Como pôde Bowie fazer-nos isto?
por Lia Pereira
In Blitz - 11.01.2016
"Mais do que uma surpresa, a morte de David Bowie, ontem, aos 69 anos,
parece quase uma traição. Mas a forma como planeou tudo é apenas mais um sinal
do seu génio.
"Acordar numa segunda-feira de manhã e, ao ligar o telemóvel, levar com
uma enxurrada de mensagens de amigos e conhecidos, todos batendo na tecla do
"já soubeste?" ou "que tristeza", não só não pode agoirar
nada de bom como causa uma angustiante confusão.
"Naqueles segundos entre a remela e o abrir do estore, cheguei a pensar
que tinha morrido alguém que conhecia na vida real. E, depois de perceber que
quem tinha partido fora David Bowie, não fiquei bem convencida do contrário.
"Depois do choque, o rewind ensonado. Então mas o homem não tinha
lançado um disco, ainda por cima dos bons, há poucos dias? Não estava "em
exibição" no mural de metade dos meus amigos, encantados com a sua
vitalidade artística e resistência à passagem de anos e modas, tão enamorados
por “Blackstar” como outrora por “The Man Who Sold the World” ou “Ashes to
Ashes”? Deve ter sido repentina, a sua morte, pensei. Não foi, claro, e se nas
primeiras horas de confronto com a notícia a pergunta que mais me martelava a
cabeça era “como pôde David Bowie morrer?", gradualmente a formulação
passou a ser: “como pôde David Bowie morrer assim?”. E por assim refiro-me ao
inacreditável controlo, criativo e não só, que, sabemo-lo agora, o britânico
conseguiu manter até à sua última hora.
"25º disco da sua carreira e o primeiro sem a sua imagem na capa,
Blackstar está cheio de mensagens nada crípticas. Das letras e vídeos do
tema-título e de “Lazarus” (Look up here, I’m in heaven, começa por cantar), ao
facto de, no passado mês de dezembro, David Bowie ter “mandatado” Michael C.
Hall, o ator de Dexter e protagonista do musical bowiesco Lazarus, para cantar
o single do mesmo nome num programa da televisão norte-americana, tudo nos
parece (agora!) apontar para o canto de cisne do homem que escreveu – e quebrou
– muitas das regras do livro da pop nas últimas cinco ou seis décadas. Não
vimos porque não quisemos ver, ou não acreditámos porque quem se mostrava (no
vídeo de “Lazarus”) preso a uma cama de hospital fez da ilusão o seu ofício
vitalício?
"Tantas séries de crimes não nos prepararam para isto, ainda que com
elas tenhamos aprendido que, por vezes, a melhor forma de esconder algo é
deixá-lo bem à vista de todos.
"Resta-nos o espanto perante a grandiosidade do último ato de David
Bowie (ao qual não é alheio o humor possível: a sua conta do Twitter regista
que, na noite em que morreu, aquele a quem muitos chamavam Deus passou a seguir
- o outro - Deus naquela rede social).
"Showman até ao fim, passou os seus
últimos meses a preparar um trabalho monstruoso, deixando-nos não só um belo e
estranho álbum, como um rasto de pistas sobre o seu fim iminente. Pode não ter
sido capaz do derradeiro truque – enganar a morte, como Lázaro, personagem
bíblica que Jesus Cristo consegue, ao quarto dia, ressuscitar – mas controlou
ao máximo cada pormenor da via-sacra que, tudo indica, percorreu até 10 de
janeiro, dotando-a de uma beleza tão arrebatadora como improvável.
"Como pôde Bowie fazer-nos isto? Sendo Bowie, claro".
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