Nas minhas mais de seis décadas de vida sempre pensei que não escaparia ao impacto de uma guerra em larga escala ou a um terramoto.
Felizmente, até agora nenhum desses cenário se concretizou na minha
vida, apesar da violência de conflitos locais, mas distantes, ou do impacto de
fenómenos naturais cada vez mais violentos, mercê do agravamento da catástrofe ambiental,mas,
por enquanto, também distantes.
O que nunca previ foi uma situação como a que vivemos ao longo de 2020
e que se irá prolongar ainda ao longo de todo o ano que agora se inicia.
Na minha geração sempre estiveram presentes as memórias das duas
guerras mundiais do século XX, transmitidas por avós e pais, e a perspectiva de ter de ir combater para a
Guerra Colonial, enquanto se mantinha viva a memória colectiva do grande
terramoto de 1755 e a sua possível repetição, de cujos efeitos tivemos uma
pálida experiência em 1969.
Claro que também existia a memória do efeito de grandes epidemias,
tendo-me cruzado com muita gente que se lembrava bem da pneumónica de 1918.
Contudo, os grandes avanços da medicina e dos conhecimentos sobre o
funcionamento das epidemias, fez-nos acreditar que se controlaria facilmente um
fenómeno dessa natureza, até porque o mundo conheceu muitas outras epidemias ao
longo do tempo, mas, geralmente, ou muito localizadas geograficamente, ou de
curta duração, sem os efeitos devastadores da “pneumónica”.
Claro que, se compararmos os efeitos da pneumónica com os efeitos do
Covid-19, esta ainda está muito longe
daquela, nomeadamente em relação ao número de mortos.
A grande diferença talvez resida na velocidade de propagação, no facto
de ter uma expansão a nível mundial, não havendo lugares seguros, e na forma
como se tem prolongado no tempo, sem baixar de intensidade, ao contrário, por
exemplo, da pneumónica, cujos efeitos se concentraram em cerca de três meses e
não ao mesmo tempo em todos os lugares.
Mas talvez o efeito mais nefasto deste epidemia, para além da tragédia
dos que morreram e continuam a morrer, seja o seu impacto em duas
características principais do seres humanos, a socialização e o simples acto de
respirar sem constrangimentos.
O medo e a desconfiança do outro vão acentuar um clima de intolerância,
explorado por grupo extremistas, situação agravado pelo efeito nefasto da
epidemia na economia e na sociedade.
Por outro lado, esta epidemia teve pelo menos o condão de nos alertar
para as muitas deficiência das sociedades modernas e, no caso português e europeu,
para ao efeitos nefastos de décadas de neoliberalismo selvagem que quase destruíram
os sistemas de saúde.
Penso que, pelo menos por muito tempo, esta epidemia teve o condão de
calar os defensores do modelo ultraliberal do sistema de saúde norte-americano.
Teve também o condão de revelar toda a incapacidade dos modelos
populistas preconizados por Trump ou Bolsonaro para liderar, de forma responsável
e humanista, com catástrofes com esta.
Demonstrou também o aspecto nefasto da deslocalização de grandes
empresas produtivas para fora da Europa, à procura do lucro fácil da
mão-de-obra barata e sujeita muitas vezes a modos de trabalho humanamente
indignos, e à procura de escapar à fiscalização, mostrando uma Europa
dependente e refém de outras economias para adquirir muitos das matérias-primas
necessários para enfrentar crises sanitárias como esta.
Em Portugal ficou evidente, com a crise sanitária, a precariedade de uma economia dependente
quase exclusivamente do turismo e das exportações, a forma como foi
enfraquecido o SNS ao longo de anos de polítcas antissociais, para “ir além da
Troika”, assim como as condições indignas em que trabalham e habitam muitas
pessoas, em que funcionam muitos lares, sem esquecer a generalização do
trabalho precário e dos salários baixos.
Se não houver coragem pera reforçar os sectores sociais, os direitos
sociais, de idealizar uma sociedade menos dependente do consumismo e mais
humana e ambiental, o impacto social e económico da epidemia, depois desta
controlada, será ainda mais devastador.
Haja esperança de que possamos todos sair desta crise mais solidários e
humanos e de que os nossos líderes políticos, económicos e socias tenham
aprendido alguma coisa.
Um Bom Ano de 2021.
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