"As vítimas dos incêndios e da
televisão
Por António Guerreiro
In Público 19
de Junho de 2017
“Para
as televisões, para a maquinaria dos directos e ao vivo, uma catástrofe como
esta é um momento do sublime.
“Nas televisões, o incêndio de
Pedrógão Grande resultou num avatar técnico-totalitário da “obra de
arte total”, na qual se dá uma confrontação dialéctica das várias artes. Com as
imagens captadas pelos drones, a SIC compôs um filme com uma banda
sonora que não era a Cavalgada das Valquírias, o excerto de uma ópera de
Wagner a que Francis Ford Coppola deu uma grandiosa forma cinematográfica em Apocalypse
Now, mas tinha a pretensão da “grande arte” wagneriana.
“Diz-se
que os pilotos operadores dos drones, combatentes de uma guerra à
distância, antes de disparar gritam de júbilo: “Oh, que belo alvo!” A
nauseabunda estetização da catástrofe servida ao espectador — o “belo” cenário
trágico resultante das montagens e encenações feitas nos estúdios das televisões
— também mostra que alguém, certamente uma equipa, rejubilou com os seus belos
alvos que lhes fornecem matéria para uma grande produção a baixo preço, para um
filme-catástrofe que não precisa de efeitos especiais, só precisa de uma
montagem bem ornamentada e música a condizer. Tudo devidamente sublinhado por
textos, legendas e designações (por exemplo, “a estrada da morte”) que remetem
para as grandes ficções de Hollywood. Às vezes, sobre essas imagens sobrepõe-se
uma voz-off que lê um texto a imitar qualquer coisa de literário, a
sublinhar a operação que reduz a tragédia real a uma opereta obscena. A
estetização é uma violência exercida sobre as vítimas da catástrofe e,
paradoxalmente, tem o efeito de uma anestesia aplicada ao espectador.
“Para as televisões, para a maquinaria dos
directos e ao vivo, uma catástrofe como esta é um momento do sublime. Se a
emergência dessa categoria estética que é o sublime está relacionada com os
sentimentos de medo e de terror perante algo que excede toda a medida, é
preciso no entanto que a ameaça que eles representam seja suspensa para que da
dor nasça o prazer. As reportagens da televisão, muito especialmente as imagens
estetizadas que passam a servir de separadores ou de fechos do noticiário,
procedem a esta conversão da dor em prazer. São maléficas e eticamente
execráveis. Devemos perguntar como é que os jornalistas dos vários canais de
televisão se relacionam com elas.
“O
sublime, como sabemos, tem a dimensão do irrepresentável, deixa a faculdade da
imaginação e a fala aniquiladas perante algo que tem uma potência ou um tamanho
desmesurados. Por isso, é sempre ocasião para o uso de meios retóricos curtos,
mas enfáticos. Para não ficarem em silêncio, para não dizerem pura e
simplesmente que não têm nada a dizer ou que tudo o que são capazes de dizer é
trivial, os repórteres recorrem aos parcos meios linguísticos que têm à sua
disposição. Por exemplo, a palavra “dantesco” (para além de uma certa dimensão,
o incêndio é sempre “dantesco” e configura “o inferno”). E porque os processos
de descrição, na televisão, consistem sobretudo em mostrar, em dar a ver,
entra-se sem pudor na exibição das imagens obscenas. Como vimos, alguns
repórteres (Judite Sousa parece que não foi a
única) nem hesitaram em aproximar-se dos cadáveres e oferecê-los aos
espectadores como imagens ostensivas. Como uma personagem do filme de Francis
Ford Coppola, eles poderiam dizer: “I love the smell of napalm in the
morning.”
“Face
à falta de meios linguísticos (e de tempo para qualquer elaboração mais
cuidada) e porque a televisão pratica quase como ideologia jornalística um
realismo ingénuo que acaba por nunca produzir o desejado efeito de real, os
repórteres ou debitam lugares-comuns que não têm nem valor expressivo nem
descritivo, ou recorrem aos testemunhos. Põe-se um microfone e uma câmara
diante de pessoas em estado de choque e pede-se-lhes que elas testemunhem, que
elas descrevam, que elas superem a afasia em que a situação as colocou. A
violência é inominável e a televisão torna-se patética, no duplo sentido da
palavra: porque quer mostrar o pathos, dê por onde der; porque exibe a
estupidez na mais elevada expressão.
"Devemos
novamente perguntar: a que coerção estão submetidos os jornalistas para que
aceitem o papel de idiotas? Ou fazem-no voluntariamente? Os jornalistas
tornam-se então indivíduos ávidos, paranóicos, como os amantes que não se
satisfazem com um simples “amo-te”. Desconfiados com a declaração tão lacónica,
achando que o amor é uma imensidão que precisa de se dizer com mais palavras,
perguntam: “Amas-me como?” E o outro responde: “Amo-te como se fosses o mais
doce dos frutos.” E aí começa um encadeamento de metáforas cristalizadas, de
estereótipos. Assim são os jornalistas munidos de microfones e de câmaras: não
desistem de querer extorquir as palavras e a alma aos seus interlocutores; não
deixam de querer arrancar testemunhos a gente moribunda ou a viver a experiência
dos limites.
“Esta
maquinaria é totalitária, expansiva, reduz tudo a uma peça integrada. Este
jornalismo é um aparelho ao serviço da lógica da “partilha” da comunicação, da
informação e da opinião da nossa época. A utilização dos drones realiza
na perfeição esta atitude predadora de quem se acha munido do olho de Deus: o
olho que abarca, na vertical, a totalidade do mundo. Era fatal que a televisão
viesse a pôr ao seu serviço o drone de omnivisão, dotado de uma vista
sinóptica, capaz de uma vigilância de largo alcance, “wide area
surveillance”, como se diz na linguagem da guerra”.
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