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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O “Joker” do nosso descontentamento


É cada vez mais difícil encontra um filme que nos encha as medidas e nos surpreenda, tendo em conta que já seguimos o que se faz na 7ª arte há várias décadas.

Sem questionar o facto de existirem todos os meses estreias de filmes interessantes, com bons argumentos e boas histórias, principalmente na cinematografia europeia ou no cinema independente norte-americano, raramente podemos apontar um filme que traga algo de novo ao universo do cinema.

A última vez que isso nos aconteceu foi com o filme Dunkerke, com uma montagem que recria uma das técnicas mais importantes da 7ª arte.

Desta vez deparámo-nos, no filme “Joker”, com um desses raros grande momentos do cinema, um filme que vai ficar nos anais da história da 7ª arte, facto, com dissemos acima, cada vez mais raro.

Um filme que aparece no momento certo, que faz a ligação entre uma realidade cada vez mais violenta, imprevisível e ameaçadora e a origem ficcionada de uma das mais tenebrosas personagens do mundo dos super-heróis.

Numa época em que o que existe de mais surpreendente na cinematografia norte-americana é a proliferação dos filmes de super-heróis, “Joker” apropria-se de uma personagem desse universo, num ambiente ficcionado, mas realista.


“Joker” podia ser qualquer ser esmagado por uma sociedade povoada de solidão, indiferença, desigualdade e violência, personagem bem verosímil e que nos remete para uma das influências do universo do filme, o icónico Taxi Driver.

A própria presença de um envelhecido e conformado Roberto De Niro que acaba assassinado pelo personagem que “criou”, através da influência mediatizada de um talk-show, não é estranha a essa influência, ou não estivesse Martin Scorsese, realizador daquele filme, na origem deste projecto.

A época de “Joker” é, aliás, a mesma de “Taxi Driver”, os anos 80, mais concretamente o ano de 1981, numa “Gothan City” que podia ser qualquer esmagadora megacidade dos nossos dias, num universo onde qualquer ser humano se sente violentamente esmagado, capaz de se tornar um “Joker” solitariamente desesperado, tonando-se um ser violento no aperto de um transporte público ou numa fila de trânsito caótico.

Com origem no universo da série Batman, a mais humanista de todas as séries de super-heróis, neste filme Batman ainda não existe como tal, aparecendo apenas esporadicamente como criança rica que vê os seus pais (o pai é o demagógico governador da cidade) a serem assassinados na rua por um anónimo criminoso com máscara de palhaço, inspirado no Joker, situação que vai estar na origem da formação do icónico herói do comic.

Mas aqui “Batman” ainda não “sabe” que o vai ser.


O filme remete-nos apenas para a origem de um dos mais célebres vilões desse universo, “Joker”, que já tinha originado algumas das mais interessantes representações no cinema, figura interpretada por Jack Nicholson e Heath Ledger nalguns dos filmes da série Batman.

A novidade deste filme é que, tanto o personagem, interpretado por um obvio  oscarizado Joaquin Phoenix, como a Cidade Gotan City,  podiam ser qualquer solitário desesperado ou qualquer cidade dos nosso dias, sem precisar de  recorrer a efeitos especiais ou ao aparato do cinema de ficção científica para se tornar verosímil.


O filme arrepia e incomoda, mais do que pela crescente violência,  pelo seu realismo e porque tudo aquilo nos parece possível, num mundo muito marcado pela solidão, pela mediatização da violência, pelo descontentamento generalizado que explode em revoltas de rua, hoje um pouco por todo o mundo.

O realizador Tedd Phillips escreveu o argumento com Scott Silver, baseado num roteiro de Martin Scorsese, contando a história de Arthur Fleck, comediante falhado que, vivendo em 1981 em Gothan City é conduzido à loucura por uma sociedade agressiva e violenta que o rodeia, ao mesmo tempo que se torna o símbolo da revolta generalizada contra um poder cada vez mais desumanizado, demagógico, desligado da triste realidade dos seus cidadãos.

A história vai também beber a uma das histórias de banda desenhada mais interessantes da série Batman, aquela que conta exactamente as origens do vilão Joker, intitulada “The Killing Joke” (em português “Batman: a Piada Mortal”), editada em 1988, com argumento de Alan Moore, desenho de Brian Bolland e colorida por John Higgins, vencedora do Prémio Eisner (o “Óscar” da Banda Desenhada), em 1989, para o melhor álbum gráfico.


Mais do que nunca, olhando à nossa volta, é caso para dizer que…o Joker está entre nós.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem, Venerando!
Despertaste-me a vontade de ver o filme.
Além do mais, a apreciação crítica está muito bem escrita.
Obrigado.

Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras disse...

O comentário anterior é meu, Joaquim Moedas Duarte
Não percebo por que aparece como "anónimo"...

José Gouveia disse...

entramos no filme... e, vos afianço que "joker está entre nós"!... Impressionante pelo seu realismo, cuja sucessão de imagens nos trespassa.