Acabei de adquirir o livro “Porto – Profissões [quase]
desaparecidas” de Germano Silva, o historiador da cidade do Porto (em Espanha,
cada localidade tem o seu cronista “oficial”, Germano da Silva cumpre, por
mérito próprio, mas não oficialmente, essa função na cidade do Porto).
Ao desfolhar esse belo livro, com histórias e muita
História, ilustrado por uma trabalhosa investigação nos arquivos fotográficos,
pus-me a pensar sobre as recordações que ainda tenho de algumas dessas
profissões.
Algumas são do “meu” tempo, outras nunca existiram por aqui,
muitas desapareceram, de facto, mas outras ainda existem ou reconverteram-se.
Germano da Silva explicou, em entrevistas que deu a
propósito do lançamento desse livro, que não pretendia valorizar uma atitude
saudosista, até porque muitas dessas profissões, por ele referidas, eram
autêntico trabalho de exploração humana,
mal pago, exercido em condições desumanas, duro, sem horários, sem direitos,
ocupando toda a vida do profissional dos mais desvalidos, que só se podiam
“reformar”…morrendo, ou então quando adoeciam de exaustão, acabando na pior das
misérias.
Sem saudosismos, desfolhar
esse livro leva-me também a “viajar” pela memória de um tempo que não volta e
que, na maior parte dos casos, não se deseja que regresse.
Muitas das profissões referidas existiam em Torres Vedras,
ou ainda existem.
Havia por cá muitos alfaiates, os quais, entre os ofícios referidos, até eram bem pagos, embora
tivessem de lutar constantemente por trabalho. O meu avô materno era alfaiate,
e viveu sempre com grandes dificuldades e “reformou-se” para ficar acamado.
Hoje é uma profissão que está na moda, embora rara. Por aqui, em maior
quantidade, associadas a essa profissão, existia um numeroso contingente de
costureiras. Hoje essa actividade rareia, mas ainda existe.
Ainda me lembro de alguns ferreiros, profissão hoje
praticamente extinta, a não ser exibindo-se em “Feira Medieval” ( hoje em maior
número que na própria Idade Média!).
Os marceneiros ainda continuam por aí, apesar da
concorrências dos IKA’s, conseguindo resolver o aproveitamento daquele espaço lá
de casa que não entra nas medidas estandardizadas.
Moleiros também vão rareando, mas estavam muito disseminados
pelo concelho e, antigamente, eram a elite dos artesãos, pois exigiam
conhecimentos bastante especializados, entrando em decadência com o
aparecimento das moagens e, mais recentemente, com as padarias de bairro, com
pão a toda a hora. Hoje tornaram-se mera atracção turística.
O ourives foi substituído pelo vendedor de pilhas para
relógios, mantendo-se apenas para fabricar bugigangas para turista ou
acessórios de luxo para qualquer “isabeldossantos” do novo-riquismo nacional.
Sapateiros ainda existem, são o recurso para quer poupar uns
tostões no arranjo daqueles velhos sapatos, mas já não fabricam calçado e
rareiam cada vez mais. Antigamente era a actividade artesanal mais
numerosa e disseminada no concelho.
Numa região de vinhos, ainda existem tanoeiros, mas agora,
em vez de trabalharem a madeira, trabalham o metal dos depósitos de adegas.
Por aqui, só muito vagamente me lembro do almocreve, muito
referido em documentos locais até ao início do século XX, em decadência com a
profusão da camionagem a partir dos anos de 1920, mas que continuavam a
preencher as rotas rurais onde a camioneta de carga não chegava. Embora as
carroças puxadas por mulas, conduzidas pelos almocreves, tivessem desaparecido
por completo, tal só aconteceu em meados da década de 1970. Perto da minha casa
havia o segeiro, que se dedicava a arranjar as rodas das carroças, num trabalho
que encantava a miudagem do bairro. Já sem burro, havia o “Ferrer” que puxava,
à força dos braços, os pacotes da estação de comboios ou correios para
distribuir pelos comerciantes locais, homem que ainda se via pelas ruas da
cidade na década de 1980, já idoso, mas sempre esforçado.
O amolador é figura que, cada vez mais raramente, ainda vai
aparecendo pelas ruas de Torres, imortalizado pelo som característico da “gaita
de beiço”, de onde sai sempre a mesma
nota repetitiva, mas é um trabalho de gente pobre.
Já não há ardinas. No meu tempo o único ardina era um
adulto, o sr. “Fusco”, meu vizinho, pai de um dos meus amigos de infância,
sempre vestido com o mesmo fato macaco e o seu boné de pala, e com o seu enorme
saco, onde transportava os jornais, vendidos ao longo das ruas da então vila,
até arranjar ma pequena loja onde se fixou na velhice, morrendo pobre. Hoje
compram-se os jornais nos quiosques, abundantes pela cidade.
O canastreiro aparecia nos mercados e feiras, fabricando os
cestos à nossa frente, geralmente de etnia cigana. Os cestos duravam uma vida.
Eram muito usados na vindima. Eu cheguei a alombar com alguns, quando
trabalhava nas vindimas para arranjar dinheiro para as férias. Os cestos de
vime foram substituídos pelos alguidares de plástico.
As criadas de servir, referidas pelo autor, existiram ao
longo da história por cá, servindo nas casas de “gente fina”. As classes médias
recorriam à “mulheres a dias”, uma das poucas profissões femininas, recurso
económico para abreviar a miséria das gentes das aldeias.
Os dactilógrafos extinguiram-se com o computador ou
reciclaram-se para outras tarefas administrativas.
O engraxador ainda existia até há bem pouco tempo, percorrendo
os cafés da “vila”. Ainda se vêm por Lisboa.
As lavadeiras apenas se viam nas aldeias, já não a lavar no
rio Sizandro, mas à volta dos lavadores públicos das aldeias, uma da raras
inovações do Estado Novo, inaugurados sempre com pompa e circunstância.
Ainda me lembro do casal de leiteiros, de farda branca,
percorrendo as ruas da vila diariamente. Faziam-se transportar numa daquelas
pequenas lambretas com caixa atrás. Eram eles que vendiam o leite consumido ao
pequeno almoço e, a partir de certa altura, introduziram uma novidade, a venda
de queijo fresco, que, quando fora de prazo, ficavam a secar ao sol, para,
passados uns dias, serem consumidos como queijo seco. Um petisco, que hoje
seria proibido pela ASAE!!
Havia depois o padeiro, espécie de homem invisível, pois
quando todos acordávamos, já tinha deixado o pão em sacos de pano pendurados do
lado de fora da porta, deixado na noite anterior, com um recado indicando a
quantidade e as moedas enroladas no papel para o pagar.
O pica do eléctrico era “espécie” que não existia por cá,
mas podíamos encontra uma profissão similar no “pica” bilhetes das “carreiras”
de camioneta ou do comboio .
Os oleiros eram vistos em grande quantidade na Feira de
S.Pedro, onde se compravam os vasos para as flores que alindavam as varandas
das casas da vila. Ainda hoje o seu
trabalho continua a ser apreciado, apesar do plástico também ter substituído
muita da sua produção.
O sinaleiro era uma das atracções dos “saloios”, como nós,
de visita à “capital”, deixando-nos embasbacados com a sua dança de braços e
pernas, conduzindo um trânsito pouco habitual na vila ( a não ser pelo carnaval
ou durante a passagem do Rali de Portugal).
O tipógrafo era uma das actividade nobre, existente em
Torres Vedras desde o século XIX, muito ligada à edição dos jornais locais ou
aos folhetos e cartazes das festas de aldeia. A composição dos textos era feito
letra a letra, em caixas de chumbo, que voltavam a ser derretidas depois de
imprimidas as páginas. O cheiro a tinta era
muito activo, e a tinta preta ficava nas mãos durante muito tempo. O
barulho das máquinas das rotativas assustava. Lembro-me bem dessas máquinas no
interior da actual Papelaria Gráfica ou no antigo edifício da União, lugares que frequentava a acompanhar o meu pai
nas suas aventuras jornalísticas. Recordo que sou trineto do primeiro tipógrafo de Torres Vedras.
Por último, e seguindo a ordem da publicação no dito livro,
excluindo profissões que já não conhecemos por aqui, chegamos ao vendedor de
castanhas, uma das referidas actividades tradicionais que sobreviveu à
modernização. Todos os anos, pelo inverno, encontramos-los pelas ruas de Lisboa
e aqui em Torres Vedras, geralmente na Avenida, continuando na mesma família de
décadas, apregoando as “quentes e boas “, profissão que só está em risco porque
as alterações climatéricas tornam os Invernos menos frios. De significativo o
agradável cheiro da castanha assada que impregna toda a Avenida em tardes de
Inverno.
Sem saudosismos, deixamos aqui um convite para que cada um
faça um exercício de memória sobre essas actividades, de gente humilde, que faz
parte da história de uma geração.
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