Após mais um fim-de-semana trágico no Mediterrâneo e depois de saber que a França e a Alemanha resolveram fazer um comunicado conjunto para continuar a "engonhar" sobre o tema dos emigrantes que atravessam o Mediterrâneo, respigamos para aqui um artigo de José Vítor Malheiros editado em Abril último no jornal Público:
Esta União Europeia que nos envergonha
Por José Vítor Malheiros
In Público 29/04/2015
“Demasiado pouco, demasiado
tarde.” É cada vez mais frequente termos de dizer isto da acção de um Estado,
da acção dos governantes.
“Pelo menos sempre que se trata de promover a paz e o desenvolvimento;
de promover a cooperação internacional; de combater a fome, a pobreza e a
desigualdade; de investir na educação, na cultura e na ciência; de proteger o
ambiente; de garantir a defesa da liberdade, da democracia e dos direitos
humanos. E é cada vez mais frequente, tristemente frequente, sermos obrigados a
dizer isto da acção da União Europeia, dessa União Europeia que nos seduziu com
sonhos de solidariedade e que gosta de se proclamar campeã dos direitos humanos
mas que nos envergonha todos os dias com a sua demissão dos mais elementares
deveres perante os mais fracos, com a sua cupidez em favor dos mais ricos, com
a sua pusilanimidade perante os mais fortes.
“A reunião de quinta-feira passada [23 de Abril] do Conselho Europeu,
onde em teoria os 28 Estados-membros da União Europeia tomaram medidas para
evitar a catástrofe humanitária dos refugiados que atravessam o Mediterrâneo
para tentar chegar à Europa, é apenas mais um de uma longa lista de lamentáveis
exemplos de demissão.
“Demasiado pouco, demasiado tarde.” Às vezes quase nada, tarde demais.
Quase sempre medidas para dar títulos de jornal apaziguadores, mas que não
atacam as raízes dos problemas e apenas permitem descansar as consciências dos
menos exigentes.
“Onde estão os políticos europeus que defendem algo de que nos possamos
orgulhar? Desapareceram. Mesmo quando parecem existir num dado momento,
desintegram-se ao chegar ao primeiro Conselho Europeu. A União Europeia
dissolve toda a ideia política e apenas deixa negócios com um cheiro de enxofre
no ar.
“Onde estão os políticos europeus que defendem essa ideia de uma Europa
da solidariedade, dos direitos e do progresso e que têm a coragem de a traduzir
em medidas políticas? Que agem por imperativo de consciência, que agem mesmo
quando não é possível contentar todos, que não esperam pelos media para saber o
que devem pensar, que têm convicções que não os envergonham, que não têm medo
de desagradar a essa extrema-direita para onde estão a ir tantos votos? Estarão
todos mortos? Estarão todos nos partidos emergentes que ainda não chegaram ao
poder? Ou estará a vontade política a concentrar-se apenas nos partidos
xenófobos da extrema-direita? Será o condomínio fechado com os pobres a tentar
escalar o muro o único sonho possível nesta Europa de banqueiros-piratas e de
políticos-mordomos?.
“As medidas tomadas no último Conselho Europeu não são apenas poucas e
tardias. São uma vergonha e são ineficazes.
“União Europeia triplica orçamento da missão de vigilância do
Mediterrâneo, titulava este jornal. Parece bom. Só que as notícias explicam que
a “triplicação” da UE fica aquém do orçamento que, no ano passado, a Itália
sozinha atribuía às operações de salvamento de refugiados no Mediterrâneo, com
a operação Mare Nostrum, terminada em Outubro de 2014 porque a UE não a quis
apoiar.
“A UE quer reduzir a má imprensa mas sem mexer uma palha, gastando
pouco e fazendo menos. O objectivo da maior parte dos países europeus, como o
Governo de David Cameron dizia sem vergonha até há pouco, é que continuem a
morrer imigrantes em massa no Mediterrâneo, para que a Europa não se torne mais
atraente para os que ficam. O abjecto fraseado britânico afirma que o
alargamento das operações de salvamento no Mediterrâneo constitui um “pull
factor” que encoraja a imigração clandestina para a UE. “Pull factor”. Não se
devem salvar pessoas porque isso constitui um “pull factor”. Nem vale a pena
argumentar que quando se suspendeu o Mare Nostrum a imigração aumentou. Não
vale a pena tentar explicar que aquelas crianças que morrem afogadas no Mediterrâneo
são de carne e osso como os filhos do senhor Cameron, que a morte de cada um
deles é tão trágica como foi a morte do primogénito do senhor Cameron, que cada
um deles vale o mesmo que cada um dos nossos filhos. Seria melhor matá-los à
vista para os desanimar de virem? A Europa deve condenar à morte as famílias
cujos pais querem proporcionar uma vida decente aos seus filhos?
“A UE, se tivesse um mínimo de decência ou de vergonha, deveria
reconhecer a importância de realizar as necessárias operações de salvamento no
Mediterrâneo e não apenas ao longo das suas costas. Deveria discutir seriamente
(em casa e com os seus vizinhos de África e do Médio Oriente) uma política de
imigração que não deveria ser outra coisa senão generosa e pôr em prática as
ferramentas necessárias para fornecer os devidos vistos a refugiados políticos
e económicos. E deveria construir uma verdadeira política externa que apoiasse
os esforços em prol da pacificação dos países em guerra e do desenvolvimento
dos países mais pobres. Devia. Seria uma política externa de que nos poderíamos
orgulhar, justa, exaltante e mobilizadora. Mas esta é uma UE da qual não se
pode sequer esperar decência”.
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