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quarta-feira, 30 de maio de 2018

Os três “D’s” do debate sobre a Eutanásia: Dúvidas, Disparates e Decisões.




DÚVIDAS

Confesso que, no início do debate sobre a votação dos projectos sobre a despenalização da Eutanásia, assaltaram-me algumas dúvidas, muito idênticas às que foram formuladas por Vicente Jorge Silva na sua crónica editada no Público no último Domingo.

Intitulada “Vida e morte: as Fronteiras da liberdade”, o jornalista confessava –se “profundamente dividido sobre a questão da eutanásia” em debate  no Parlamento:

 “ Por um lado, não tenho qualquer dúvida de que quero morrer com dignidade e, se não tiver alternativa ou não for capaz de o fazer sozinho, antecipar a minha morte com ajuda médica em caso de sofrimento insuportável ou degradação irreversível das minhas condições de vida. Mas, por outro lado, não consigo generalizar e tornar objecto de uma lei o que tenho certo para mim próprio, porque não consigo antever todas as circunstâncias concretas em que, supostamente, a escolha de uma morte assistida se fará segundo a vontade de cada um. Mais: receio que essa generalização banalize aquilo que, de todo, não o deveria ser e possa prestar-se a abusos macabros por parte de terceiros, como já terá acontecido noutros países onde a prática de eutanásia é legalmente autorizada”.

E continuava o articulista : “Ora, face à minha divisão interior, confunde-me a ligeireza com que uns pretendem fazer aprovar apressadamente, sem um prévio debate aprofundado, uma lei tão delicada sobre as fronteiras entre a vida e a morte. Tal como me desgosta a argumentação, de uma intolerância maniqueísta, exibida por outros e que ultrapassa a esfera das convicções religiosas, como se a eutanásia pudesse equivaler, em qualquer circunstância, a um homicídio puro e simples (atitude essa reflectida na tomada de posição, com laivos de chantagem política, pelo anterior Presidente da República, Cavaco Silva).
“A este respeito, tenho dificuldade em perceber com clareza a fronteira que alguns ferozes opositores da eutanásia estabelecem entre a interrupção do tratamento dos doentes em fase terminal, considerada legítima, e o recurso a uma morte assistida para obviar, precisamente, a essa situação considerada irreversível. Há aqui, parece-me, uma certa hipocrisia ideológica que cuida mais das aparências dos rituais do que do efeito final dos procedimentos”.

E concluía Vicente Jorge Silva:

“Não se trata de ficar no meio onde residiria falsamente a virtude, mas de interiorizar a complexidade de um debate que não ganha nada em decorrer de forma precipitada. Sei o que quero para mim, se porventura for confrontado com a hipótese de não morrer com dignidade, mas considero abusivo legislar à pressa para ficar confortado com uma opinião e uma opção de natureza pessoal. Estão em causa as fronteiras da liberdade”.

Contudo, consultando o mesmo jornal Público na 6ª feira anterior, onde se comparavam os 4 projectos em debate e os conteúdos mais significativos de cada um, as minhas dúvidas dissiparam-se.

Na maior parte desses projectos estava bem claro quem se podia “candidatar” à eutanásia, doentes em sofrimento extremo, com doença incurável e terminal, maiores, em pleno uso das suas capacidades mentais, conscientes até ao momento da eutanásia, após pedido devidamente analisado, aprovado e acompanhado por uma equipa multidisciplinar, decisão sempre reversível e dando aos médicos o direito de objecção de consciência.

Interessante ainda para a minha decisão de apoiar os projectos em discussão foi a leitura da crónica de Bárbara Reis, no mesmo jornal, publicada em 25 de Maio, intitulada “a eutanásia segundo Séneca, o sábio da morte”, de onde retiro algumas frases desse clássico: “Viver não é uma coisa boa em si mesmo, mas sim viver bem”, e assim “sábio é aquele que vive até onde deve, não até onde pode”, ou “A vida é como uma história: o importante é como é feita, não se é comprida. Mas dá-lhe um bom fim” e concluía: “achas que há alguma coisa mais cruel a perder na vida do que o direito de acabar com ela”?.

A minha dúvida não é sobre o direito individual de cada um decidir a eutanásia, mas se a questão não deve ser mais debatida antes de uma decisão final, que só pode ser a sua despenalização com os critérios apontados nos 4 projectos.

DISPARATES

Triste de ver foi o rol de dispartes                que ouvimos nos últimos dias, principalmente por parte dos opositores à eutanásia, em que a frase que circulou na manifestação de ontem, “Não matem os velhinhos” é o coroar de tanta ignorância.

Apoiar ou não a despenalização da eutanásia pode ser uma questão de consciência, mas daí a recorrer à chantagem ideológica, como o fez Cavaco Silva, transformar essa questão num problema religioso, como o fizeram, pressionando o poder politico, os líderes religiosos em Portugal, ou atirar areia para os olhos, explorando a ignorância generalizada sobre o tema, merece-nos o mais veemente repudio.

Ouvir dizer que o Estado não se pode meter numa questão de liberdade individual, como li, é atirar areia para os olhos, como se o problema não fosse o facto de o Estado, através da lei, poder condenar como criminosos comuns os profissionais de saúde e os familiares que auxiliem quem, assumindo essa mesma liberdade individual, recorra à eutanásia.

Ao contrário do que ouvi gritar e escrevinhar, ninguém é obrigado a   recorrer à Eutanásia, nem esta se confunde com cuidados paliativos ou testamento vital.

Pegando em dois exemplo extremos, Alejandro Amenábar (cuja situação foi o tema do filme “Mar Adentro”) ou o físico Stephen Hawking, o Estado só tem de garantir que a opção de Amenábar seja levada a bom termo, sem criminalizar ninguém, ou a opção de Hawking de continuar a viver e a lutar até ao fim, garantindo um eficaz acompanhamento médico. O resto são balela beatas.

DECISÕES

O parlamento decidiu reprovar todos os projectos.

As desculpas foram muitas, desde a consciência de cada um, o medo de perder um lugar na lista do “partido” nas próximas eleições,  até à disciplina partidária mais autoritária.

Outros desculparam-se com o facto de o tema não constar dos programas eleitorais, os mesmos que, noutras circunstâncias, quando se tratou de retirar direitos económicos e sociais, de cortar nas obrigações do Estado Social , salvar os especuladores financeiros, ou impor a austeridade dos últimos anos, tudo actos que não constavam dos respectivos programas, não hesitaram nem um momento em avançar com medidas que não constavam em programas eleitorais.

Invocar o facto de “não constar” nos programas eleitorais é passar um atestado de menoridade aos deputados e ao Parlamento.


Foi também triste de ver a atitude do PCP, que se dividiu entre justificações próximas da beatice e o desrespeito pela liberdade individual, à qual esse partido, que revela grande dificuldade em acompanhar os tempos, sobrepõe uma mítica “liberdade colectiva”.

Penso. Contudo que o tema deve continuar em cima da mesa para ser debatido com serenidade.

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