Europa - tutela ou estratégia
por MANUEL MARIA CARRILHO
“Há momentos assim, em que se sente de um modo particularmente vivo a falta de liderança europeia. Foi o que aconteceu há dias, justamente quando o presidente da Comissão Europeia pretendia mostrar o contrário, ao fazer no Parlamento Europeu um discurso sobre o estado da União, num arriscado remake da conhecida tradição americana.
Para lá da frase dramática que fez o título dos curtos despachos das agências ("ou nadamos juntos ou afogamo-nos separadamente"), o impacto do discurso foi quase nulo, a confirmar uma generalizada indiferença perante a conhecida retórica europeia, que consiste em apresentar ideias gerais para todos os factos, acompanhadas da certeza de que nenhuma se concretizará.
Nesse mesmo dia, as agências noticiavam a chegada da China ao 5.º lugar dos investidores mundiais, saltando do 12.º em que estava em 2008, acrescentando mais este dado espectacular ao já tão impressionante palmarés de primeiro exportador mundial, segunda potência industrial, de segunda economia mundial, etc.
Reforçam-se assim os elementos que apontam para um século XXI de forte dominância asiática. A Ásia retoma, gradualmente, uma posição que - poucas vezes se lembra isto - ela já teve na história. Com efeito, há mil anos, a Ásia representava 75% do PIB mundial e no começo do século XIX ainda andava nos 60%. Foi no decurso deste século e no século XX que a decadência se acentuou, tendo o PIB chinês caído para cerca de 30% do produto mundial em 1820, e para 4,5% em 1950.
É nessa altura que a Europa se afirma e começa a sua ascensão, não tanto porque nela e na sua cultura existisse uma qualquer predisposição particular para o capitalismo mas porque ( como há já uns anos Kenneth Pomeranz explicou numa obra que se tornou um clássico na matéria, A Grande Divergência - a China, a Europa e a construção da economia mundial) as descobertas e a colonização viabilizaram uma ruptura que mudará todos os dados da economia mundial. Trabalho escravo, mão-de-obra barata decorrente dos excedentes rurais, revolução industrial, afluência torrencial de metais preciosos, crescente capacidade de investimento a prazo, tudo isto conduziu a Europa à liderança mundial.
A coincidência do discurso sobre o estado da União com as notícias do reforço do peso da China no mundo deveria, pois, fazer pensar. E pensar foi o que fizeram diversos ensaístas num recente número da revista The American Prospect, em torno da pergunta "Can Europe recover?". A resposta, apesar da diversidade de perspectiva dos autores, é tão convergente como inequívoca: não, a União Europeia não mostra actualmente ter condições para alterar o percurso do seu declínio económico e político no mundo.
As razões deste diagnóstico são sobretudo três, e nenhuma encontra resposta no discurso de J. M. Barroso sobre o estado da União. A primeira é a falta de convicção, de fé na Europa, que os últimos dados do Eurostat confirmam, com consequências que Kurt Volker vê bem ao perguntar "porque é que deveria acreditar num modelo em que os próprios europeus já não parecem acreditar?".
À falta de convicção junta-se (é a segunda razão) a falta de consenso sobre o que é, e sobretudo sobre o que deverá ser, no futuro, a União Europeia. Para lá de uma zona de comércio livre, de uma política agrícola cada vez mais contestada e dos fundos para apoio das regiões menos desenvolvidas, faltam - como sublinha W. Laqueur - políticas em áreas essenciais como a defesa, a energia, ou a investigação.
A terceira razão encontra-se no que se pode chamar o impasse estratégico. Desde que se saltou para o alargamento a 25, e depois a 27, sem uma profunda reforma das instituições, instalou-se um impasse - que se quis desvalorizar e iludir, mas que entretanto a crise tornou óbvio - entre os objectivos que a UE proclama querer atingir e os meios de que ela dispõe para o fazer.
Quem tem beneficiado com este impasse é a Alemanha, que, depois de ver reforçado o seu peso político com o Tratado de Lisboa, tem aproveitado bem a crise para colocar a Europa sob tutela, como as recentes decisões sobre o "visto prévio" aos orçamentos nacionais claramente indicam. Como Jacques Delors sintetizou bem num artigo escrito no começo do Verão, os dirigentes europeus actuaram durante a crise como bombeiros.
O que agora é preciso é que actuem como arquitectos, convergindo numa estratégia capaz de ultrapassar a erosão política e a desagregação institucional que tanto fragilizam a Europa no começo desta era asiática, que vai certamente mudar o nosso lugar na história e no mundo”.
In Diário de Notícias de 16 de Setembro de 2010
Sem comentários:
Enviar um comentário