Carta aberta ao presidente da JSD e seus compagnons de route
por Carlos Reis dos Santos
Jurista, militante do PSD n.º 10757 e militante honorário da JSD
in Público de 18/01/2014
“Hesitei em decidir a quem me dirigir: não sei quem hoje é o mandante
da JSD, nem a quem prestam vassalagem. Assim, terei de me dirigir ao presidente
formal da JSD – e a quem deu publicamente a cara por uma das maiores
indignidades que se registaram na história parlamentar da República.
“Para vocês, que certamente não me conhecem, permitam-me que me
apresente: sou militante do PSD, com o n.º 10757. Na JSD onde me filiei aos 16
anos, fui quase tudo: vice-presidente, director do gabinete de estudos,
encabecei o conselho nacional, fui quem exerceu funções por mais tempo como
presidente da distrital de Lisboa, fui dirigente académico na Faculdade de
Direito de Lisboa, eleito com a bandeira da JSD, fui membro da comissão
política nacional presidida por Pedro Passos Coelho, de quem, de resto, fui um
leal colaborador. Quando saí da JSD, elegeram-me em congresso como vosso
militante honorário.
“Por isso julgo dever dirigir-me a vocês, para vos dizer que a vossa
actuação me cobre de vergonha. E que deslustra tudo o que eu, e tantos outros,
fizemos no passado, para a emancipação cívica, económica, cultural e política,
da juventude e da sociedade.
“Com a vossa proposta de um referendo sobre a co-adopção e a adopção de
crianças por casais de pessoas do mesmo sexo, vocês desceram a um nível
inimaginável, ao sujeitarem a plebiscito o exercício de direitos humanos. A
democracia não deve referendar direitos humanos de minorias, porque esta não se
pode confundir com o absolutismo das maiorias. Porque a linha que separa a
democracia do totalitarismo é ténue – é por isso que a democracia não dispensa a
mediação dos seus representantes – e é por isso que historicamente as leis que
garantem direitos, liberdade e garantias andam à frente da sociedade. Foi assim
com a abolição da escravatura, com o direito de voto das mulheres, com a
instituição do casamento civil, com a autorização dos casamentos inter-raciais,
com o instituto jurídico do divórcio, com o alargamento de celebração de
contratos de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Estes direitos talvez ainda
hoje não existissem se sobre eles tivessem sido feitos plebiscitos.
“Abstenho-me de fundamentar aqui a ilegalidade do procedimento que se
propõem levar avante: a violação da lei orgânica do referendo é grosseira e
evidente – misturaram numa mesma proposta de referendo duas matérias diferentes
e nem sequer conexas. Porque adopção e co-adopção são matérias que vocês
pretendem imoralmente enfiar no mesmo saco.
“Em matéria de co-adopção vocês ignoram ostensivamente o superior
interesse das crianças já criadas em famílias já existentes e a quem hoje falta
a devida segurança jurídica e protecção legal. Ao invés, vocês querem que os
seus direitos sejam referendáveis. Confesso que me sinto embaraçado e transido
de vergonha pela vossa atitude: dispostos a atropelarem o direito de umas
poucas crianças e dos seus pais e mães, desprotegidos, e em minoria, em nome de
uma manobra política. E isto é uma vergonha.
“Mas é também com estupefacção que vejo a actual JSD tornar-se numa
coisa que nunca foi – uma organização conservadora, reaccionária e atávica.
Vocês empurram, com enorme desgosto meu, a JSD para uma fronteira ideológica em
contradição com a nossa História e ao arrepio do nosso património de ideias e
valores: o humanismo em matéria de liberdades individuais sempre foi nossa
trave mestra. O que vocês propõem é uma inversão de rumo: conservadores na vida
familiar mas liberais na economia. Eu e alguns preferimos o contrário. Porque o
PSD, em que nos revimos, sempre foi o partido mais liberal em matéria de
costumes e em matérias de consciência.
“Registo, indignado, o vosso silêncio cúmplice perante questões
sacrificiais para a juventude portuguesa. Não vos vejo lutar contra o
corporativismo crescente das ordens profissionais e a sua denegação do direito
dos jovens a aceder às profissões que escolheram. Não vos vejo falar sobre a
emigração maciça que nos assola. Não vos vejo preocupados com muitas outras
questões.
“Mas vejo-vos a querer que eu decida o destino dos filhos dos outros.
“Na JSD em que eu militei sempre fomos generosos: queríamos mais
direitos para todos. Propusemos, entre tantas coisas, a legalização do nudismo
em Portugal, o fim do SMO, a despenalização do consumo das drogas leves, a
emancipação dos jovens menores e o seu direito ao associativismo. Nunca nos
passaria pela cabeça querer limitar direitos.
“Hoje vocês não se distinguem do CDS e alguns de vocês nem sequer se
distinguem da Mocidade Portuguesa, ou melhor, distinguem-se, mas para pior.
“A juventude já vos não liga nenhuma. E eu também deixei de vos ligar”.
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