"À parte do superficial espetáculo mediático, de um efetivo entretenimento, diversos e atentos observadores têm assinalado qual a escolha obrigatória que se coloca aos eleitores norte-americanos nas eleições presidenciais de 5 de novembro de 2024: uma avalanche suprematista, reacionária e autoritária protagonizada pelo candidato do Partido republicano e ex-presidente Donald Trump, ou o prosseguimento de um império neoliberal assolado por fortes desigualdades sociais e pelas bombas norte-americanas que há mais de um ano caem sobre Gaza, e
depois sobre o Líbano.
Diversos académicos e intelectuais de renome interrogam-se crescentemente sobre a sanidade da democracia norte-americana, também devido aos crescentes custos das campanhas que impõem uma espécie de plutocracia e que sugere serem os doadores, os financiadores, quem escolhe antecipadamente o futuro ocupante do Gabinete Oval.
Outros consideram que as instituições estão impregnadas de racismo, fanatismo, corrupção, com opiniões polarizadas num país fraturado. A direita radical insurge-se contra uma elite estatista que acusa de ter falsificado as eleições de 2020, a esquerda militante considera o processo eleitoral antidemocrático devido ao peso de um Colégio eleitoral que favorece os estados pouco povoados.
Começou a evocar-se o espetro da guerra civil, debateu-se o facto de a Constituição ser omissa sobre a possibilidade de reeleição de um Presidente condenado, a dessacralização de instituições profundamente abaladas após o assalto ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, o controlo do Supremo Tribunal pelo “trumpismo”, ou o recuo no direito de a mulher decidir sobre o seu próprio corpo.
Trump e a constelação que o rodeia preenchem listas de inimigos, apoiados pelos representantes do “capital inovador” e proprietários de redes sociais, onde se destaca Elon Musk. MAGA (Make America Great Again), é o seu slogan, assente na obtenção de dinheiro por todos os meios, também pela exploração desenfreada das riquezas naturais.
Depois, mobilizar o Exército contra os “inimigos internos” e os migrantes, expulsar muitos milhões, perseguir os media e o pensamento desalinhado. A sua rival democrata acusou-o, literalmente, de “fascista”.
Mas após a sua apressada nomeação pelo Partido democrata devido às crescentes deficiências cognitivas de Joe Biden, Presidente em exercício, Kamala Harris não hesitou em convocar centenas de figuras conservadoras ou antigos colaboradores ou colaboradoras de ex-presidentes republicanos, onde se incluem o ex-vice-presidente Mike Pence, um evangélico tradicionalista, John Kelly, chefe de gabinete na presidência de Trump ou Dick Cheney, antigo vice-presidente
neoconservador de George W. Bush, mentor das guerras dos EUA no Afeganistão e Iraque após o 11 de setembro de 2001 e dos programas de torturas secretas da CIA.
Nas primárias do Partido democrata de 2019, onde ocorreu contra Biden e o veterano “esquerdista” Bernie Sanders, Kamala apresentou um programa virado para as classes médias e parte do setor empresarial, com promessas dirigidas à sua esquerda, em particular segurança social para todos ou um New Deal verde.
Entretanto, mudou de posição, e durante campanha eleitoral para as presidenciais recuou na promessa de proteção social global, prometeu expandir o muro fronteiriço, permitir novas prospeções petrolíferas, omitindo as questões climáticas. E foi incapaz de sublinhar uma efetiva e positiva “grande alteração” ocorrida nos últimos quatro anos.
O duo Biden-Harris foi também totalmente cúmplice dos implacáveis bombardeamentos israelitas sobre Gaza que se seguiram ao violento ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 no sul de Israel. Enquanto os protestos eram duramente reprimidos, sobretudo nas universidades, e que denunciavam a mortífera cumplicidade com Israel de Biden, apelidado de “Genocide Joe”, Kamala Harris demonstrava firmeza no apelo à libertação dos reféns israelitas que permanecem em Gaza mas reservas em apelar a um cessar-fogo imediato, e argumentava com o “direito de Israel a defender-se” para justificar o contínuo envio de armamento.
Como na contestação à guerra do Vietname ou ao ‘apartheid’, a causa palestiniana mobilizou os espíritos, fomentou novas solidariedades entre estudantes com diversas perspetivas, judeus e muçulmanos, e causou embaraço na liderança do Partido democrata. As universidades norte-americanas envolvidas nos protestos afirmaram-se como contrapoderes e bastiões de um pensamento livre num país que foi perdendo o hábito de lidar com opiniões divergentes. Uma população atomizada e sob tutela, sintomas de uma democracia doente, carente de revitalização. “Uma primavera americana que arrisca tornar-se num longo outono”, na expressão de Thomas Dodman, professor na universidade Columbia, Nova Iorque.
O apoio, na prática incondicional, da administração Biden-Harris ao genocídio em Gaza e à deriva extremista, colonial e expansionista do Executivo israelita poderá ser determinante para o resultado final em 5 de novembro. Mesmo sabendo que com o regresso de Trump à Casa Branca – apoiado pela influente e milionária corte de teleevangelistas e cristãos sionistas –, Benjamin Netanyahu terá novo alento para prosseguir a “limpeza”, o projeto do Grande Israel e a concretização da profecia bíblica do “regresso do Messias à Judeia e Samaria”, a designação que atribuem à Cisjordânia ocupada".
Pedro Caldeira Rodrigues
4 novembro 2024