro, o mais antigo era o das “Antestéricas”, celebrando-se nos finais de Fevereiro, durante três dias. Um dos principais actos dessa festa era provar o vinho do Outono anterior. O último dia era dedicado ao culto dos mortos.
Também os romanos realizavam nessa época do ano as “Saturnais”, festas em honra do deus Saturno, protector da agricultura e das sementeiras. Estas festas incluíam no seu programa vários divertimentos públicos alusivos ao reinado de Saturno, identificado como um reinado de ouro, de fertilidade e felicidade.
Segundo uma lenda popular recolhida no concelho de Torres Vedras, existia no tempo de Cristo um santo que gostava muito de carne, chamado de Stº Entrudo, fazendo grandes festas com muitos convidados, onde só se comia carne. Quem não estava contente com essa situação eram os pescadores, que não vendiam o seu peixe e foram queixar-se a Jesus Cristo, "que então definiu os dias em que se podia comer carne, dançar e fazer festas, e marcou a época para os pescadores, a quaresma, durante a qual não se podia comer carne, nem dançar ou fazer festas "(8).
Foi Santo Ambrósio, bispo de Milão, nascido em 340 da nossa era, que obteve do papa autorização para que os habitantes da sua diocese se pudessem despedir dos prazeres carnais (alimentares, e não só), antes de entrarem na meditação da quaresma .
"Para refrear a alegria demasiado livre das Lupercais , -festas pagãs - , a Igreja , não podendo suprimir a festa, tentou revertê-la à sua feição original, celebrada na véspera da Quaresma. Assim trocaram o seu nome pagão pelo de carnevalem, ("supressão de carne" ou "adeus carne!") "do qual depois se fez Carneleval, Carneval e finalmente Carnaval. Da mesma forma Entrudo - Introito - significa "entrada na Quaresma (...)".
"A quadra do ano consagrada à celebração das festas pagãs foi adoptada pelos cristãos ; assim, o Carnaval começava primitivamente a 25 de Dezembro, abrangendo portanto as festas do Natal, do Ano Bom e a dos reis .(...)". (9).
Curiosamente, ainda hoje, em Espanha, é costume usar máscaras no dia de Natal .
O início da Primavera, por anunciar para o mundo cristão o jejum da Quaresma , levou a que se identificasse esta época como um período de excessos, principalmente nos países mais católicos da Idade Média , como a Itália , a França ou a Espanha.
Nessa Época, o Carnaval era uma festa de contestação à ordem social feudal. Progressivamente, e no final da Idade Média, essa festa foi sendo apropriada pela realeza como forma de manifestar a ordem da sociedade.
O Carnaval transformou-se num cortejo alegórico de toda a sociedade da época, onde se criticavam os grupos contestatários da centralização do poder, o alto clero e a classe senhorial, e onde se representavam as diferentes épocas históricas do passado da monarquia, como forma de acentuar o passado comum.
A Igreja procurou controlar os excessos da época de carnaval, instituindo em sua substituição festas de carácter litúrgico e tomando a direcção de festejos como a festa dos Doidos, a dos Inocentes, a do Burro .
DO RENASCIMENTO AO SÉCULO DAS LUZES
Tornaram-se famosos os grandiosos festejos de Carnaval na Itália renascentista. Foi aqui que, nos séculos XV e XVI ,se criou a moda das mascaradas públicas e de rua.
"Na cidade Eterna, até 1506, êsses divertimentos constavam de jogos florais, corridas de touros bravos e carros triunfais nas arenas romanas, tumultuosas e variadas mascaradas, procissões gigantescas, civis e religiosas, que se desenrolavam através das ruas, entre a veemente alegria da populaça(...)".
"Viram-se em Roma cavalgadas esplêndidas, dirigidas por altas personagens da aristocracia, caçadas de animais ferozes em plena praça pública, representações teatrais com deslumbrantes scenários, resplandescentes de jóias, sêdas, veludos e perfurmes de flores maravilhosas, bailes de máscaras que davam brado pela sua sumptuosidade e graça decorativa(...)"
"O Carnaval de Veneza foi com certeza mais célebre e mais concorrido que o de Roma, talvez pelo facto de ultrapassar em libertinagem e por durar a maior parte dos meses de inverno . A sua riqueza era incomparável"(10).
Em oposição ao luxuoso e burguês carnaval italiano, um pouco por toda a Europa continuava o pobre, mas espontâneo Carnaval popular, cujas características estão bem documentadas no famoso quadro do pintor quinhentista flamengo Pieter Bruegel, o Velho,intitulado "Batalha entre o Carnaval e a Quaresma", de 1559, um dos mais antigos documentos iconográficos sobre os usos e costumes carnavalescos.
O séc.XVIII é o século do carnaval palaciano influenciado pelo luxo das côrtes absolutistas de Luís XIV e XV. Em Portugal, D.João V promovia esse carnaval de Palácio, que procurava projectar o luxo permitido pelo ouro do Brasil,acentuando-se em oposição ao carnaval de rua, popular, anárquico e até violento.
Notas:
(1)Dicionário de Língua Portuguesa, editado pela Sociedade de Língua Portuguesa coordenado por José Pedro Machado
(2)ob.cit.,vol.II ,pág.1316,ed.1960
(3)"Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa" ,dirigido pelo mesmo José Pedro Machado ob.cit.,2º volume,Livros Horizonte,6ªedição ,1990(1ª ed.1952).pág.413
(4)1ª obra citada ,p.177
(5)2ª obra citada,pág.80
(6)1a Ob.cit.,vol.II.ed.1960.p.177
(7)p.63,”o ciclo do carnaval”(pp.59-63) in PORTUGAL MODERNO - Tradições
(8)citada pelo jornal “ÁREA”,nº4 de Março de 1980,p.16
(9) "CARNAVAL ANTIGO E MODERNO" , in Civilização -grande magazine mensal - Março de 1930 -pp.66-72
(10)in Civilização 1930 ,ob.cit.
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