DÚVIDAS
Confesso que, no início do debate sobre a votação dos projectos sobre a despenalização da Eutanásia, assaltaram-me algumas dúvidas, muito idênticas às que foram formuladas por Vicente Jorge Silva na sua crónica editada no Público no último Domingo.
Intitulada “Vida e morte: as Fronteiras da
liberdade”, o jornalista confessava –se “profundamente
dividido sobre a questão da eutanásia” em debate no Parlamento:
“ Por um lado, não tenho qualquer
dúvida de que quero morrer com dignidade e, se não tiver alternativa ou não for
capaz de o fazer sozinho, antecipar a minha morte com ajuda médica em caso de
sofrimento insuportável ou degradação irreversível das minhas condições de
vida. Mas, por outro lado, não consigo generalizar e tornar objecto de uma lei
o que tenho certo para mim próprio, porque não consigo antever todas as
circunstâncias concretas em que, supostamente, a escolha de uma morte assistida
se fará segundo a vontade de cada um. Mais: receio que essa generalização
banalize aquilo que, de todo, não o deveria ser e possa prestar-se a abusos
macabros por parte de terceiros, como já terá acontecido noutros países onde a
prática de eutanásia é legalmente autorizada”.
E continuava o articulista : “Ora, face à minha divisão interior,
confunde-me a ligeireza com que uns pretendem fazer aprovar apressadamente, sem
um prévio debate aprofundado, uma lei tão delicada sobre as fronteiras entre a
vida e a morte. Tal como me desgosta a argumentação, de uma intolerância
maniqueísta, exibida por outros e que ultrapassa a esfera das convicções
religiosas, como se a eutanásia pudesse equivaler, em qualquer circunstância, a
um homicídio puro e simples (atitude essa reflectida na tomada de posição, com
laivos de chantagem política, pelo anterior Presidente da República, Cavaco
Silva).
“A este respeito, tenho dificuldade em perceber com clareza a fronteira que
alguns ferozes opositores da eutanásia estabelecem entre a interrupção do
tratamento dos doentes em fase terminal, considerada legítima, e o recurso a
uma morte assistida para obviar, precisamente, a essa situação considerada
irreversível. Há aqui, parece-me, uma certa hipocrisia ideológica que cuida
mais das aparências dos rituais do que do efeito final dos procedimentos”.
E concluía Vicente Jorge Silva:
“Não se trata de ficar no meio onde residiria falsamente a virtude, mas de
interiorizar a complexidade de um debate que não ganha nada em decorrer de
forma precipitada. Sei o que quero para mim, se porventura for confrontado com
a hipótese de não morrer com dignidade, mas considero abusivo legislar à pressa
para ficar confortado com uma opinião e uma opção de natureza pessoal. Estão em
causa as fronteiras da liberdade”.
Contudo, consultando o mesmo jornal Público na 6ª feira anterior, onde se
comparavam os 4 projectos em debate e os conteúdos mais significativos de cada
um, as minhas dúvidas dissiparam-se.
Na maior parte desses projectos estava bem claro quem se podia “candidatar”
à eutanásia, doentes em sofrimento extremo, com doença incurável e terminal,
maiores, em pleno uso das suas capacidades mentais, conscientes até ao momento
da eutanásia, após pedido devidamente analisado, aprovado e acompanhado por uma
equipa multidisciplinar, decisão sempre reversível e dando aos médicos o
direito de objecção de consciência.
Interessante ainda para a minha decisão de apoiar os projectos em discussão
foi a leitura da crónica de Bárbara Reis, no mesmo jornal, publicada em 25 de
Maio, intitulada “a eutanásia segundo Séneca, o sábio da morte”, de onde retiro
algumas frases desse clássico: “Viver não é uma coisa boa em si mesmo, mas sim
viver bem”, e assim “sábio é aquele que vive até onde deve, não até onde pode”,
ou “A vida é como uma história: o importante é como é feita, não se é comprida.
Mas dá-lhe um bom fim” e concluía: “achas que há alguma coisa mais cruel a
perder na vida do que o direito de acabar com ela”?.
A minha dúvida não é sobre o direito individual de cada um decidir a
eutanásia, mas se a questão não deve ser mais debatida antes de uma decisão
final, que só pode ser a sua despenalização com os critérios apontados nos 4
projectos.
DISPARATES
Triste de ver foi o rol de dispartes que
ouvimos nos últimos dias, principalmente por parte dos opositores à eutanásia,
em que a frase que circulou na manifestação de ontem, “Não matem os velhinhos”
é o coroar de tanta ignorância.
Apoiar ou não a despenalização da eutanásia pode ser uma questão de
consciência, mas daí a recorrer à chantagem ideológica, como o fez Cavaco Silva,
transformar essa questão num problema religioso, como o fizeram, pressionando o
poder politico, os líderes religiosos em Portugal, ou atirar areia para os
olhos, explorando a ignorância generalizada sobre o tema, merece-nos o mais
veemente repudio.
Ouvir dizer que o Estado não se pode meter numa questão de liberdade
individual, como li, é atirar areia para os olhos, como se o problema não fosse
o facto de o Estado, através da lei, poder condenar como criminosos comuns os
profissionais de saúde e os familiares que auxiliem quem, assumindo essa mesma
liberdade individual, recorra à eutanásia.
Ao contrário do que ouvi gritar e escrevinhar, ninguém é obrigado a recorrer à Eutanásia, nem esta se confunde
com cuidados paliativos ou testamento vital.
Pegando em dois exemplo extremos, Alejandro Amenábar (cuja situação foi o
tema do filme “Mar Adentro”) ou o físico Stephen Hawking, o Estado só tem de
garantir que a opção de Amenábar seja levada a bom termo, sem criminalizar
ninguém, ou a opção de Hawking de continuar a viver e a lutar até ao fim,
garantindo um eficaz acompanhamento médico. O resto são balela beatas.
DECISÕES
O parlamento decidiu reprovar todos os projectos.
As desculpas foram muitas, desde a consciência de cada um, o medo de perder
um lugar na lista do “partido” nas próximas eleições, até à disciplina partidária mais autoritária.
Outros desculparam-se com o facto de o tema não constar dos programas
eleitorais, os mesmos que, noutras circunstâncias, quando se tratou de retirar
direitos económicos e sociais, de cortar nas obrigações do Estado Social ,
salvar os especuladores financeiros, ou impor a austeridade dos últimos anos,
tudo actos que não constavam dos respectivos programas, não hesitaram nem um
momento em avançar com medidas que não constavam em programas eleitorais.
Invocar o facto de “não constar” nos programas eleitorais é passar um
atestado de menoridade aos deputados e ao Parlamento.
Foi também triste de ver a atitude do PCP, que se dividiu entre
justificações próximas da beatice e o desrespeito pela liberdade individual, à
qual esse partido, que revela grande dificuldade em acompanhar os tempos,
sobrepõe uma mítica “liberdade colectiva”.
Penso. Contudo que o tema deve continuar em cima da mesa para ser debatido
com serenidade.
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