A “crise” não tem
rostos?
É fácil, hoje em dia,
apontar, com alguma demagogia à mistura, as razões principais da crise: o “despesismo” do Estado (ou daqueles grupos
e interesses que controlam o Estado?), a corrupção dos políticos (ou a
misturada entre alguns políticos e as negociatas com escritórios de advogados e
o mundo da alta finança?), os “corporativismos” do funcionalismo público (ou os
privilégios escandalosos de alguns que circulam entre o público e o privado,
beneficiando das sua posições governamentais e dos seus altos cargos na
administração pública, quase sempre sem concurso, por colocação
político-partidária ?), as “altas” pensões pagas em Portugal (ou os pensionistas
de luxo, como alguns ex-banqueiros e ex-políticos, nomeadamente os antigos
administradores do Banco de Portugal?).
É fácil também
recuperar Ramalho Ortigão ou Eça de Queirós para apimentar essas críticas e
acusar os suspeitos do costumes: o rotativismo partidário, a Constituição e a
própria lei eleitoral (Salazar “resolveu” os três problemas…).
Podemos concordar e
subscrever por baixo algumas dessas críticas mas, nem sempre as soluções.
Uma das apontadas por
essa gente é a da criação dos círculos uninominais. Conhecendo a situação política actual
tal solução só iria incentivar e acentuar o caciquismo reinante em termos
regionais (a situação na Região Autónoma da Madeira e em muitas câmaras aí
estão para mostrar a falácia da personalização da política). Não me parece que
a solução seja encher o Parlamento de "Isaltinos" Morais e "Joãos" Jardins.
Mas o mais incrível
dessas posições, assumidas muitas vezes em “manifestos de notáveis”, como o recém
lançado "manifesto dos 31" , é a candura como alguns dos subscritores se apresentam
a defender uma “democracia de qualidade”, como se todos eles fossem virgens, sem
passado na política recente ou sem responsabilidades no actual estado de
coisas.
Aliás, cada vez mais,
perante a falência do actual sistema partidário e de economia de casino se
procura atribuir responsabilidades ao “sistema” e ao “regime”, branqueando as
responsabilidades próprias e históricas no actual estado de coisas.
É mais fácil acusar os
“privilégios” de grupos socias e profissionais inteiros, ou a lei e a Constituição,
do que assumir a incompetência dos próprios quando exerceram cargos com
responsabilidade política. Muitos deles são o exemplo principal dos verdadeiros
privilegiados deste sistema, beneficiando social, profissional e
financeiramente da cativação de informação privilegiada, das ligações
escandalosas e pouco éticas entre a política e os negócios e da
excepcionalidade de chorudas pensões por cargos exercidos na política, na
administração pública e/ou no Banco de Portugal.
O problema em Portugal
não é o das leis e o da Constituição, mas a forma como essa gente a consegue
contornar e aparecer com toda a candura a marcar a agenda mediática, apresentando
como novo velhas receitas ou limpando as mãos das responsabilidades que têm, como actores e/ou como beneficiários
da actual cultura política e financeira que nos levou a esta situação de
empobrecimento, de perda de direitos, de degradação do valor do trabalho e de
descrença na democracia.
É caso para perguntar,
quando vemos um manifesto criticando a situação, assinado por antigos ministros,
antigos administradores do Banco de Portugal, antigos líderes políticos,
beneficiários de cargos adquiridos por via de funções políticas, todos no
passado recente defensores da austeridade e das suas consequências (cortes
salariais e nas pensões, cortes nos direitos socias, empobrecimento
generalizado da população trabalhadora …)se a crise não tem rostos e foi
provocada por uma qualquer entidade divina e abstracta.
Tal como para subscrever
um documento é bom ter em conta as letras pequenas, quando se lê um manifesto como o dos “31” é cada vez mais importante olhar com atenção para o nome dos subscritores.
É que, apontar os
sintomas e as soluções da crise é fácil. O difícil é separar os que
sinceramente acreditam no que dizem daqueles, carreiritas e oportunistas de
todas as áreas e espécies, que procuram
manter-se sempre na crista da onda e esgueirar-se das responsabilidades
próprias na situação que criticam ou procuram apresentar-se como trazendo a
solução para um problema pelo qual eles são dos primeiros responsáveis.
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